América Latina, China e Estados Unidos: desafios e mitos

América Latina, China e Estados Unidos: desafios e mitos 

Um aspeto importante a propósito da presença chinesa na América Latina, e que importa enaltecer, é o facto de Pequim não querer hostilizar a sua relação com Washington no âmbito dos seus avanços na região. Neste sentido, a China tem sido particularmente cautelosa, inclusive, na cooperação com alguns países latino-americanos – nomeadamente a Venezuela, o Equador e a Bolívia – cuja agenda, política e ideologia são tradicionalmente percebidas como anti-norte-americanas. Não é descabido argumentar-se aqui que, à semelhança da lógica inerente à Organização de Cooperação de Xangai, em cuja fundação a China foi precursora ao nível do regionalismo asiático (a qual não deve ser entendida como um polo anti-ocidental, mas, ao invés, não-ocidental), também os contornos subjacentes às incursões chinesas na América Latina não devem ser vistos como imbuídos de uma ideologia anti-ocidental, mas tão somente não-ocidental.

Com efeito, o Consenso de Pequim não visa destituir o Consenso de Washington na região, mas antes propor uma outra mundivisão e modelo de crescimento económico, desprovido de ingerências internas, de exigências democráticas ou outras. Fica, por conseguinte, ao critério de cada Estado optar por seguir esta ou aquela via, sem que a China nada imponha.

Todavia, a ideologia subjacente ao Consenso de Pequim, suscita frequentemente, e mais do que nunca, certas inquietações e incertezas. Tal deve-se sobretudo ao facto de já não ser ‘admissível’, quer para a Comunidade Internacional, quer curiosamente para a própria China, continuar a pactuar com um modelo do ‘viemos para negociar, nada mais’, porque, em bom rigor, o lucro puro e duro já não ‘funciona’ sem se criarem primeiro outras estruturas complementares.

Por outras palavras, a China começa a questionar os limites da não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados, uma vez que os trabalhadores e companhias chinesas são frequentemente alvo de violência, vandalização, sequestro e, inclusive, assassinatos.

Consciente, assim, que tão ou mais importante que securitizar o seu acesso a matérias-primas e recursos energéticos, é garantir a própria segurança física das suas companhias e trabalhadores, Pequim compreende a importância de trabalhar em conjunto com os Estados frágeis – e, neste caso concreto, os da América Latina – no sentido de se esboçar reformas suscetíveis de combater flagelos como a pobreza, a insegurança, o narcotráfico, o tráfico de seres humanos, entre outros.

Desta forma, a China visa garantir que o desenvolvimento económico win win, é paralela e simultaneamente, acompanhado pela estabilização social e securitária dos países onde dispõe de interesses. E, neste sentido, a China precisa dos Estados Unidos, porque estes possuem uma expertise, experiência e intelligentsia, que podem beneficiar simultaneamente os interesses chineses e norte-americanos na América Latina, bem como os próprios países regionais, que ao fim ao cabo constituem o near abroad de Washington.

A China sabe que os Estados Unidos não se poderiam demitir nunca da América Latina, como ensina a lógica da geografia e, já agora, a própria doutrina Monroe, embora a Administração Obama tenha explicitamente abandonado esta última[1]. Pequim sabe, igualmente, que o espaço latino-americano não é estanque, nem palco para apenas dois atores, mas antes reflexo do devir das Relações Internacionais, e da consequente multiplicação de esferas de poder e intervenientes. Portanto, importa desmistificar a ‘visão triangular Estados Unidos – China – América Latina’, que é muitas vezes repetida na literatura, embora, em bom rigor, não espelhe a realidade e dinâmica dos acontecimentos na região.

Em primeiro lugar, como nota Evan Ellis, “o triângulo oculta outros atores importantes que devem ser considerados na dinâmica”; em segundo lugar, “o triângulo encoraja, erradamente, a uma visão da América Latina enquanto ator unitário”, e, finalmente, “o triângulo é uma forma subtilmente neocolonialista de abordar a América Latina e as suas relações externas” (2012: 3).

Em relação ao primeiro argumento, de facto seria redutor considerar não só a América Latina como um único ator, já que não existe uma América Latina, mas várias, onde cada Estado possui uma identidade própria, e pode ou não ser dotado de recursos energéticos e/ou minerais (significativos). Por outro lado, a perspetiva triangular América Latina – China – Estados Unidos também peca na medida em que subestima (ou ignora mesmo) a existência de outros atores igualmente interessados no subcontinente latino-americano, como é o caso da União Europeia, da Rússia, da Índia, do Irão e de Taiwan (se concebermos este último como entidade soberana).

Inclusive as próprias relações que Pequim mantém com os Estados latino-americanos são largamente assimétricas, na medida em que estes não beneficiam todos da mesma importância no quadro da estratégia do Going Abroad chinesa. Por fim, por que é que uma visão triangular da interrelação entre a América Latina com a China e os Estados Unidos pode revelar-se incorreta? Já que ela é “moralmente ofensiva”, na medida em que, segundo Ellis, “subtilmente avança um paradigma neocolonialista, sugerindo que a melhor maneira de compreender as complexas relações da América Latina [com outras regiões do mundo], é focalizando-se em dois países, os Estados Unidos e a China. Implica também que as ações e decisões desses dois atores irão, em grande parte, definir os resultados para a América Latina como o terceiro ‘lado’ do triângulo. Este é imperfeito em dois pontos.

Primeiro, […] oculta outras possibilidades, incluindo uma relação dinâmica entre a América Latina e outros atores globais, criando espaço para relações multi-dimensionais e obtenção de benefícios das interações que permitem o crescimento de todas as partes. Em segundo lugar, implica uma lógica e, talvez mesmo, uma legitimidade, para os Estados Unidos e a China ‘coordenarem’, não só o que diz respeito às suas políticas e atividades na América Latina, mas também o que concerne à sua ‘gestão’ da América Latina, como se fossem dois mordomos dominantes da ordem mundial, tal como a Grã-Bretanha, a França e a Espanha negociaram em relação às colónias e aos Estados ‘subordinados’ numa era anterior”  (2012: 4-5). 

Voltando ao zelo chinês em não hostilizar a sua relação com Washington no âmbito da sua incursão na América Latina, acreditamos, portanto, serem infundados e, quiçá, desmesurados, os receios que certos autores mais alarmistas, como Michael Fumento (2014) exprimem a propósito dos potenciais efeitos nefastos para os Estados Unidos, resultantes dos avanços chineses na região.[2] Mas não só, já que da própria ala republicana também surgem ecos de presságio, ou de mera inquietude, quiçá, quando o deputado republicano Dan Burton sugere que os Estados Unidos considerem “as ações da China na América Latina” como “um movimento de uma potência hegemónica no nosso hemisfério” (in Cintra, 2011: 12). Por outro lado, é frequente os partidários de uma conceção realista das relações internacionais preverem a existência de “tensões, desconfiança, e conflito”, à medida que “a posição comparativa dos Estados Unidos começa a cair e a China fica mais poderosa [na América Latina]” (Hsiang, 2009: 36).

No entanto, comungamos aqui da perceção, moderada, ou quiçá, mais otimista, de autores como Ferchen. Com efeito, embora defenda que face aos avanços da China na América Latina, Washington deve repensar a sua estratégia na região, Ferchen acredita, ainda assim, que “também há benefícios e oportunidades para os Estados Unidos” decorrentes da presença chinesa no subcontinente latino-americano (2012: para. 33). Ferchen reconhece que tendo em conta que “o desenvolvimento dos laços comerciais e de investimento com a China tem ajudado a impulsionar o crescimento económico em alguns países da América Latina”, e que a China tem ajudado a região a “construir infraestruturas tão necessárias […]”, Washington “deveria aceitar esse papel da China” (2012: para. 33). Tanto mais que, como explicámos acima, Pequim não pretende hostilizar a sua relação com os EUA. E, além disso, como sublinha Cintra, “é muito improvável que a China e a América Latina busquem uma aliança que restrinja o acesso dos Estados Unidos na região latino-americana”, já que “Washington é mais importante para a China do que qualquer país latino-americano, ou mesmo toda a América Latina” (2011: 12). Por outro lado, como conclui (e bem) a autora, “seria um erro se Washington perseguisse uma estratégia geopolítica que forçasse a América Latina a escolher entre os EUA e a China”, já que, ao fim ao cabo, “a última coisa que a região precisa é de um novo jogo de soma nula” (Cintra, 2012: 13).

 A própria intedependência entre América Latina, China e Estados Unidos, torna nefasta e inviável qualquer tentativa, quer por parte de Pequim, quer por parte de Washington, em se neutralizarem e/ou bloquearem os avanços um do outro na região. Isto porque, como nota Ellis, “para além das questões económicas, os compromissos trilaterais que envolvem os Estados Unidos, a China e a América Latina também podem ser úteis para um subconjunto de temas relacionados com defesa e segurança, desde a cooperação médica e resposta a catástrofes, ao lidar com o crime organizado” (2012: 12).

Sendo a América Latina a periferia dos Estados Unidos, estes só têm a ganhar com o auxílio chinês no combate aos flagelos que assolam a região, como o narcotráfico, o tráfico de seres humanos e de armas (impedindo que estas últimas caiam nas mãos de grupos criminosos como as máfias locais, os narcotraficantes ou as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, entre outros). 

Prof. Paulo D. Brado / Universidade de Coimbra. 

REFERÊNCIAS  

Cintra, M. (2011). “China na América Latina: suas estratégias, interesses e as implicações dessa aproximação sino-latino-amaericana no relacionamento triangular China-América Latina-EUA, Tese de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, pp. 1-14.

Ellis, E. (2012). “The United States, Latin America and China: a Triangular Relationship?”. Inter-American Dialogue, Working Paper, pp. 1-14.

Ferchen, Matt (2012). “China’s Latin American Interests”, Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy, April 6, https://carnegietsinghua.org/publications/?fa=47759

Fumento, M. (2014). “As the U.S. sleeps, China conquers Latin America”. Forbes, October 15, https://www.forbes.com/sites/realspin/2014/10/15/as-the-u-s-sleeps-china-conquers-latin-america/

Hsiang, A. (2009). “China Rising in Latin America: More Opportunities than Challenges”. ICA Institute, Journal of Emerging Knowledge on Emerging Markets, vol. 1, pp. 33-47. 

Paulo Duarte é doutorando em Relações Internacionais na Univerité Catholique de Louvain, Bélgica, e investigador no Instituto do Oriente, em Lisboa. É autor do livro ‘Metamorfoses no Poder: rumo à hegemonia do dragão?’ com prefácio do reputado comentador Marcelo Rebelo de Sousa (duartebrardo@gmail.com).

[1] Naturalmente, poder-se-á argumentar que o retorno de uma Administração Republicana ao poder nos Estados Unidos, tratará consigo um novo vigor e um retomar da doutrina Monroe, daí que em política a realidade esteja em permanente mutação, espelhando as perspetivas e ideologia de cada ator.

[2] Fumento emprega expressões imbuídas de grave inquietação, como “o tempo está a esgotar-se”, ou “os custos para os Estados Unidos são óbvios”, ou ainda, “em breve essa onda de calor vinda do Sul vai ser fogo da boca do dragão” (2014: para. 2, 4 & 18).

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Sociedade Militar