Geopolítica

É mais fácil fazer scan que andar com porta-moedas: prenúncios da cidade digital

É mais fácil fazer scan que andar com porta-moedas: prenúncios da cidade digital 

Foi tudo muito rápido. Mal tive tempo de me despedir da família, para apanhar o voo direto Lisboa-Pequim, operacional desde finais de julho de 2017, algo inédito em Portugal. Havia obtido uma bolsa por parte do Ministério da Educação da China. Era difícil recusar. De facto, sendo investigador sobre as questões do Oriente, sentia que era altura de aprender o chinês (mandarim), regido pela filosofia: para os perceberes tens de ir ao seu encontro, experimentar o seu modo de vida, sujeitares-te ao que eles comem, respiram… Não foi fácil. A poluição é tão intensa que não é mentira se afirmar que não chego a ver, em certos dias, o fim de uma avenida em Pequim. Não é por acaso que sete das 10 cidades mais poluídas do mundo se localizam precisamente na China.

Mas respirar como eles respiram não chega. É preciso comer o que eles comem. A experiência pode não ser (muito) agradável para quem não sabe usar pauzinhos (os chamados chopsticks) ou não gosta de picante nos alimentos. Peço uma colher com gestos, já que só agora comecei a aprender a falar como eles falam. Eles riem, algo a que já me habituei. Bicicletas e motos por todo o lado. Se não és atropelado por um carro, tens alta probabilidade de ser engolido por algumas dessas motos ou bicicletas que parecem moscas à tua volta e, tal como estes insetos, não usam luzes à noite, que tanta falta faz para os veres melhor. Para ser justo, alguns condutores dão-se ao ‘trabalho’ de acender a luz. É algo que me parece estranho, mas a que tenho procurado habituar-me: se a moto tem luz, que custa ligá-la? Contudo, não posso pensar como um ocidental, porque estou na China, onde o Google não funciona…. Isso é coisa do Ocidente. Aqui impera o Baidu, o motor de busca que eles usam.

Numa das minhas poucas deslocações enquanto cá estou no país de Confúcio, tive ocasião de ir a Tianjin. Já havia estado em Hong Kong, Macau, Xangai e Yiwu, mas fiquei deslumbrado por Tianjin.  

 Tianjin, Autor, 2017

O rio, a arquitetura, os traços e a influência de europeus, que lá estiveram, marcaram-me. A viagem, em comboio de alta velocidade de Pequim a Tianjin, demora apenas 35 min, o mesmo tempo que levei de táxi desde a Beijing Normal University até à estação ferroviária de Pequim Sul (cerca de 16 Km). E, diga-se, quase o mesmo preço que paguei pelo trem (como se diz no Brasil).

Um aspeto interessante que me tem surpreendido é o fenómeno WeChat. Na China, o WeChat é eficiente e multidimensional, podendo ser utilizado para chat online, fórum para os docentes comunicarem com os alunos, ou permitindo realizar pagamentos vários. Nunca tinha visto. Enquanto na Europa uso o meu android sobretudo para enviar mensagens ou falar, aqui na China posso utilizá-lo para pagar uma compra, um serviço, um café, entre tantos outros. Basta fazer scan do identificador de cada loja… e já está, não preciso de carregar moedas ou notas… o serviço está pago. Aponto a câmara do meu telemóvel (celular, como se diz no Brasil) para um código que, em geral, as lojas têm e o assunto fica resolvido. Chinês não brinca.

Pergunto-me se este tipo de aplicação não faria sucesso na Europa, ou mesmo no imenso mercado que é o Brasil? Cada pessoa evitava, assim, andar com dinheiro, além da componente ecológica, claro está. Quantas árvores poderiam ser salvas? Uma forma inclusive mais adequada para prevenir a fuga ou o branqueamento de capitais. As cidades digitais, o fim do dinheiro físico e a maneira oriental de ‘fazer’/adicionar amigos: não através do Facebook, porque na China não existe Facebook, mas é perfeitamente possível adicionar contatos através do WeChat.

Pergunto-me se não faria sentido pagar tudo com o meu celular no Ocidente? Para quê andar carregado com moedas e notas? A cidade digital diz muito sobre a idiossincrasia de um Povo. No caso da China, mostra que a população não pensa necessariamente (não pode, porque se trata de uma cultura milenar) como o Ocidente. Não se pode esperar que um Chinês pense como um Ocidental (nem tal faria sentido), mas é possível aprender com os sinais vindos do Oriente.

A cidade digital pode bem ser o prenúncio de uma nova era. A difusão/exportação do modelo WeChat é suscetível de facilitar consideravelmente o comércio. Em vez de andarmos a cunhar moeda ou a gastar avultadas somas a emitir notas e a certificarmo-nos de que não são falsas, por que não andar com um celular, fazer scan e, assim pagar? Não há devedores nem atrasos no pagamento. Tudo é instantâneo, com um ou dois cliques.

E os idosos? Os idosos sabem andar com dinheiro e contá-lo? Então certamente saberão andar com um celular e fazer scan. Não é muito mais difícil. Ninguém perguntou aos idosos se conseguiriam fazer contas depois do fim do escudo português ou da lira italiana, por exemplo. Mas eles adaptaram-se ao euro. Tiveram de o fazer. Não será, por conseguinte, mais fácil fazer scan? A cidade digital pode bem ser a etapa seguinte no processo de globalização, um processo no qual a China pode ser a timoneira de uma nova ordem, alternativa (ou, quanto muito, complementar) à que tem sido tradicionalmente dominada pelo Ocidente.

Paulo Duarte, PhD – Especialista na Nova Rota da Seda chinesa / duartebrardo@gmail.com

Revista Sociedade Militar – Geopolítica /

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Sociedade Militar