A Democracia nos Estados Unidos: um balanço crítico. Paulo Duarte.

A Democracia nos Estados Unidos: um balanço crítico

 Paulo Duarte[1]

Como já dizia Sir Winston Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras”.[2] Mas no caso dos Estados Unidos, a democracia e a lógica capitalista, assente numa crença praticamente dogmática, no poder autorregulatório da mão invisível dos mercados, pode trazer (como na prática já trouxe) vários efeitos perversos.

Recordemos a especulação e a bolha financeira, os subprimes, e o atirar, por conseguinte, de várias famílias remediadas ou de classe média, para uma situação precária, de desemprego e luta pela subsistência. Para evitar tais efeitos, é fundamental, no meu entendimento, que o Estado assuma uma postura relativamente interventiva (meramente complementar e benéfica, portanto) em certos setores estratégicos da economia, que não podem, por razões de vária ordem, ser deixados à mercê da volatilidade e incerteza dos mercados. E, neste sentido, teço uma crítica construtiva, assim espero, à democracia e capitalismo norte-americanos: uma demissão total dos cidadãos (representados pelos governantes por si eleitos) da vida económica, política, social, militar e cultural é, inclusive nefasta para a idiossincrasia da democracia, daí que seja importante um certo grau de dirigismo, por parte do Estado, para ajudar a preservar os pilares da democracia.

Mas será que os Estados Unidos são uma verdadeira democracia? À partida a resposta não oferece sequer margem para dúvida, não fosse o reparo de um ou outro autor menos conformados com o status quo. Cheryl Chumley, por exemplo, está convicto de que “a América já não é uma democracia, tem antes seguido um rumo elitista e tornou-se um país liderado por uma pequena classe dominante, composta por membros poderosos que exercem um controlo total sobre a população em geral – uma oligarquia”.[3] Parece difícil de acreditar numa tal tese – tanto mais que o mundo e os próprios norte-americanos, aliás, se habituaram sobretudo a ouvir falar da ‘oligarquia russa’, em resultado da extraordinária acumulação de riqueza no seio das elites moscovitas, ao longo dos últimos anos. Assim sendo, será o postulado acima de Chumley verdadeiro? Sim, na medida em que ele é sustentado por uma base teórica e empírica rigorosamente avançada pela Universidade de Princeton (uma reputada universidade mundial, e, note-se, americana, o que torna ainda mais interessante o debate).

Os resultados não poderiam ser mais inquietantes para aquela que normalmente é apontada como o paradigma das democracias ocidentais. Com efeito, o estudo – que recorreu a “um conjunto de dados únicos que inclui medidas das variáveis-chave para 1 779 questões políticas” – conclui que “elites económicas e grupos organizados que representam interesses comerciais têm impactos independentes significativos na política dos EUA, enquanto os cidadãos comuns e os grupos de interesse baseados nas massas têm pouca ou nenhuma influência independente”.[4] Embora “os americanos [apreciem] muitas das caraterísticas fundamentais da governação democrática, tais como eleições regulares, liberdade de expressão e de associação e uma concessão generalizada (ainda que contestada)”, o documento de Princeton alerta para o facto de “se a política é dominada por organizações empresariais poderosas e por um pequeno número de americanos ricos, então os apelos da América para ser uma sociedade democrática estão seriamente ameaçados”.[5]

Um lobby pro-armas, pró-Israel, pró-energia, pró-isto e pró-aquilo só vem atestar que afinal o estudo de Princeton não está assim tão desviado da realidade, como alguns poderiam eventualmente desejar que estivesse. De facto, a política interna e externa norte-americana é feita de lobbies, está na sua idiossincrasia a chama da relação entre poder e poderosos. Ao nível da política externa, esta conceção oligárquica da democracia norte-americana pode ser preocupante e, de facto, em alguns casos, como na Guerra do Golfo, tem-no sido, fruto da influência determinante de um lobby insaciável por energia e pela manutenção da máquina de guerra.

Interessante e intemporal sobre o comportamento da América em relação ao resto do mundo, é a obra de William Fulbright, cujo título é bastante comprometedor: The Arrogance of Power (A Arrogância do Poder). Constatamos que as grandes nações como os Estados Unidos tendem a entender o seu poder como um “sinal da graça de Deus”. [6] Assim, estes acreditam que são diferentes dos outros países, encarregados de uma missão ‘universal’, com responsabilidade em relação a outras nações. [7]  Isto significa que os seus padrões de vida são concebidos como os mais corretos e, portanto, devem ser estendidos a outros povos.

É quase um ‘dever’, uma missão de fazer sair das ‘trevas’ estas nações e, além disso, tal deve ser realizado porque se acredita que Deus assim o deseja. Estabelece-se, portanto, uma espécie de dicotomia entre o bem e o mal, que rege as políticas externas das grandes potências. Por exemplo, o Presidente Mckinley acreditava que Deus tinha confiado aos americanos o dever de civilizar e cristianizar os habitantes das Filipinas.

Para que fique claro, nada tenho contra as democracias, desde que elas sejam apenas isso, democracias, sem qualquer apetrecho oligárquico, plutocrático ou outro. Enquanto ocidental que sou, partilho da máxima de Churchill, com a qual iniciei, não por acaso, e termino o meu pensamento: “A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras”. Todavia, e por que os Estados Unidos são um laboratório enorme de soft power e hard power, que gera ódios e apoios à escala mundial, preocupa-me, por conseguinte, seriamente a observação de William Engdahl, segundo o qual “a oligarquia  americana é hoje a principal alavanca da guerra e da desordem no planeta”.[8]

[1]Paulo Duarte é licenciado em Comunicação Social e Cultural pela Universidade Católica Portuguesa, tendo sido galardoado com o ‘Prémio TVI’ (atribuído ao melhor aluno da licenciatura na variante social). O autor é mestre (Grande Distinção) e doutorando em Relações Internacionais na Université Catholique de Louvain. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Paulo Duarte é autor de Metamorfoses no Poder: rumo à hegemonia do dragão?. duartebrardo@gmail.com

[2] House of Commons speech, 11 novembro de 1947.

[3] Chumley, C. (2014). “America is an oligarchy, not a democracy or republic, university study finds”. The Washington Times, April 21, https://www.washingtontimes.com/news/2014/apr/21/americas-oligarchy-not-democracy-or-republic-unive/

[4]Engdahl, W. (2014). “Princeton makes it official – USA Has Become Oligarchy, No Democracy”. November 11, https://journal-neo.org/2014/11/11/princeton-makes-it-official-usa-has-become-oligarchy-no-democracy/

[5] Ibidem.

[6] Fulbright, W. (1966). The Arrogance of power, New York:  Vintage books, p.3.

[7] Hassner, P. (2003). Washington et le monde: Dilemmes d’une superpuissance, Editions Autrement, p. 57.

[8] Engdahl, W. (2014). Op. Cit., par: 3.

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Sociedade Militar