Inteligência sistemas nacionais para defesa guerra etc (parte 1)

 

SISTEMAS NACIONAIS DE INTELIGÊNCIA: ORIGENS, LÓGICA DE EXPANSÃO E CONFIGURAÇÃO ATUAL[1]

Marco Cepik – mcepik@fafich.ufmg.br — mcepik@yahoo.com.br

Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ //Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG

Membro do Grupo de Estudos Estratégicos (GEE)

 

 

“The intelligence and security activities of the nations (…) are the products of many factors – national interests, international obligations (…), the technology available for intelligence collection, and the resources a particular nation can afford to devote to intelligence and security activities.”

JEFFREY T. RICHELSON, FOREIGN INTELLIGENCE ORGANIZATIONS, 1988, P. 307.

 

1. Introdução:

  Sistemas governamentais de inteligência consistem de organizações permanentes e atividades especializadas na coleta, análise e disseminação de informações sobre problemas e alvos relevantes para a política externa, a defesa nacional e a garantia da ordem pública de um país. Serviços de inteligência são órgãos do poder executivo que trabalham prioritariamente para os chefes de Estado e de governo e, dependendo de cada ordenamento constitucional, para outras autoridades na administração pública e mesmo no parlamento. São organizações que desempenham atividades ofensivas e defensivas na área de informações, em contextos adversariais onde um ator tenta compelir o outro à sua vontade. Nesse sentido, pode-se dizer que essas organizações de inteligência formam, juntamente com as forças armadas e as polícias, o núcleo coercitivo do Estado contemporâneo.[2]

   Serviços de inteligência não são meros instrumentos passivos dos governantes, agentes perfeitos de sua vontade ou mesmo materializações de um tipo-ideal de burocracia racional-legal weberiana. Antes de mais nada, porque sua atuação impacta as instituições e o processo político de muitas formas e porque essas organizações têm seus próprios interesses e opiniões acerca de sua missão. Embora o tema da intervenção dos serviços de inteligência e de segurança na vida política mais geral seja de grande interesse, tratar os serviços de inteligência como variáveis independentes que influenciam as instituições políticas tende a ser um esforço frustrante quando se sabe tão pouco sobre a origem e o desenvolvimento desses serviços.[3] Por isso, no texto que segue os serviços de inteligência serão considerados como variáveis dependentes. Como não existem ainda estudos sistemáticos sobre o processo através do qual os serviços de inteligência chegaram ou poderiam chegar a tornar-se organizações dotadas de “valor e estabilidade”, ou seja, instituições, o procedimento expositivo adotado procurará responder sistematicamente à pergunta sobre a origem, o desenvolvimento e a atual configuração organizacional dos sistemas nacionais de inteligência, mas sem deixar de explicitar as lacunas existentes no conhecimento a respeito.[4]

  O texto está organizado em cinco seções principais. A primeira seção discutirá o contexto institucional a partir do qual é possível entender o surgimento dos serviços de inteligência. A segunda seção discutirá o processo de diferenciação organizacional da atividade de inteligência desde suas matrizes históricas na diplomacia, na guerra e no policiamento. A terceira seção discutirá o processo de expansão vertical e horizontal da atividade de inteligência no Estado contemporâneo, o qual resultou, já na segunda metade do século XX, na formação de sistemas nacionais de inteligência. Na quarta seção serão feitas considerações analíticas sobre o processo de formação dos sistemas nacionais e serão descritos de forma muito breve – e a título de exemplo – os sistemas de inteligência dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, sua estrutura organizacional e seus custos anuais. Nas considerações finais serão sumarizados os principais constrangimentos organizacionais ao desempenho ágil dos sistemas de inteligência.

2. O Estado Moderno e a Função de Inteligência:

  As primeiras organizações permanentes e profissionais de inteligência e de segurança surgiram na Europa moderna a partir do século XVI. Tais organizações surgiram no contexto da afirmação dos Estados nacionais como forma predominante de estruturação da autoridade política moderna.[5]

  Como se sabe, o processo de afirmação dos Estados nacionais europeus foi marcado por importantes conflitos sociais, descontinuidades históricas e uma intensa competição entre os Estados nacionais e desses Estados com outros tipos de unidades políticas, particularmente os impérios, as cidades-estado e as ligas de cidades. A melhor explicação disponível sobre essa dinâmica é fornecida por Charles Tilly, em seu livro Coercion, Capital and European States (1992).[6]

  O argumento de Tilly pode ser resumido assim: a posse concentrada de meios de coerção foi utilizada por grupos sociais previamente dominantes na ordem feudal, em alguns casos aliados à burguesia ascendente nas cidades, para aumentar a população e o território sobre os quais pretendiam exercer poder. A gênese desse processo está relacionada a pressões impostas pelos califados árabes e pelas movimentações de povos na estepe oriental da Europa, que forçaram os governantes europeus a redefinirem competitivamente suas bases de dominação política e sua infra-estrutura econômica. Quando uma coalizão que tentava expandir sua base de recursos encontrou grupos com meios de força comparáveis e que tornavam muito elevados os custos da dominação, a guerra foi o mecanismo de resolução do impasse.

  Conquistadores transformaram-se em governantes quando tentaram exercer um controle estável sobre as populações e territórios cada vez mais extensos, única forma de garantir um acesso regular aos bens e serviços ali produzidos. Nas diversas regiões da Europa e depois do mundo, os governantes mais poderosos fixaram os termos da guerra e coube aos governantes menos poderosos escolher entre a acomodação e o esforço extenuante de preparação para a guerra.

  Para todos os governantes, a guerra e a preparação para a guerra dependeram da extração de recursos essenciais (dinheiro, soldados, provisões, armas etc.) que suas populações não estavam dispostas a entregar sem compensações ou, no mínimo, o fariam a um elevado custo político. Assim, além dos limites estabelecidos pela dinâmica conflitiva entre as diversas unidades políticas mais ou menos similares, a forma de organização política interna de cada Estado foi condicionada pela organização das principais classes sociais e, principalmente, pelos conflitos entre os grupos sociais e de alguns daqueles grupos sociais (especialmente proprietários e trabalhadores) com as elites políticas governantes. Na medida em que os custos da guerra aumentaram e os conflitos sociais intensificaram-se com a industrialização, os construtores de Estados (state-builders) foram compelidos a barganhar direitos políticos e favores econômicos por recursos, que variaram desde impostos até a prestação de serviço militar. Essa barganha foi em grande medida tornada irreversível por sua fixação legal e transformação em costume quase-legal e esteve na gênese do que hoje chama-se cidadania.

  No entanto, o tipo de Estado que predominou em cada período e região dependeu da combinação entre diferentes taxas de acumulação e concentração de meios de coerção (controlados pelos governantes) e diferentes taxas de acumulação e concentração de capital (controlado por agentes privados). Em diferentes regiões da Europa os governantes utilizaram estratégias extrativas e de dominação que podem ser caracterizadas como de intensa aplicação de coerção (áreas de poucas cidades e predominância agrícola) ou como de intensa inversão de capital (áreas de muitas cidades e predominância comercial, com produção voltada para o mercado). As diferentes estratégias de intensa coerção e de “coerção capitalizada” poderiam ajudar a entender, ainda que remotamente, as diferenças doutrinárias e organizacionais entre os primeiros serviços de inteligência e segurança surgidos, por exemplo, na Rússia e na Inglaterra no século XVI.

  A variação na escala da guerra, bem como a formação, a partir do século XVII, de um sistema europeu de Estados soberanos foram dois fatores determinantes para a vantagem comparativa daqueles Estados que apresentaram trajetórias de “coerção capitalizada”. Segundo Charles Tilly (1996:45-88), esse tipo de trajetória ocorreu quando coalizões de burocratas, capitalistas e estadistas foram mais eficientes na gestão da guerra, beneficiaram-se de instituições jurídicas e administrativas mais fortemente racionalizadas, mantiveram-se mais estavelmente associados às classes sociais internas através da constitucionalização do exercício do poder e estiveram mais intensamente envolvidos na construção de infra-estrutura econômico-social, provimento de serviços e adjudicação de conflitos.

  Ao cabo desse processo, já bem avançado o século XIX, os diversos tipos de Estados começaram a convergir para o que passou então a ser reconhecido como o modelo de Estado nacional soberano, caracterizado pela autoridade exclusiva e constitucionalmente delimitada sobre um território e uma população, bem como pelo monopólio do uso legítimo da força. Eventualmente, o resultado desse processo levou à prolongada hegemonia dos Estados capitalistas com sistemas políticos democráticos no sistema internacional, primeiro com a Inglaterra e depois com os Estados Unidos.[7]

  Esse é um tipo de narrativa sobre o surgimento e a mudança institucional que combina uma dinâmica evolutiva (a guerra como mecanismo de seleção) com uma forte ênfase intencional (interação entre grupos sociais delimitados produzindo consequências mais ou menos desejáveis sobre normas e organizações adaptativas). Como lembra Robert Goodin (1996:24-37), é inegável que o acaso e os acidentes também jogam um papel no desenho institucional de políticas, mecanismos sociais e sistemas. Porém, mesmo nos casos em que esse papel é mais evidente, é difícil isolar o puro acaso daquilo que são as consequências não intencionais de ações perfeitamente racionais ou, por outro lado, daquilo que são resultados agregados de interações entre diversos atores, resultados esses que diferem das intenções iniciais de qualquer ator em particular. É extremamente difícil precisar a exata combinação entre acaso, evolução e intencionalidade no desenho inicial e na trajetória de qualquer organização ou procedimento, seja ele o Estado moderno ou os serviços de inteligência.[8]

  Feita a ressalva, assumo provisoriamente que o surgimento dos serviços de inteligência modernos foi predominantemente um fenômeno causado por atos intencionais. Os reis e ministros dos Estados europeus modernos, em seu processo de competição com outros governantes e no esforço de implementar sua dominação sobre territórios e populações cada vez mais amplos, mobilizaram recursos e criaram organizações especializadas na obtenção de informações. A criação de serviços secretos (mais tarde conhecidos como serviços de inteligência) foi uma das respostas às necessidades mais gerais dos governantes em termos de redução dos custos de transação associados à obtenção de informações.

  Do ponto de vista das explicações disponíveis sobre por que organizações e instituições surgem, a construção de serviços de inteligência pode ser interpretada em parte como um resultado direto do puro cálculo estratégico de governantes perseguindo fins previamente dados (vencer a guerra e ampliar sua dominação), e em parte como uma resultante mais ou menos imprevisível do esforço desses mesmos governantes para adequarem seus fins a um contexto situacional que precisava ser melhor compreendido e no qual seu próprio papel enquanto sujeitos políticos interessados era pouco claro.[9] Num contexto internacional altamente competitivo, incerto e marcado por altos custos de obtenção de informações necessárias à compreensão das intenções e capacidades de outros atores relevantes, os governantes modernos lançaram mão de vários instrumentos que pudessem reduzir tais custos, desde casamentos e outras formas de alianças dinásticas até o uso de serviços secretos.

  Dada a trajetória de afirmação do Estado moderno descrita por Charles Tilly, proposições adicionais sobre a natureza das novas organizações de inteligência deveriam considerar não apenas sua função primária (prover informações), mas também as funções secundárias associadas ao uso dessas informações para a dominação e a maximização de poder em diferentes períodos e contextos nacionais. Nesse sentido, os serviços de inteligência modernos teriam surgido com uma dupla face, informacional e coercitiva a um só tempo. Essa dupla natureza (informacional e coercitiva) caracteriza ainda hoje os sistemas nacionais de inteligência existentes. É preciso reconhecer, porém, que há pouca evidência histórica disponível para ilustrar essa suposição, especialmente em relação aos séculos XVI-XVIII. Mesmo do ponto de vista teórico, os dois autores contemporâneos mais importantes que mencionam algo a respeito tendem a enfatizar características e funções opostas.

  Por um lado, Anthony Giddens discute, em seu livro National-State and Violence (1987), como o controle governamental de informações relevantes sobre a população e os recursos de cada país foi crucial para a gênese e a consolidação da autoridade soberana do Estado nacional, tanto no plano interno como no plano internacional ou sistêmico:

(…) modern societies have been ‘information societies’ since their inception. There is a fundamental sense, as I have argued, in which all states have been ‘information societies’, since the generation of state power presumes reflexively monitored system reproduction, involving the regularized gathering, storage, and control of information applied to administrative ends. But in the nation-state, with its peculiarly high degree of administrative unity, this is brought to a much higher pitch than ever before. (…) Records, reports and routine data collection become part of the day-to-day operation of the state, although of course not limited to it.”

 GIDDENS (1987:178).

  Por outro lado, Charles Tilly mencionou o papel dos serviços de inteligência enquanto um meio direto de coerção:

“Governantes (…) enfrentaram alguns problemas comuns, mas o fizeram de modo diferente. Forçosamente, distribuíram os meios de coerção de forma desigual por todos os territórios que tentaram controlar. Na maioria das vezes, concentraram a força no centro e nas fronteiras, tentando manter a sua autoridade entre um e outro por meio de grupos coercivos secundários, leais aplicadores locais de coerção, patrulhas volantes, e pela disseminação de órgãos de inteligência”.

 TILLY (1996:72).

 

  Note-se que Tilly enfatiza a função coercitiva em detrimento do papel informacional dos órgãos de inteligência, enquanto Giddens fala da importância dos sistemas de informação indiferenciadamente, sem atentar para o que há de específico no caso dos serviços de inteligência.[10] Como o foco de ambos é o Estado moderno e não os serviços de inteligência, é compreensível que tenham destacado apenas a faceta do fenômeno que servia mais imediatamente a seus propósitos.

  No caso do comentário de Tilly, entretanto, há dois riscos mais sérios. Em primeiro lugar, tratar os serviços de inteligência genericamente como organizações repressivas impede que se compreendam suas especificidades (o papel central do segredo e do conhecimento) em relação às principais organizações de força do Estado, tais como as forças armadas e as polícias. Em segundo lugar, há o risco de se tratar os serviços de inteligência contemporâneos como se fossem a mera continuidade das primeiras organizações modernas, que teriam surgido totalmente prontas e imutáveis como resultado da vontade de poder de déspotas iluminados.[11]

  Na verdade, a trajetória moderna dos serviços de inteligência é marcada por grandes descontinuidades entre os primeiros serviços secretos surgidos no contexto do Absolutismo e as inúmeras organizações que configuram atualmente os sistemas nacionais de inteligência e segurança. É justamente essa diversidade de funções e perfis organizacionais que torna equivocado caracterizar os serviços de inteligência exclusivamente como organizações de força do Estado. Como parte do núcleo coercitivo do Estado contemporâneo, os serviços de inteligência desempenham um papel predominantemente informacional, com algumas funções diretamente coercitivas sendo exercidas por unidades específicas no sistema.

  Além da descontinuidade histórica e da diversidade de funções exercidas por diferentes componentes dos sistemas nacionais, um outro problema na caracterização dos modernos serviços de inteligência é que as macro-funções desempenhadas por eles são apenas uma parte da explicação sobre por que eles surgiram e qual é seu perfil organizacional atual. A outra parte da explicação é política, não funcional. Para Amy Zegart (1999:42), o desenho inicial e o desenvolvimento posterior de organizações na área de segurança nacional seria fortemente condicionado por três fatores, em ordem decrescente de importância: a) as escolhas estruturais feitas no surgimento da agência; b) os interesses e preferências cambiantes dos atores relevantes; c) os eventos externos que, dependendo da intensidade e do timing, podem forçar a mudança organizacional.

  A formação dos sistemas nacionais de inteligência acompanhou as linhas mais gerais da delimitação de identidades nacionais, construção do Estado (state-building), institucionalização democrática, utilização de sistemas de informação e usos de meios de força na era moderna. Mas, para ir além da contextualização proporcionada pelo livro de Charles Tilly, seria necessário conhecer não apenas os resultados contingentes de inúmeros conflitos político-burocráticos no momento do surgimento de cada organização, mas também como os atores relevantes modificaram seus interesses, preferências e cálculos de custo e benefício diante dos eventos decisivos que marcaram a trajetória de cada organização. Seria preciso, também, ser capaz de reconhecer os diferentes ritmos da formação de sistemas nacionais em cada país e, dentro de cada país, como o “crescimento institucional” variou para cada tipo de organização.[12]

  Lamentavelmente, isso está muito além do que o estágio atual da pesquisa nessa área permite. É possível, no entanto, dar um passo além e especificar melhor as matrizes organizacionais dos atuais serviços de inteligência. Para isso, na próxima seção serão utilizados dados referentes a diferentes países e a diferentes momentos históricos para a composição de um primeiro esboço interpretativo.

 

3. Origens: Diplomacia, Guerra e Policiamento

  O surgimento dos sistemas nacionais de inteligência está associado, segundo Michael Herman (1996:02-35), ao lento processo de especialização e diferenciação organizacional das funções informacionais e coercitivas que eram parte integral da diplomacia, do fazer a guerra, da manutenção da ordem interna e, mais tarde, também do policiamento na ordem moderna. Embora as primeiras organizações surgidas em cada uma dessas matrizes tenham desaparecido e as organizações atuais tenham uma escala de operações muito maior e mais complexa do que seus precedentes históricos, pode-se obter uma visão mais concreta da dupla natureza dos serviços de inteligência analisando-se cada uma dessas três matrizes organizacionais separadamente.[13]

 

3.1. Diplomacia e Inteligência Externa:

  As relações diplomáticas permanentes que se tornaram comuns na Europa entre os séculos XVI e XVII, seguindo os passos da diplomacia renascentista, serviam tanto para a representação e a negociação dos interesses coletivos das unidades políticas quanto para a obtenção e comunicação de informações.[14] Aliás, foi somente em meados do século XVII que as três grandes potências européias da época (Inglaterra, França e Espanha) passaram a contar com arquivos diplomáticos organizados e utilizáveis para a recuperação de informações. As chancelarias também passaram a coletar novas informações, tanto ostensivamente como por meios encobertos.

  No caso da Inglaterra, desde que Francis Walsingham tornou-se secretário de Estado de Elizabeth I em 1573, uma das funções mais importantes da secretaria passou a ser o controle do que era chamado então de “the intelligence”. O termo não significava apenas a provisão de informações extraordinárias sobre potências inimigas (especialmente sobre a frota espanhola antes de 1587) ou conspiradores internos (como os jesuítas e outros, perseguidos com base no Treason Act de 1351), mas incluía também um suprimento regular de notícias internacionais e informações sobre o mundo.[15]

  A maior parte dessas notícias era relativamente rotineira e não provinha de fontes secretas, embora isso deva ser relativizado porque a própria distinção moderna entre domínio público e secreto não era clara naquele período. Até o surgimento dos jornais privados e do advento da liberdade de imprensa, os governos tendiam a ver toda a informação sobre a população, a administração e os recursos do país como propriedade real, portanto secreta em alguma extensão.[16] Assim, os governos consideravam aceitável que seus embaixadores residentes em outros países tentassem obter aquelas informações por todos os meios disponíveis, inclusive recrutando espiões e interceptando clandestinamente as mensagens de terceiros. Isso não foi alterado substancialmente sequer pelas novas práticas introduzidas depois da Paz de Westfália (1648). Na Inglaterra, as redes de agentes controladas quase pessoalmente pelo Secretário de Estado continuaram a existir muito depois da morte de Sir Walsingham em 1590, tanto sob Cromwell como depois da restauração e da Revolução Gloriosa (1688), indicando que as novas atividades eram tomadas como necessárias à afirmação da autoridade do Estado nacional emergente e não meramente um capricho dos diferentes regimes políticos.

  O próprio aumento do tráfego diplomático, juntamente com o surgimento de serviços de correio na Europa moderna, demandaram um uso regular de cifras e códigos secretos de escrita (criptografia) para proteger as comunicações entre as chancelarias e suas embaixadas. Com isso, surgiram as primeiras organizações especializadas na interceptação clandestina e decodificação (criptologia) de mensagens, as chamadas “câmaras negras” (black chambers).[17] Não obstante a notável continuidade histórica do cabinet noir francês, instituído por Henrique IV em 1590 e famoso sob a direção do cardeal Richelieu no século seguinte, o exemplo inglês é mais típico inclusive pela descontinuidade entre as primeiras organizações e os serviços de inteligência atuais.

  Em 1782, com a separação das funções do secretário de Estado em dois escritórios distintos, o Foreign Office para os assuntos exteriores e o Home Office para os assuntos internos da Inglaterra, essa divisão das funções antes atribuídas ao secretário de Estado refletiu-se na divisão da atividade de inteligência ao longo das mesmas linhas interna e externa. Além disso, a própria coleta de informações sobre o exterior foi dividida em duas atividades separadas, a espionagem e a criptologia, sendo que o escritório secreto de criptologia foi transferido para o serviço postal inglês, onde os despachos diplomáticos e a correspondência considerada sensível continuaram regularmente sendo interceptados, copiados, reenviados e, quando necessário e possível, decodificados até 1844. No final do século XVIII o parlamento britânico passou a votar uma verba secreta anual para financiar as operações de inteligência do Foreign Office e do Secret Officeand Deciphering Branch (criptologia), dinheiro empregado também para comprar apoios políticos e militares no continente.[18] Aquele Secret Service Fund foi administrado pelo War Office até o começo do século XX, quando se formaram as atuais agências britânicas de inteligência.

  Desdobramentos organizacionais desse tipo continuaram a ocorrer mais tarde e, de modo geral, as funções secretas de negociação, conspiração, inteligência e espionagem exercidas desde a época Elizabethana pela diplomacia britânica, assim como pela francesa, austríaca, piemontesa, prussiana ou russa, estão na origem dos serviços especializados formados entre a segunda metade do século XIX e os anos iniciais da Guerra Fria.

  Há, no entanto, diferenças cruciais na escala das atividades e na dimensão das organizações. Enquanto a agência central de criptologia do governo britânico nos dias de hoje, oGovernment Communications Headquarters (GCHQ), empregava 6.076 funcionários e tinha um orçamento de centenas de milhões de libras esterlinas em 1995, no seu auge durante o século XVIII, o Secret Office and Decyphering Branch possuía um total de nove empregados e só passou a ter um modesto orçamento regular a partir de 1782. Além da escala comparativamente diminuta das operações de coleta, a análise e validação das informações obtidas eram feitas de forma completamente ad hoc. Não havia staffs separados e especializados de analistas, pois a própria atividade de inteligência não se separava da formulação e implementação de políticas e linhas de ação. Para acompanhar a formulação sintética de Michael Herman (1996:13), pode-se dizer que para os reis e seus ministros a atividade de inteligência era parte integral das funções regulares do estadista, sendo inseparável do exercício do poder.

  A separação progressiva entre as funções de inteligência e de formulação e implementação de políticas (policymaking) foi tão lenta quanto a separação entre as atividades diplomáticas legítimas e as operações secretas de influência e espionagem. Em 1939, por exemplo, o embaixador francês em Berlim ainda dispunha de fundos secretos destinados à compra de informações.[19] Em tese, porém, hoje em dia tratam-se de dois ramos separados e especializados da ação estatal no plano internacional. Dado que a maioria dos alvos dos serviços de inteligência é externa, deriva daí uma acentuada disputa burocrática pelo controle dos fluxos de informação do exterior para os governantes. É bem conhecida a rivalidade existente entre aCentral Intelligence Agency (CIA) e o State Department nos Estados Unidos, o que também ocorre entre o Secret Intelligence Service (SIS) e o Foreign and Commonwealth Office (FCO) na Grã-Bretanha.[20]

  Atualmente, muitos países mantêm organizações de inteligência subordinadas aos seus ministérios de relações exteriores para apoiar especificamente o acompanhamento de crises, negociações de acordos, tratados internacionais etc. Esse é o caso do Bureau of Intelligence and Research (INR) do Departamento de Estado norte-americano, que faz parte do sistema de órgãos de inteligência do governo dos Estados Unidos emboranão realize operações próprias de coleta de informações (a não ser aquelas ostensivamente disponíveis ao público nos países com representação diplomática dos Estados Unidos). O INR recebe informações coletadas por outras agências e as analisa para o Secretário de Estado. Na Inglaterra, o departamento de análise e pesquisa do FCO cumpre funções semelhantes, embora não seja membro formal do sistema nacional de inteligência daquele país.

  Além de ter gerado suas próprias organizações específicas de inteligência, a diplomacia moderna também esteve na origem remota de muitas das chamadas agências nacionais de coleta de inteligência externa (foreign intelligence). Nacional, nesse contexto, indica apenas que se tratam de organizações que respondem diretamente ao primeiro-ministro, presidente ou secretário-geral, e que prestam serviço para o governo como um todo e não somente para um ministério específico.

  São exemplos desse tipo de organização a CIA norte-americana e o SIS britânico, citados anteriormente, bem como a Direction Générale de la Sécurité Extérieure (DGSE) francesa, oHa-Mossad le Modiin ule-Tafkidim Meyuhadim (MOSSAD) israelense, o atual Sluzhba Vnezhney Rasvedki (SVR) russo, o Servizio perle Informazioni Generali e Sicurezza (SISDE) italiano ou ainda o Bundesnachrichtendienst (BND) alemão. Muitos outros serviços poderiam ser citados, mas bastam alguns exemplos de organizações mais conhecidas e ainda atuantes hoje em dia.[21]

  Os serviços de inteligência exterior são “clássicos”, pois têm como característica comum o fato de serem os principais responsáveis pela espionagem propriamente dita e também pela coleta de informações a partir de fontes ostensivas fora do território nacional. Eles diferem bastante de um país para outro em termos organizacionais, na escala de operações e pela composição predominantemente civil ou militar de seus oficiais de inteligência. Mas isso não impede que cada um desses serviços veja a si próprio como primus inter pares dentro do sistema de inteligência de seus respectivos países. Por outro lado, a despeito de suas raízes na diplomacia secreta presente na trajetória de qualquer Estado antigo ou moderno, há uma grande descontinuidade histórico-organizacional entre as primeiras redes modernas de agentes à maneira da Inglaterra Elizabethana e os atuais serviços de inteligência exterior, que surgiram e se desenvolveram somente no século XX.

 Nesse sentido, embora a primeira imagem quando se fala de serviços de inteligência remeta às organizações responsáveis por humint, tais como o SIS e o MOSSAD, na maioria dos países esse componente dos sistemas nacionais de inteligência não é o maior, o mais antigo ou o que produz maior volume de informações de valor crítico. Por exemplo, as organizações militares de inteligência surgiram já na segunda metade do século XIX, tendo se tornado muito maiores e mais numerosas do que os serviços de inteligência exterior. Essa segunda matriz de origem dos atuais serviços de inteligência será considerada a seguir.

 

3.2. Guerra e Inteligência de Defesa:

  No caso da guerra, o registro da presença de atividades de inteligência é muito mais antigo. Relatos sobre o uso de espiões militares remontam ao velho testamento da Bíblia[22], assim como figuram prescritivamente no manual de Sun Tzu sobre a arte da guerra[23], o Ping-fa, escrito na China no começo do século IV a.C. Na verdade, o reconhecimento do campo de batalha e do inimigo sempre foi considerado um elemento essencial da capacidade de comando do general. Entretanto, desde a época dos speculatores utilizados pelas legiões romanas de César até os corpos de guias usados pelos franceses e britânicos durante as Guerras Napoleônicas, a inteligência militar foi exercitada num contexto institucional que Martin Van Creveld (1985:17-57) chamou de a “idade da pedra do comando”.[24]

  Foi somente com as mudanças radicais introduzidas na área militar durante o período da Revolução Francesa e de Napoleão que começou a mudar o significado da inteligência para o comando.[25] O quartel-general móvel de Napoleão, pelo menos desde 1805, consistia de três elementos principais e independentes entre si, a Maison privada do próprio imperador, o État Majeur de l’Armée e o quartel-general administrativo. Paradoxalmente, o órgão mais importante para o comando do Grand Armée era a Maison, à qual estava subordinado um bureau de estatística encarregado da inteligência estratégica sobre os inimigos, bem como um bureau topográfico, encarregado de recolher as informações das várias fontes e prepará-las, inclusive cartograficamente, para que Napoleão as estudasse diariamente. As fontes de informação eram diversas, desde mapas, jornais e livros, passando por informantes e espiões plantados em cada cidade importante, até correspondências interceptadas e decodificadas pelo cabinet noir (criado em 1590). A inteligência operacional durante as campanhas era obtida também pelas patrulhas de cavalaria das unidades e passada para o bureau topográfico através do estado-maior, que incluía em sua organização uma seção para interrogar prisioneiros, camponeses e desertores. O próprio Imperador tinha uma rede pessoal de fontes de inteligência, seus officiers d’ordonnance e generais ajudantes que ele enviava em missões especiais. Entretanto, embora organizada numa escala massiva como nunca antes havia existido, os métodos e as tecnologias de inteligência disponíveis para Napoleão permaneciam em grande medida os mesmos da Antigüidade.

  Além de imperador e comandante militar, Napoleão era seu próprio oficial de inteligência. Como destaca Van Creveld (1985:68), essa capacidade de Napoleão para analisar e processar informações pessoalmente, eliminando muitos passos e camadas organizacionais intermediárias, ajuda a explicar a velocidade e a decisão da forma napoleônica de fazer a guerra e comandar oGrand Armée. Por outro lado, alerta Creveld, isso também poderia induzir a tomadas de decisão repentinas, baseadas em desejos mais do que em análise, em segundos pensamentos ou mesmo na falta de pensamento adequado.

  Apesar desses problemas, a mudança na utilização da inteligência foi parte integrante da revolução nas estruturas de comando iniciada pelas Guerras Napoleônicas e que duraria praticamente até o final da I Guerra Mundial. Ao longo do século XIX, a mobilização de exércitos com milhões de soldados e a construção de grandes marinhas, as novas tecnologias de armamentos e de propulsão, o uso de ferrovias e telégrafos (mais tarde rádios), enfim, a nova escala e a complexidade da gestão do fenômeno bélico modificaram profundamente as estruturas de comando, controle, comunicações e inteligência (C3I) das forças armadas.[26]

  O modelo mais influente de estruturação do comando foi o do estado-maior geral prussiano, que começou a afirmar-se desde 1815 e alcançou grande prestígio internacional após as vitórias da Prússia sobre a Áustria (1866) e a França (1870). Como lembra Martin Van Creveld: “It was not until the middle of the nineteenth century that the traditional coup d’oeil with its implications of immediate personal observation gave way to the German-derived ‘estimate of the situation’, implying map study and written reports”. CREVELD (1985:57).

  A inteligência militar no século XX reteve algo dessa nova exigência de cientificidade e abrangência destacada por Van Creveld. Em comparação com a linha evolutiva derivada da diplomacia secreta dos séculos XVI a XVIII, pode-se dizer que a inteligência militar acrescenta à conspiração e espionagem uma nova dimensão, a da coleta sistemática de informações básicas e menos perecíveis, seguida pela análise dos fatos e idéias novas tendo como pano de fundo aqueles acervos informacionais, redundando na apresentação de relatórios de inteligência orientados para tornar mais racionais e “informadas” as decisões de comando.[27]

  No começo do século XX, a maioria dos países europeus havia adotado alguma versão de estado-maior geral que incluía esferas de responsabilidade formalmente separadas em seções (operações, planejamento, inteligência, logística, comunicações etc.). Cabe notar, entretanto, a observação de Creveld de que, mesmo no caso prussiano, na prática ainda não havia uma especialização completa de funções divididas entre as seções de operações, doutrina e inteligência. Isso teria implicado, pelo menos até a I Guerra Mundial, em significativa superposição das atribuições dessas seções no estado-maior geral alemão. De modo geral, a experiência da I Guerra Mundial forçou uma maior especialização, principalmente quando às funções de inteligência exercidas pelos bureaus militares de estatística e de topografia desde a primeira metade do século XIX somaram-se as novas seções de “exércitos estrangeiros” (foreign armies), responsáveis pelo estudo das forças armadas dos inimigos potenciais ou efetivos.

 O relativo atraso da Inglaterra e dos Estados Unidos na adoção do modelo de estados-maiores gerais refletia diferenças constitucionais e políticas, mas também o tamanho bem menor de suas forças armadas até meados do século XIX. Isso se refletiu na demora na criação de staffs e unidades militares de inteligência. No caso inglês, por exemplo, somente depois da Guerra da Criméia (1853-1856) foram enviados adidos militares permanentes para outros países para observar as forças armadas. Ao mesmo tempo, foi criado um Topographical and Statistical Department subordinado diretamente ao War Office. Em 1873, aquele departamento foi renomeado como Intelligence Branch, seguido da criação de um departamento separado de inteligência para o subcontinente indiano em 1878. Por sua vez, o almirantado (Admiralty) criou um comitê de inteligência em 1882, no mesmo ano em que a Marinha dos Estados Unidos criava a mais antiga organização de inteligência ainda em atividade naquele país, o Office of Naval Intelligence (ONI). No caso britânico, em 1887 foram nomeados pela primeira vez diretores de inteligência noWar Office e no Admiralty. A criação de um estado-maior geral após a guerra dos Bôeres (1899-1902) amalgamou o cargo de diretor de inteligência militar (DMI) com o de diretor de operações militares (DMO), num movimento pendular que reflete a instabilidade da nova função de inteligência destacada por Creveld, um indicador de que a institucionalização dos seviços de inteligência ainda estava distante. A posição autônoma do diretor de inteligência no War Office britânico só voltou a ser restaurada como função independente em 1915.[28] Mesmo então a separação não era completa e a inteligência de sinais (sigint) derivada da interceptação e decodificação de mensagens permaneceu insulada das outras fontes de informações até bem depois da batalha da Jutlândia.[29] As disputas pelo controle dos fluxos informacionais e a precária especialização e coordenação das equipes de analistas foram um problema para a inteligência militar até pelo menos a II Guerra Mundial, como atesta o exemplo norte-americano em Pearl Harbor.[30]

  Mesmo levando em conta essa separação lenta entre inteligência e as funções de planejamento e operações, as organizações permanentes e especializadas de inteligência militar tornaram-se parte estável das estruturas de comando, controle e comunicações das forças armadas bem antes que surgissem as organizações nacionais de inteligência externa.

  Depois da II Guerra Mundial, além do staff da seção de inteligência do estado-maior geral, em cada força singular foram sendo criadas unidades especializadas ou staffs de inteligência para os níveis inferiores de comando da força. Além disso, muitos países que possuem ministérios da defesa e uma maior integração das forças armadas criaram também agências de inteligência de defesa (defense intelligence) para apoiar os estados-maiores integrados (joint) e os ministros.[31] São exemplos atuais dessa nova “camada” organizacional o Glavnoye Razvedyvatelonoye Upravlenie (GRU) russo, a Defense Intelligence Agency (DIA) norte-americana, o Servizio perle Informazioni e la Sicurezza Militare (SISMI) italiano, o Agaf Modiin (AMAN) israelense e o Defence Intelligence Staff (DIS) britânico.

  Com exceção do GRU, instituído entre 1918 e 1924, as demais organizações mencionadas datam do segundo pós-guerra. Cada uma dessas organizações centrais de inteligência de defesa apresenta uma escala e abrangência de capacidades operacionais nas áreas de coleta e análise de informações no exterior que é comparável com a dos serviços nacionais de inteligência exterior de seus países. Em função disso, é conhecida a rivalidade entre a DIA e a CIA, no caso dos Estados Unidos, ou entre o AMAN e o MOSSAD, no caso de Israel, para citar apenas dois exemplos. Quando se somam a essas organizações centrais de inteligência de defesa os recursos e agências de inteligência das Marinhas, Exércitos, Forças Aéreas e outras forças singulares e comandos integrados (joint commands), fica evidente que o componente militar dos sistemas nacionais de inteligência é de longe o maior e mais complexo do ponto de vista organizacional, correspondendo a algo entre cinqüenta e oitenta por cento de todos os recursos de inteligência de qualquer país.[32]

  Uma descrição satisfatória sobre as relações entre esses orgãos centrais de inteligência militar e as demais organizações, centros e unidades de cada força singular em vários países exigiria um livro inteiro.[33] Sobre o significado da formação de subsistemas de inteligência militar para a configuração final dos sistemas nacionais e a agilidade no ciclo das atividades de inteligência, serão feitas algumas considerações adicionais na seção 2.3. Antes, porém, é preciso destacar ainda uma outra matriz organizacional dos serviços de inteligência contemporâneos.

3.3. Policiamento e Inteligência de Segurança:

  A terceira matriz histórica dos serviços de inteligência contemporâneos se distingue das duas anteriores por sua ênfase nas chamadas ameaças internas à ordem existente. Trata-se da inteligência de segurança (security intelligence), conhecida também como inteligência interna ou doméstica. As origens das atuais organizações de inteligência de segurança remontam ao policiamento político desenvolvido na Europa na primeira metade do século XIX, decorrente da percepção de ameaça representada por movimentos inspirados na Revolução Francesa e pelo nascente movimento operário anarquista e socialista.

 As forças especializadas em manutenção da ordem interna desenvolveram técnicas e recursos de vigilância, infiltração, recrutamento de informantes e interceptação de mensagens para a repressão política dos grupos considerados subversivos. Embora o temor da revolução popular tenha diminuído um pouco depois de 1848, o processo mais geral de profissionalização das polícias e a emergência de unidades de investigação criminal continuaram ampliando as capacidades de detecção, captura, interrogação, periciamento técnico, vigilância e armazenamento de informações sobre novas áreas criminais e segmentos populacionais.[34] A “cientificização” do combate ao crime a partir do século XIX estendeu-se ao policiamento político e à repressão contra a “subversão”.

 Conforme Jeffrey Richelson (1986:01-04), a primeira organização permanente voltada para a obtenção de inteligência sobre os “inimigos internos” visando a sua repressão foi a terceira seção do departamento de segurança do Estado, instituída na Rússia imperial em 1826. Os dois precedentes mais importantes da terceira seção foram a Oprichnina (1565-1572), a cavalaria negra instituída pelo primeiro czar de todas as Rússias, Ivan o Terrível, bem como a organização Preobazhensky (1697-1729), criada por Pedro I para investigar, prender, interrogar sob tortura e aplicar penas contra traidores e outros suspeitos de crimes contra o czar e o Estado. Embora a repressão mais ou menos sistemática dos dissidentes e críticos seja um traço característico de todos os Estados, o policiamento político organizado foi uma especialidade russa na era moderna. Na segunda metade do século XIX, a dinastia Romanov contratou o prussiano Wilhelm Stieber para reorganizar a polícia política. Depois do atentado à bomba que matou o czar Alexandre II em 1881, a Okhrannoye Otdyelyenye (conhecida como Okhrana) consolidou-se como uma força policial “especializada”, independente tanto dos ministérios do interior e do exterior quanto dos incipientes recursos de inteligência das forças armadas. Considerada mais cruel do que eficiente inclusive por seus adversários bolcheviques, de qualquer modo a polícia secreta do czar tornou-se o símbolo de toda uma era. A experiência russa da Okhrana também nos ajuda a entender a persistente associação entre inteligência e repressão política ao longo do século XX.

  Embora organizações como a Okhrana russa ou a Sûreté Générale francesa (instaurada ainda sob Napoleão Bonaparte[35]) inicialmente não conduzissem operações de espionagem e obtenção de inteligência contra alvos estrangeiros, a busca de informações e a perseguição de adversários do regime no exílio rapidamente estenderam o policiamento político ao exterior. Em 1870, a Sûreté tinha mais de sessenta agentes operando em estações em Viena, Amsterdã, Hamburgo e outras cidades européias. A primeira base permanente da Okhrana no exterior data de 1882, menos de um ano após sua reorganização.[36] Além de caçar revolucionários russos exilados a Okhrana também passou a tentar monitorar as atividades de órgãos de segurança e inteligência estrangeiros, tais como a própria Sûreté, atuando em território russo.

  Como resultado dessa dinâmica, no começo do século XX já havia considerável superposição de missões e alvos entre as polícias políticas e as organizações de inteligência voltadas para o exterior, que naquela época ainda eram principalmente militares. As polícias políticas controlavam redes próprias de agentes recrutados nas embaixadas estrangeiras situadas nas capitais de seus países, interceptavam comunicações dos grupos dissidentes e das embaixadas estrangeiras, além de tentarem estabelecer redes de agentes e informantes em outros países.[37]

  Principalmente depois da I Guerra Mundial e da Revolução Russa, as polícias políticas e serviços secretos de cada país passaram a vigiar regularmente as atividades dos serviços de inteligência estrangeiros dentro do território nacional. Com isso, além da inteligência de segurança (security intelligence) propriamente dita, essas organizações especializaram-se também em contra-espionagem e contra-inteligência (counterintelligence). Com o processo de descolonização durante a Guerra Fria e com o terrorismo nos anos setenta, certas operações de suporte à contra-insurgência, contra-medidas defensivas e antiterrorismo foram acrescentadas ao leque de missões desse tipo de organização. Nas últimas duas décadas, o crime organizado, o tráfico de drogas e crimes eletrônicos (incluindo fraude financeira e lavagem de dinheiro) adquiriram tal importância na agenda de segurança de alguns países, que a busca por informações extrapolou os limites da rotina da investigação criminal.[38]

  Essa expansão das missões ocorreu de forma mais ou menos concomitante com a transformação dos antigos serviços secretos e polícias políticas em serviços de inteligência de segurança (security intelligence), principalmente nos países democráticos. Não há, entretanto, nada parecido com um modelo organizacional internacionalizado nessa área.

  Em alguns países, as organizações de security intelligence são separadas organizacionalmente das polícias e da inteligência externa. Atualmente, organizações como o Canadian Security Intelligence Service (CSIS), a Direction de la Surveillance du Territoire (DST) francesa, o Bundesamt für Verfassungsschutz (BfV) alemão e o Sherut ha’Bitachon ha’Klali (SHIN BET) israelense exemplificam essa separação.[39] Já em outros países, a inteligência interna ou de segurança é um departamento especializado das próprias forças policiais. Esse é o caso dos Estados Unidos com a divisão de segurança nacional (inteligência) do Federal Bureau of Investigation (FBI).[40]

  Na prática, porém, pode-se dizer que em todos os países as missões de inteligência de segurança, contra-inteligência e inteligência policial dificilmente estão subordinadas a uma única agência. No Japão, por exemplo, essas atividades são compartilhadas de forma tensa pela Agência de Investigação e Segurança Pública (Koan Chosa Cho) e a unidade de combate à subversão da Agência Nacional de Polícia (Keisatsu Cho).[41] Em alguns outros países ainda, a inteligência interna ou de segurança chegou mesmo a desdobrar-se diretamente das forças armadas.[42]

  Esse é precisamente o caso da Inglaterra. Como se sabe, a criação da polícia metropolitana de Londres em 1829 foi o primeiro passo na lenta consolidação de uma estrutura de forças policiais locais ao longo do século XIX na Inglaterra, onde as polícias tiveram pouca influência direta na formação do serviço de inteligência de segurança.[43] Segundo Michael D. Lyman (1999:63-98), embora fossem recrutados alguns informantes e a correspondência pessoal de suspeitos de subversão fosse interceptada, algum policiamento especializado contra ameaças internas só teria começado em 1883, com a criação de uma seção especial na polícia metropolitana de Londres para colher informações e reprimir os feninianos irlandeses.

  Em 1909, com a criação do Secret Service Bureau subordinado ao War Office, a inteligência de segurança e a contra-espionagem passaram crescentemente para a esfera da seção doméstica do bureau militar (conhecida como MI-5, ou quinta seção da inteligência militar). Em 1931, a seção de inteligência exterior (MI-6) e a seção de inteligência doméstica doméstica (MI-5) do War Office foram separadas definitivamente em duas agências independentes, respectivamente o Secret Intelligence Service (SIS) e o Security Service (que permaneceu sendo conhecido como MI-5).[44] Após diversas batalhas burocráticas com a polícia metropolitana, as funções de inteligência de segurança foram completamente transferidas para o Security Service depois da II Guerra Mundial. Uma exceção importante foi a jurisdição sobre o combate ao Irish Republican Army (IRA), que permaneceu separada por vários ramos do governo britânico. Somente em 1992 oSecret Service (MI-5) passou a centralizar as operações de inteligência e repressão contra o IRA, mas mesmo assim só no restante do território britânico, pois no território da Irlanda do Norte o papel do MI-5 continua secundário em relação ao do special branch do Royal Ulster Constabulary (RUC).[45]

  Refletindo o processo de expansão das missões dos serviços de inteligência interna (security intelligence) mencionado mais acima, em 1999 as áreas de trabalho do Security Servicebritânico dividiam-se oficialmente em: terrorismo relacionado com a Irlanda do Norte (30,5%); terrorismo internacional (22,5%); contra-espionagem (20,5%); segurança (11,5%); crimes graves (7%); proliferação de armas (3,5%); assistência a outras agências (4,5%).[46] Em comparação com anos anteriores, em que três quartos dos recursos do MI-5 eram dedicados ao contra-terrorismo e ao IRA, a atual distribuição de prioridades enfatiza a contra-inteligência e o combate ao crime organizado. Isso resulta em parte da diminuição relativa da escala de conflitos na Irlanda do Norte e também da percepção britânica de que o país segue sendo alvo de operações de espionagem internacional.

  O caso inglês apresenta, pois, diferenças de desenho organizacional e de timing em relação aos casos francês e russo, onde os serviços de inteligência de segurança surgiram das polícias secretas atuantes já na primeira metade do século XIX, mas também é diferente do caso norte-americano, onde a própria polícia federal (FBI) é a principal agência de inteligência de segurança, ou ainda em relação ao caso canadense, onde um serviço de inteligência de segurança (CSIS) foi criado apenas em 1984 como uma resposta às investigações parlamentares sobre violações de direitos humanos cometidas pela divisão de segurança da Royal Canadian Mounted Police (RMPC).[47]

  Talvez mais importante do que a especificidade do caso inglês seja o que ele tem em comum como os demais países em qualquer uma das três matrizes: a dificuldade de se estabelecer fronteiras organizacionais bem definidas nas diferentes áreas e missões de inteligência. Na próxima seção se poderá ver como isso está relacionado com a própria lógica de expansão recente dos serviços de inteligência e seus reflexos na configuração de diferentes tipos de sistemas nacionais.

4. Lógica de Expansão dos Sistemas de Inteligência:

            Três tipos diferentes de organizações especializadas foram destacados na seção anterior: inteligência externa (foreign intelligence), inteligência militar (military intelligence) e inteligência interna (security intelligence). Além desses componentes organizacionais principais, presentes na maioria dos Estados, a formação de sistemas nacionais de inteligência está associada a dois movimentos adicionais de expansão organizacional e especialização funcional que vêm ocorrendo nas últimas décadas: 1) Um movimento de expansão vertical envolvendo a formação de subsistemas de inteligência policial e de inteligência militar. 2) Um movimento de expansão horizontal, com o surgimento de novas agências especializadas em diferentes disciplinas de coleta e análise ao longo do continuum operacional que caracteriza o ciclo da inteligência.

            A expansão das missões dos serviços de inteligência interna (security intelligence), inicialmente restrita ao policiamento político de dissidentes e mais tarde abarcando a contra-inteligência, o contra-terrorismo e inteligência sobre o crime organizado, acabou por aproximar esses serviços das unidades investigativas das polícias encarregadas de dinâmicas criminais mais complexas, tais como o narcotráfico, fraudes financeiras, lavagem de dinheiro e outros crimes eletrônicos (cybercrimes). Em muitas polícias também existem agora unidades especializadas de inteligência sobre crime, utilizando informações coletadas de fontes diversas (inclusive imint e sigint) e métodos analíticos mais sofisticados (principalmente nas áreas de georreferenciamento de dinâmicas criminosas e de visualização de interrelacionamentos entre criminosos). Essa expansão vertical do uso de métodos e técnicas de inteligência para a base dos sistemas policiais, em combinação com uma maior integração e busca de sinergia entre as unidades de inteligência policial e as agências nacionais de inteligência de segurança pode ser apontada como uma tendência na direção da formação de subsistemas de inteligência de segurança.[48]

  Na Inglaterra, essa tendência de maior integração se traduz na formação de times mistos de agentes do Security Service com quadros das seções especiais (special branches) da polícia metropolitana de Londres e de outras 51 forças policiais regionais, além do special branch do RUC, responsável por inteligência e operações encobertas na Irlanda do Norte. O terrorismo, o crime organizado e a ameaça de espionagem são áreas que atravessam a tradicional dicotomia interno/externo. No caso britânico, isso implica o envolvimento eventual dos serviços de coleta de inteligência exterior (SIS e GCHQ), além do próprio FCO e do Tesouro, nesses comitês interagências.

  Nos Estados Unidos, também existem agora unidades de inteligência especializadas nos departamentos de polícia, destacando-se aí a divisão de inteligência do New York Police Department (NYPD/DI). Organizações constabulares como a Guarda Costeira (U.S. Coast Guard) também possuem unidades de inteligência que interagem, de um lado, com os serviços de inteligência da Marinha e dos Fuzileiros Navais, no âmbito do National Maritime Intelligence Center (NMIC), e, por outro lado, com o FBI e outras agências de “imposição da lei” (law enforcement), tais como a Drug Enforcement Administration (DEA) e o Immigration & Naturalization Service (INS). Dada a miríade de organizações policiais, constabulares e de law enforcementnos Estados Unidos, além dos mecanismos de divisão de poderes entre autoridades distintas, tanto no âmbito federal como nos cinqüenta estados, no distrito federal, cidades e centenas de condados, o grau de integração vertical de um subsistema de inteligência de segurança, contra-inteligência e inteligência policial naquele país provavelmente é baixo. Mas a tendência de maior integração sem dúvida existe, e seu sinal mais visível está na criação de centros especializados com pessoal fornecido por várias agências e foco de ação nas áreas de delimitação jurisdicional mais difícil. Exemplos desse tipo de estrutura são o National Drug Intelligence Center (NDIC), o National Counterintelligence Center (NACIC), o El Paso Intelligence Center (EPIC), situado no Novo México e dedicado ao problema da imigração ilegal, e a Finantial Crimes Enforcement Network (FinCEN).[49]

  Um fenômeno semelhante de verticalização de capacidades nacionais ocorre na área de inteligência militar. Como foi mencionado na seção anterior, nos países em que foram criados comandos integrados (joint commands) e estruturas mais desenvolvidas de suporte nos ministérios de defesa, isso tendeu a ser acompanhado da criação de agências centrais de inteligência de defesa. Em alguns casos, a criação dessas agências não significou que o exército, a marinha e a aeronáutica deixassem de manter suas próprias organizações centralizadas responsáveis pela produção de inteligência para o estado-maior e o comandante de cada força. Além das organizações centrais de inteligência em cada força, compõem ainda o subsistema de inteligência militar as unidades militares especializadas, por vezes em nível de batalhão ou até mesmo brigadas no caso da força terrestre, ou de esquadrões e alas no caso da força aérea, que atendem às necessidades de inteligência dos níveis inferiores de comando.

  No caso dos Estados Unidos, o que ocorreu depois da Guerra do Golfo (1990-1991) foi um aumento relativo na integração do subsistema de inteligência militar, através de medidas de consolidação organizacional, da clarificação de linhas de comando e de novas doutrinas de emprego com ênfase no suporte à capacidade de combate das forças e na performance dos comandos integrados (joint commands). Em termos de consolidação organizacional, pode-se mencionar o caso da Marinha daquele país, que possuía em 1991 sete organizações distintas de inteligência e em 1993 já havia transferido os recursos e atribuições para apenas duas que restaram, o próprio Office of Naval Intelligence (ONI) e o Naval Security Group Command (NSGC), responsável por inteligência de sinais (sigint) e segurança de comunicações (comsec).[50] Esse tipo de consolidação organizacional, embora com menor intensidade, ocorreu também nas outras forças singulares. A maior clarificação de linhas de comando é mais visível no caso do exército. Por um lado, o novo National Ground Intelligence Center (NGIC) consolidou em 1995 os recursos e as atribuições de três organizações anteriormente separadas, empregando civis e pessoal uniformizado de unidades numeradas responsáveis por diretórios específicos do centro (por exemplo, o 902nd MI Group para a contra-inteligência e o 203rd MI Battallion para a análise de material bélico estrangeiro). Todas as unidades especializadas de inteligência e segurança do exército subordinam-se agora ao comandante-em-chefe do Intelligence and Security Command (INSCOM). Por seu turno, o próprio comandante do INSCOM reporta-se ao Army Deputy Chief of Staff for Intelligence (DCSI) em todos os assuntos de inteligência. Apenas na área de inteligência de sinais e de segurança de comunicações há uma duplicidade nas linhas de comando, pois o comandante do INSCOM reporta-se também diretamente ao diretor da National Security Agency (NSA).

  Aliás, foi na área de sigint que os Estados Unidos parecem ter obtido o maior grau de integração vertical dos recursos militares de inteligência. Na condição de principal autoridade nacional na gestão da disciplina de inteligência de sinais, o diretor da NSA exerce simultaneamente a função de Chief of the Central Security Service (CSE), o que significa basicamente que ele tem autoridade orçamentária sobre os gastos das forças singulares com recursos de criptologia/criptografia e mantém controle operacional (opcon) sobre os comandos e unidades de segurança de comunicações e interceptação de sinais do exército (INSCOM), da marinha (NSGC), da força aérea (AIA) e dos fuzileiros navais (ACSC4I). Por outro lado, esse tipo de integração, baseada na definição de “gerentes nacionais” responsáveis por certas disciplinas em inteligência, também poderia bem ser um exemplo do segundo movimento de expansão organizacional referido acima.[51]

  Afinal, além das três matrizes históricas e da formação de subsistemas de inteligência policial e militar, os sistemas nacionais de inteligência atualmente existentes resultam também de uma expansão “horizontal”, decorrente de especializações funcionais crescentes e, no limite, da separação organizacional ao longo do continuum coleta-análise de informações.

  A especialização principal se deu nas técnicas e tecnologias adequadas às diversas fontes de informação. Novos métodos de coleta e processamento, novas plataformas e sistemas modificaram as estruturas de custos e a composição da força de trabalho envolvida na atividade de inteligência. No que hoje se chama de coleta de informações de fontes especializadas (single-source collection), por exemplo, existem atualmente órgãos ou unidades especializadas em obter informações a partir de fontes humanas (humint), a partir da interceptação e decodificação de comunicações e sinais eletromagnéticos (sigint), a partir da produção e processamento de imagens fotográficas ou multiespectrais (imint), da mensuração de assinaturas e outras características técnicas (masint), bem como da coleta de fontes ostensivas como jornais, televisão, Internet e livros (osint). No subsistema de inteligência de segurança mencionado anteriormente, há organizações especializadas em contra-inteligência, em medidas defensivas de segurança, em inteligência interna (security intelligence) e inteligência policial. Finalmente, uma vez traçada a linha burocrática, orçamentária e legal que estabelece quais órgãos governamentais fazem parte oficialmente dos sistemas nacionais de inteligência, é preciso levar em conta também as agências situadas na periferia dos subsistemas de inteligência e segurança militar e policial, ou mesmo os recursos temporariamente alocados sob controle operacional das agências, por exemplo, adidos militares, laboratórios de análise, contatos diplomáticos, aviões e navios em missões de coleta de informações etc.

  Devido ao grande volume de informações coletadas por plataformas tecnológicas e organizações diversas, a produção de inteligência “finalizada” sobre um alvo ou tema passou a ser um problema crescente e levou à criação, em alguns países, de organizações dedicadas apenas à análise e avaliação (all-sources analysis and assessments) das informações coletas de fontes diversas por organizações especializadas em cada tipo de fonte ou “disciplina” da área de coleta.

  O duplo movimento de expansão vertical e horizontal dos serviços de inteligência gerou demandas gerenciais e de coordenação impensáveis mesmo durante a II Guerra Mundial e boa parte do período da Guerra Fria. Obviamente, o grau de complexidade organizacional de cada sistema nacional de inteligência varia muito, indo desde sistemas com dezenas de agências, como os Estados Unidos e a Rússia, até países como Canadá e Itália, que têm apenas duas organizações principais de inteligência e segurança. Entretanto, a própria idéia de que os recursos e capacidades de inteligência de um país formem “sistemas organizacionais” implica a suposição de que são gerenciados de forma mais ou menos integrada. Uma camada organizacional bastante recente no processo de “crescimento institucional” dos sistemas de inteligência são as instâncias de coordenação, gestão de recursos e supervisão das políticas nacionais para o setor. A justificativa principal para incluir essas instâncias de coordenação num tipo ideal de organização dos sistemas nacionais de inteligência não é simplesmente o fato delas existirem em Londres ou Washington, mas sim a percepção de que tendem a exercer um papel crescente também em outros países.[52]

  Até aqui, tratou-se de descrever a lógica de expansão da atividade moderna de inteligência desde suas matrizes na diplomacia, no fazer a guerra e no policiamento até a formação de sistemas nacionais de inteligência mais ou menos complexos. No restante dessa seção, serão apresentadas duas direções possíveis para uma futura explicação mais completa das causas dessa expansão.

  A primeira abordagem relaciona o desenvolvimento das organizações de inteligência com o fortalecimento mais geral das capacidades institucionais do Estado, sustentando basicamente que uma “oferta” maior de serviços de inteligência depende basicamente da maior ou menor disponibilidade de recursos em cada país. A segunda abordagem relaciona o surgimento e o desenvolvimento das organizações de inteligência com os atributos específicos das organizações de segurança nacional em regimes democráticos, que seriam bastante diferentes das demais burocracias governamentais voltadas para assuntos internos dos países.

  Embora bem mais sofisticada do que a afirmação grosseira do parágrafo anterior, a tese de David Bayley (1975:349-351) sobre a formação dos sistemas nacionais de polícia exemplifica bem esse tipo de abordagem. Por sistemas nacionais de polícia, o autor entende diferentes arranjos institucionais para o provimento de ordem pública, a garantia da observância às leis e a proteção da vida e do patrimônio da população. Assumindo como premissa que cada caso nacional é único, Bayley analisou através de estudo histórico-comparativo quais seriam as variáveis mais importantes na explicação dos atributos de cada sistema policial e também na explicação do por quê as características atuais (em 1975) mais importantes dos sistemas nacionais de polícia emergiram em determinados períodos históricos relativamente bem determinados na Inglaterra (1829-1889), França (1667-1700), Alemanha (1742-1871) e Itália (1815-1870).[53]

  As sete variáveis independentes analisadas por Bayley foram o papel do crescimento populacional e sua distribuição ao longo do continuum rural-urbano, a extensão da criminalidade e da insegurança entre a população, a revolução industrial e/ou outras transformações sociais ou econômicas desse porte, a ocorrência de revoluções e/ou outras transformações políticas desse porte, a presença de ameaças externas ou a ocorrência de guerras e mobilizações militares e, finalmente, o impacto de uma ideologia qualquer (absolutismo, liberalismo, nacionalismo, socialismo etc).

  Segundo esse autor, as características bastante diferentes dos sistemas policiais na Inglaterra, França, Alemanha e Itália não foram determinadas pelo crescimento populacional, grau de urbanização, taxas agregadas de criminalidade, ritmos de industrialização ou por alguma ideologia específica. As variáveis mais importantes teriam sido institucionais e políticas, desde a erosão das bases comunitárias da autoridade até as preferências dos atores mais poderosos em relação às demandas por lei e ordem, passando pela maior ou menor resistência popular à penetração do governo e pela transformação interna na organização do Estado. De todas essas, a associação mais clara é aquela existente entre a expansão da capacidade do Estado e a emergência de sistemas nacionais de polícia. As transformações do Estado a que se refere Bayley estão relacionadas com a diminuição dos custos de extração de recursos da sociedade e com o aumento geral dos níveis de produção administrativa (outputs) e consolidação da autoridade política, o que teria permitido um aumento no nível de “oferta” de serviços policiais e o amadurecimento, entre 1660 e 1890, de sistemas nacionais de polícia na Europa.[54]

  A ênfase excessiva nos recursos disponíveis e na evolução funcional dos sistemas policiais deixa muitas variáveis relevantes de lado (as preferências dos atores e as diferenças de desempenho institucional, por exemplo), mas a partir desse tipo de ênfase pode-se dizer, no mínimo, que a formação recente de complexos (e caros) sistemas nacionais de inteligência também correspondeu a um período de expansão geral das capacidades estatais nas últimas décadas.

  Um indicador grosseiro dessa expansão é o crescimento do gasto público como parcela do PIB, seja do gasto público total ou, o que no caso é mais significativo, do gasto dos governos centrais. Segundo o World Development Report publicado pelo Banco Mundial em 1997, no período entre 1960 e 1995 o gasto governamental total nos países da OCDE subiu em média de um patamar inferior a 20% para quase 50% do PIB. Em 1994, somente o gasto dos governos centrais representava em média mais de 35% do PIB nos países da OCDE. No caso dos Estados Unidos, até a década de 1930 o gasto federal manteve-se num patamar de cerca de 4% do PNB, enquanto em 1995 ele já representava 22,1% do PNB. Em 1997, para um PIB de 8,11 trilhões de dólares, foram realizados naquele país gastos federais de 1,60 trilhão de dólares em valores correntes. Mais de 55% desses gastos foram feitos com serviços sociais (previdência, saúde, educação, habitação, serviços comunitários e bem-estar social), enquanto os gastos militares representaram cerca de 17% dos gastos federais totais (ou US$ 258,3 bilhões). A curva de gastos sociais ultrapassou a curva de gastos militares nos Estados Unidos apenas ao final da década de sessenta do século XX, e o crescimento médio dos gastos militares entre 1960 e 2000, já ajustada a inflação, manteve-se positivo apesar do declínio relativo após o final da Guerra Fria.[55]

  Por sua vez, a curva de gastos com inteligência acompanhou a evolução dos orçamentos militares depois da II Guerra Mundial. Não há relação direta conhecida entre o PIB de um país e seus gastos com inteligência, mas parece haver alguma razão entre gastos com defesa e gastos com inteligência, embora essa proporção também varie significativamente. Como não há dados confiáveis sobre orçamentos de inteligência em nenhum país do mundo, antes de mais nada porque esses gastos são secretos e, mesmo nos casos em que o volume total de gastos é conhecido, as proporções alocadas para cada tipo de atividade e de organização são apenas estimadas por observadores externos aos governos.

  No caso dos Estados Unidos e da União Soviética/Rússia, os gastos com inteligência chegaram a cerca de 10% dos gastos totais com defesa na década de 1980, recuando um pouco ao longo dos anos 1990. Michael Herman (1996:37) estima que os gastos com inteligência nos países da Europa ocidental oscilem entre 3% e 5% do total de gastos militares. Simplesmente não existem tais estimativas sobre os gastos consolidados com inteligência nos países mais industrializados do Terceiro Mundo ou da Europa Oriental. Com todas essas restrições, assume-se aqui, em caráter provisório, um gasto nacional médio com atividades de inteligência em torno de 5% dos gastos nacionais com defesa. A diferença dos Estados Unidos e da Rússia em relação a todos os demais países deve-se à sua condição de superpotências durante a Guerra Fria e ao custo de desenvolvimento e manutenção de suas frotas de satélites espiões.

  Como regra geral, pode-se concordar com Michael Herman (1996:38-40) quando ele diz que a maior parte dos investimentos e do custeio na área de inteligência vai para as agências de coleta, enquanto a análise e disseminação tendem a ser itens de despesa relativamente menores. Nos anos 1990, a diminuição dos orçamentos de inteligência foi significativamente menor do que a diminuição dos orçamentos de defesa, tanto nos países da NATO como nos antigos membros do Pacto de Varsóvia. Tampouco há indicações de que os gastos com inteligência tenham diminuído em qualquer país importante da Ásia, América Latina ou da vasta região que vai do norte da África até a Ásia central.

  A segunda abordagem relevante para explicar a formação dos sistemas nacionais de inteligência é uma versão modificada do Novo Institucionalismo, desenvolvida por Amy Zegart (1999) ao analisar o surgimento e a evolução de três agências de segurança nacional dos Estados Unidos: o National Security Council (NSC), o Joint Chiefs of Staff (JCS) e a Central Intelligence Agency (CIA).[56] Segundo Zegart, o mesmo conjunto de premissas neo-institucionalistas sobre a importância das regras do jogo, sobre racionalidade e dilemas de ação coletiva, sobre custos de transação e sobre a natureza dos atores conduz a conclusões diferentes quando se trata de analisar agências de segurança nacional em contextos democráticos.[57]

  Para diferenciar as agências governamentais internas (de regulação e/ou prestação de serviços) das agências de segurança nacional, a autora considera quatro variáveis fundamentais: 1) densidade do ambiente formado pelos grupos de interesse na área de atuação de cada agência; 2) disponibilidade de informações sobre as atividades de cada agência; 3) autoridade do legislativo ou do executivo para o estabelecimento de diretrizes; 4) grau de interdependência burocrática e clareza jurisdicional. Com base em evidências empíricas e num exercício taxonômico competente, Zegart estabele uma dicotomia baseada em dois tipos opostos de agências governamentais. [58]

  Em um extremo estariam as agências governamentais que atuam em áreas de políticas públicas regulatórias e distributivas. O meio-ambiente social dessas áreas de políticas públicas é caracterizado por um grande número de grupos de interesse, poderosos e consolidados. Esses grupos encarregam-se de fornecer incentivos e sanções aos parlamentares para que eles se envolvam nas disputas sobre a estrutura e a atuação das agências de um dado setor. A disponibilidade de informações sobre as atividades da agência é alta e os obstáculos para a obtenção dessas informações são de tipo administrativo. Para a terceira variável, Zegart destaca então o papel central do Congresso nas decisões sobre a criação, o desenho organizacional e o volume de serviços (outputs) das agências governamentais domésticas. A quarta variável é a mais problemática. Segundo a autora, agências governamentais voltadas para o público nacional apresentam uma clara delimitação de funções (saúde, educação, transportes etc.) e têm grande independência operacional umas das outras.

  No outro extremo estariam as agências de segurança nacional, caracterizadas em primeiro lugar pela fraca presença de grupos de interesse em seu ambiente de atuação. Mesmo nas áreas em que existem tais grupos (lobby de fabricantes privados de armamentos ou grupos de imigrantes, por exemplo), eles são relativamente menos numerosos, menos poderosos e orientados para resultados políticos específicos (e.g. obter um dado contrato para desenvolver um novo sistema de armas) e não para influenciar o desenho organizacional de uma agência ou o nível geral de gastos orçamentários de um setor.[59] Como muitas das atividades das agências de segurança nacional são conduzidas em segredo, existem barreiras legais e procedimentais para o acesso público às informações relevantes. Com custos de obtenção de informações mais altos e um ambiente rarefeito de grupos de interesse, há poucos incentivos positivos para os parlamentares participarem ativamente das disputas sobre a organização ou as ênfases operacionais das agências de segurança nacional. Finalmente, em relação ao grau de interdependência burocrática, ele seria bem maior na área de segurança nacional por causa da justaposição de temas e funções que impedem uma clara delimitação jurisdicional entre as diferentes agências do setor.

  A partir dessa delimitação de características específicas das agências de segurança nacional, Amy Zegart faz três proposições que poderiam ser testadas através de pesquisas adicionais [60]: 1) Ao contrário do que ocorre com as demais agências governamentais, cuja criação é fortemente influenciada pelos grupos de interesse e pelo Congresso, no caso das agências de segurança nacional a decisão de criar uma nova agência, assim como as escolhas de seu desenho organizacional e suas regras de funcionamento, é fortemente concentrada no poder executivo. 2) Devido ao elevado grau de interdependência burocrática e por causa da precária delimitação de jurisdições, as agências de segurança nacional que já existem em um dado momento lutam entre si e com as equipes de assessores presidenciais para influenciar a definição presidencial sobre as missões, recursos e o desenho organizacional do novo órgão. O desenho final das novas agências que estão sendo criadas depende dos resultados desses embates. 3) Além de envolver-se pouco nas disputas em torno da criação de novas agências de segurança nacional, os parlamentares e o Congresso também procuram evitar o envolvimento em atividades de supervisão sobre as atividades dessas agências, pois lhes faltam os instrumentos e os incentivos para isso.

  Deixando de lado por enquanto as implicações dessa terceira proposição para a discussão sobre os mecanismos de controle externo de agências de segurança nacional e sobre os impactos da instituição do segredo governamental no desenvolvimento dos serviços de inteligência (temas que serão discutidos no capítulo 3 sobre Segurança Nacional, Segredo e Controle), note-se que até aqui Zegart fala de agências de segurança nacional sem levar em conta as diferenças entre as próprias organizações desse tipo. Ao estudar os diferentes padrões de evolução das três agências na segunda metade do século XX (NSC para policymaking, JCS para comando das forças armadas e CIA para inteligência externa), Zegart conclui que três fatores, em ordem decrescente de importância, determinariam o desenho inicial e o desenvolvimento posterior de organizações na área de segurança nacional: 1) As escolhas sobre desenho organizacional e regras de funcionamento feitas na época da criação da agência. 2) Os interesses, opiniões e linhas de ação dos atores relevantes, que mudam ao longo do tempo através das próprias interações. 3) Os eventos externos que, dependendo da intensidade e do timing, podem forçar a mudança organizacional sem que os atores tenham controle sobre as variáveis ambientais.[61]

  Quando contrastado com a abordagem histórico-estrutural de Bayley, o modelo institucional das “Agências de Segurança Nacional” de Zegart adiciona à explicação sobre a expansão dos sistemas de inteligência as escolhas dos atores relevantes (grupos de interesse, legisladores, burocracias e governantes) e as condições de incerteza em que essas escolhas são feitas, que forçam cada ator a adaptar suas preferências aos constrangimentos impostos pelos demais atores e pelo ambiente. No caso dos serviços de inteligência e de segurança, seria preciso incorporar ao modelo as próprias dinâmicas operacionais que caracterizam a atividade. Mas isso vai além dos limites desse texto. Como se trata da componente informacional de um conflito em que um ator tenta dobrar a vontade de outro, o surgimento e o padrão evolutivo de sistemas de inteligência também refletem essas interações adversariais com as organizações similares de outros governos ou mesmo de atores não-estatais.

  Em síntese, os serviços de inteligência e de segurança foram criados e se desenvolveram porque os governantes pretendiam resolver certos problemas informacionais associados ao provimento de defesa nacional e ordem pública, mas em cada país e em cada área de especialização funcional a disponibilidade de recursos variou, a competição interburocrática por jurisdição foi mais ou menos aguda, e a capacidade de um serviço de inteligência impor parâmetros às dinâmicas conflitivas entre organizações similares subordinadas a diferentes governos foi decisiva para a configuração final de cada sistema nacional.

  Para um exemplo das possíveis configurações organizacionais dos sistemas nacionais de inteligência, na próxima seção serão mencionadas muito brevemente as principais agências norte-americanas e britânicas de inteligência.

 

(Continua na parte 2)

 

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Sociedade Militar