Soft power, hard power e hegemonia.

Soft power, hard power e hegemonia

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“o soft power é mais do que a simples persuasão ou capacidade de incitar as pessoas, por meio da argumentação”: ele corresponde, também, “ao talento para seduzir”, e “a sedução conduz, frequentemente, a uma certa submissão”;

   Um olhar sobre o conjunto das teorias das Relações Internacionais permite-nos distinguir três tipos de poder. Ao poder económico (de que é exemplo a China) e militar (o caso dos Estados Unidos), podemos acrescentar o poder ideológico e cultural. Desenvolvido por Joseph Nye, o conceito de soft power designa a “capacidade de um Estado obter o que deseja através do poder de atração da sua cultura, das suas ideias, das suas políticas domésticas e da sua diplomacia” (2004: x). É, contudo, importante evitar a confusão entre soft power e influência. Embora sejam semelhantes, o poder ‘doce’ não se limita à única aceção de influência. De facto, como afirma Nye, “o soft power é mais do que a simples persuasão ou capacidade de incitar as pessoas, por meio da argumentação”: ele corresponde, também, “ao talento para seduzir”, e “a sedução conduz, frequentemente, a uma certa submissão”; em conclusão, “o soft power é um poder de sedução” (2004: 6).

O poder de um Estado não reside, unicamente, na força militar, visto que depende, também, da capacidade de um determinado país influenciar as decisões de outros atores. Na realidade, um Estado encontrará tanto menos resistência e contestação ao seu poder, na medida em que a sua cultura1 e ideologia forem bem acolhidas pelos diversos atores (Mustonen, 2010). A este respeito, como referia Adriano Moreira, ainda no começo dos anos 80, “é o poder cultural2, e não outro, que devidamente ajudado deve presidir aos esforços e acompanhar a evolução” (1981: 51). Assim, o soft power baseia-se numa estratégia pacífica, doce, indireta, subtil, mais ou menos discreta, no campo da atração das ideias, na capacidade de convencer, mais do que vencer, ao nível da cultura e da ideologia (Pallaver, 2011).

Como sublinha Li Mingjiang, o hard power e o soft power são interdependentes e “complementares” (2008: 295). Na prática, são dois utensílios de que um ator se pode servir para concretizar os seus objetivos, afetando, direta ou indiretamente, o comportamento de outros. No entanto, os dois conceitos diferem no que respeita à natureza do comportamento e à tangibilidade dos recursos (Wilson, 2008; Traub, 2005). De acordo com Nye, “o ‘command power’, a capacidade para modificar o comportamento dos outros, apoia-se na coerção ou na incitação, enquanto o “‘co-optive power’, a capacidade para moldar o que os outros querem, se alicerça na atração da cultura e dos valores, ou na capacidade de manipular a agenda política, de modo a sobrepor-se às preferências dos outros…” (2004: 7). Dito isto, é de sublinhar que se os recursos do soft power estão, essencialmente, ligados ao que o autor classifica de ‘the co-optive end of the spectrum of behaviour’, os recursos do hard power, ao invés, estão habitualmente associados ao ‘command behaviour’ (Nye, 2004: 7). Contudo, J. Nye chama a atenção para o facto de, por vezes, essa relação poder revelar-se imperfeita, visto que também é possível que certos países se deixem seduzir pelos ‘mitos de invencibilidade’ (Estaline e Hitler tentaram desenvolver tais mitos), pelo ‘command power’ de outros Estados, enquanto, por seu turno, o ‘command power’ pode ser utilizado, por vezes, “para gerar instituições que, mais tarde, são legitimamente reconhecidas”3 (1990: 182). Uma última palavra acerca da relação entre soft power e hard power. Atualmente, à parte a modernização operada no domínio tecnológico, as mudanças ocorridas no seio das grandes democracias restringiram a utilização do poder militar (Kant, 1983). Como sublinha J. Nye, “as democracias pós-industriais conferem mais importância ao bem-estar do que à glória” (2004: 19). Tal não significa, contudo, que as democracias abdiquem, por vezes, do recurso à força militar (a Guerra do Golfo, em 1991, ou a Guerra do Iraque, em 2003, são, a esse respeito, elucidativas) (Gieseler, 2004). Não obstante, segundo Nye, “o exercício da guerra revela-se, contudo, menos tolerável hoje do que há meio século” (Nye, 2004: 19). Reflitamos, de seguida, acerca do conceito de hegemonia.

Embora o termo hegemonia careça de uma ‘definição estabelecida’, o debate em torno desta tem-se baseado largamente em duas noções principais – ‘dominação e liderança’ (Lentner, 2006). Enquanto Arrighi reconhece que a ‘dominação’ é um pré-requisito para a hegemonia, em geral, o contrário parece também verificar-se: isto é, “um certo nível de hegemonia (‘hegemonia política’, entre aspas; ‘liderança’ ou ‘atividade hegemónica’) é uma pré-condição para a tomada de poder político e, portanto, para a dominação” (Fusaro, 2010: 11). Com origem no grego ‘egemonia’ (liderança), o conceito de hegemonia refere-se ao “estatuto dominante e opressivo de um elemento do sistema sobre os restantes”, contribuindo para “uma melhor compreensão das relações internacionais, bem como das relações de poder” (Ylmaz, 2010: 194).

Fontana explica que a aliança política e militar – da qual o hegemon é líder – se baseia em membros voluntários e livres, neste caso da Grécia antiga, que segundo o autor, são “estruturalmente independentes e distintos uns dos outros” (2009: 82). Este autor relembra que Aristóteles e Isócrates haviam utilizado o termo ‘hegemonia’ no sentido de distinguir entre duas formas de Governo: “despótico ou imperial” e “governo hegemónico” (Fontana, 2009: 82). Fontana refere-se aqui à política de Aristóteles sublinhando a distinção aristotélica entre governo “despótico” e “constitucional”, em que o primeiro é utilizado para explicar o poder exercido por um mestre sobre os escravos e, portanto, “poder exercido sobre [indivíduos] desiguais no interesse dos que exercem o poder”; ao invés, ‘a política ou regra constitucional’ ocorre quando o poder é exercido “por e entre [indivíduos] semelhantes”, por exemplo, cidadãos livres e iguais, e não apenas por interesse próprio, mas no interesse coletivo (2009: 82). Eis então que “Aristóteles utiliza o termo ‘hegemonia’, em oposição a despotismo e dominação” (Fontana, 2009: 82). Um outro autor, Michael Doyle, concebe a hegemonia como “o controlo da metrópole sobre a maior parte ou a totalidade da política externa dos outros Estados, mas pouco ou nada sobre a política interna destes” (1986: 12).

Nos primórdios da disciplina das Relações Internacionais, o termo era, na verdade, utilizado para descrever um certo tipo de relação entre o pequeno e o grande Estado, em diferentes níveis de análise, referindo-se, inclusive, às relações bilaterais, ao invés de se aplicar exclusivamente aos Estados Unidos (Triepel, 1938; Perlman, 1991). No entendimento de Immanuel Wallerstein, a hegemonia diz respeito a “uma situação em que um Estado é capaz de impor as suas regras no sistema internacional”, criando, assim, “temporariamente uma nova ordem política”, sendo que esse Estado beneficia, igualmente, de “vantagens adicionais para empresas localizadas no seu interior, ou que são por si protegidas, vantagens não concedidas pelo mercado, mas obtidas por meio de pressão política” (2002: 357). Este ponto de vista liga-se ao conceito de hegemonia que se centra no poder económico: por exemplo, “supremacia nas áreas de produção tecnológica, comércio e finanças pode proporcionar hegemonia” (Gamble, 2002: 130). Keohane sublinha que “a hegemonia consiste na preponderância de recursos materiais” (1984: 32). Este domínio resultante, contudo, “não deve ser entendido em termos puramente bilaterais ou relacionais, mas pode, também, ser expresso através de regras sistémicas” (Keohane, 1984: 32). Assim, a potência hegemónica é definida como “poderosa o suficiente para manter as regras essenciais que regem as relações interestaduais” (1989: 234). Por sua vez, Duncan Snidal divide hegemonia em três: a hegemonia implícita por convicção, a hegemonia gentil mas forte, e a hegemonia colonialista alicerçada na força (1986). No entendimento de Robert Cox, a hegemonia prevalece “quando o aspeto consensual do poder está na vanguarda” (1987: 164). De acordo com este autor, “uma vez que a hegemonia é suficiente para garantir a conformidade do comportamento da maior parte das pessoas”, a coerção permanecerá latente e “a utilizar apenas em situações particulares e desviantes” (Cox, 1987: 164). Para que um Estado se torne hegemónico, Cox propõe que este garanta uma ordem mundial que era universal na sua conceção… uma ordem que a maioria dos outros Estados… pode achar compatível com os seus interesses (1996: 136). A principal caraterística aqui é, por conseguinte, a natureza consensual da ordem resultante. Tal acarreta, segundo Cox, “o predomínio de um género particular, no qual o Estado dominante cria uma ordem baseada, ideologicamente, num amplo consentimento, que atua em conformidade com os princípios gerais que, de facto, asseguram a continuidade da supremacia do Estado líder”… mas, simultaneamente, “oferecem alguma medida ou perspetiva de satisfação aos menos poderosos” (1987: 7).

Para Miriam Prys, “a hegemonia é, sobretudo, entendida como um fluxo de poder material relativamente superior – em termos econômicos e militares – ao nível da política internacional ou, a nível regional, numa zona geograficamente limitada do mundo” (2008: 7). Por outro lado, a hegemonia é percebida como uma ordem política na qual uma determinada forma de pensar, a mais poderosa, predomina, minimizando, assim, a coerção (Joseph 2008; Sassoon 1982).

Sob um sistema hegemônico, um Estado superior mantém supostamente uma aparência de ordem e utiliza o poder e a persuasão para impor, com flexibilidade, regras a um sistema que, de outra forma seria anárquico, no quadro das Relações Internacionais (O’Brien, 2002). Existem alguns critérios gerais no que concerne às caraterísticas do poder hegemónico, tais como “uma unidade monetária eficaz na arena internacional, uma grande postura militar com alianças e bases em todas as partes do mundo, liderança nas crises e conflitos regionais, capacidade de persuasão sobre outros Estados; legitimação do estatuto por meio da disseminação dos próprios padrões de vida e valores, a nível cultural, em todo o mundo” (Uzgel, 2003: 31).

Brzezinsky afirma que a troika de um hegemon consiste em “dinheiro, capacidade de produção e poder militar” (2004: 87). Susan Strange sublinha que “os Estados Unidos garantem a sua capacidade hegemónica através do seu próprio poder estrutural permitido pela segurança, produção, finanças e conhecimento da política económica internacional, excedendo as dimensões regionais” (1987: 565). Por outro lado, a autora explica que “o poder estrutural depende de quatro elementos”, sendo que no que à economia política internacional concerne, “o Estado que possuir esses elementos em maior quantidade que os outros Estados, é o mais poderoso” (Strange, 1987: 565).

São eles: “a capacidade de influenciar os outros Estados por meio de ameaças, defesa, negação ou escalada de violência; a manutenção do controlo sobre mercadorias e sistemas de produção de serviços (…); detenção dos instrumentos mais eficazes para influenciar o conhecimento (…)” (Strange, 1987: 565). Por sua vez, Joseph Nye enumera as fontes de hegemonia da seguinte forma: “liderança tecnológica; supremacia ao nível militar e económico; soft power; controlo da interface das linhas de comunicação internacionais” (2003: 30).

Uma vez que o conceito de hegemonia regional é comummente utilizado na análise contemporânea das relações regionais, ele necessita de ser melhor compreendido. David Myers, por exemplo, define hegemonia regional como “Estados que dispõem de poder suficiente para dominar os sistemas estaduais subordinados” (1991: 3). Este autor adota uma conceção realista, que descura quer o funcionamento interno de uma ordem regional, quer aspetos como a aceitação e o papel das ideias, que são centrais para a maior parte do entendimento acerca do conceito de hegemonia. Por outro lado, não é estabelecida qualquer distinção entre hegemonia regional e global, nem são desenvolvidas regras específicas para a hegemonia a nível regional (Prys, 2008). De acordo com Miriam Prys, “os hegemons regionais desempenham um duplo papel no nexo da política regional e mundial, tendo, portanto, de realizar (pelo menos) duas tarefas principais: a exclusão de atores externos da sua esfera de influência, bem como a acomodação dos mesmos atores, com vista à concretização dos seus objetivos de política externa globais e regionais” (2008: 7).

O hegemon regional dispõe, em princípio, de duas opções principais. Em primeiro lugar, pode servir-se da região como “trampolim” (Prys, 2008: 12). Neste caso, “ele tenderá a servir-se do seu predomínio regional para alcançar um papel global mais amplo, apresentando-se, por exemplo, como o representante de uma região específica do mundo e, assim, um potencial membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas” (Prys, 2008: 12). Tais ambições globais, de novo, podem desempenhar “um efeito corruptor no papel predominante do hegemon regional e na sua liderança – percebida, desejada ou factual – na região” (Zimmermann, 1972: 19). A segunda opção (e potencialmente contrária) consiste em enfatizar as fronteiras da região num esforço para a diferenciar, de modo a garantir o papel do hegemon enquanto primus e para reforçar a sua influência na vizinhança (Prys, 2008).

Não obstante os diferentes significados atribuídos ao conceito de hegemonia, Antonio Gramsci tem, desde sempre, sido identificado como o pensador que terá desenvolvido o conceito (Fusaro, 2010: 2). Gramsci distingue entre poderes maiores e menores. Para este autor, uma grande potência é um poder hegemónico que ele define como o “chefe e guia de um sistema de alianças” (Fusaro, 2010: 26). O conceito de hegemonia assume diferentes significados para Gramsci conforme se aplica a um nível nacional ou internacional. Ao nível nacional, a hegemonia é definida como unidade dialética entre liderança e dominação, incluindo tanto o consenso como a coerção. O termo é utilizado para descrever “a forma de Governo do grupo ou classe social fundamental sobre os grupos subordinados em Estados capitalistas modernos” (Fusaro, 2010: 32). Por sua vez, ao nível internacional, “a hegemonia baseia-se em poder económico percebido como poder militar de um determinado país, sendo a guerra ou a ameaça de guerra o que faz um poder hegemónico” (Fusaro, 2010: 33).

Bibliografia:

Brzezinski, Z. (2004). The Choice: Global Domination or Global Leadership. New York: Basic Books.

Cox, R. (1981). Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory, Millennium: Journal of International Studies 10: 2, 124-155.

Keohane, R. (1984). After hegemony: cooperation and discord in the world political economy. Princeton: Princeton University Press

Moreira, A. (1981). O Poder Cultural, Nação e Defesa, n.º18, Lisboa, Instituto da Defesa Nacional, Abril-Junho.

Mingjiang, L. (2008). Soft Power in Chinese Discourse: Popularity and Prospect, Working Paper, n.º165, September 1, S. Rajaratnam School of International Studies.

Nye, J. (1990), Bound to lead: the changing nature of American power, New York (N.Y.): Basic books

Nye, J. (2004). Soft Power – The means to success in World Politics. New York: Public Affairs

Pallaver, M. (2011). Power and Its Forms: Hard, Soft, Smart, Thesis submitted to the Department of International Relations of the London School of Economics for the degree of Master of Philosophy. The London School of Economics and Political Science

Santos, V. (2007). Introdução à Teoria das Relações Internacionais. Referências de Enquadramento Teórico-Analítico, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade Técnica de Lisboa, 162-176.

Traub, J. (2005). The New Hard-Soft Power, The New York Times Magazine, 30 January

Wilson, E. (2008). Hard Power, Soft Power, Smart Power, The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 616

1De acordo com Victor Marques dos Santos, “a língua e a cultura constituem elementos patrimoniais da matriz identitária das nações. A sua defesa e promoção representam, por isso, uma expressão operatória inequívoca do conceito de interesse nacional permanente acentuando, ao mesmo tempo, a relevância decisiva da dimensão cultural da Política Externa”. SANTOS, Victor Marques dos, 2005, “Portugal, a C.P.L.P. e a Lusofonia. Reflexões sobre a Dimensão Cultural da Política Externa”, in Negócios Estrangeiros, n.º 8, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, julho de 2005, p. 71.

 

2Segundo Victor Marques dos Santos, “o poder cultural manifesta-se através da capacidade de fazer aceitar perspetivas, ideias, atitudes e preferências, através da perceção cognitiva de imagens da realidade socialmente construída e condicionada pela informação veiculada pelo discurso comunicacional” (2007: 268). Por outro lado, segundo o autor, “a propaganda e a diplomacia pública, enquanto instrumentos da política externa, desenvolvem-se, frequentemente, com base no poder cultural e o exercício da respetiva influência insere-se no conceito de soft power” (Santos, 2007: 268).

 

3Por conseguinte, é possível vislumbrar, em alguns casos, a existência de ‘soft’ no ‘hard’. Dito de outro modo, pode suceder que o hard power apresente um lado atrativo (podendo, inclusive, desempenhar um papel importante na criação de soft power), sendo que a ofensiva de charme não se limita unicamente ao poder civil, mas manifesta-se, igualmente, ao nível militar (Nye, 2004).

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Paulo Duarte é doutorando em Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa – ISCSP-UTL, Portugal, e investigador no Instituto do Oriente (duartebrardo@gmail.com).

 

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