Paulo Duarte

China – Países lusófonos: desafios e oportunidades da Faixa e Rota chinesa – Paulo DUARTE

China – Países lusófonos: desafios e oportunidades da Faixa e Rota chinesa

Paulo Duarte, PhD / Especialista na Nova Rota da Seda chinesa /      duartebrardo@gmail.com

As trocas comerciais, relativas a 2017, entre a China e os Países de Língua Portuguesa superaram a barreira dos cem mil milhões de dólares. A que se deve este crescimento exponencial, após dois anos de quebra?

O reforço do comércio entre a China e os Países de Língua Portuguesa deve ser analisado à luz do contexto macro. A economia chinesa procura recuperar face a um cenário menos positivo comparativamente ao extraordinário desempenho que a tem caraterizado nas últimas décadas. A este facto acresce a emergência notável de uma classe média na China – que é maior que toda a população dos Estados Unidos – a qual tem possibilidade de ter uma dieta mais vasta (carne e peixe) e mais exigente (por exemplo, procura crescente de frutos exóticos). Junte-se ainda o cenário demográfico. Hoje já é possível ter o segundo filho na China. Tudo isto ajuda a compreender a busca imparável, por parte da China, de petróleo, alimentos e serviços um pouco por todo o mundo (entre outros, o turismo, já que cada vez mais os chineses viajam).

É neste contexto – que tem como pano de fundo a Faixa e Rota[1]chinesa – que temos de olhar para os números e, neste caso concreto, para o crescimento exponencial do comércio com os Países de Língua Portuguesa. Um dos objetivos da Faixa e Rota chinesa é justamente o de dar trabalho às empresas de construção chinesas um pouco por todo o mundo. Afinal de contas, importa ter presente que o grande motor do crescimento da economia da China nas últimas décadas tem sido precisamente a indústria da construção. Não é por acaso que Portugal e a China assinaram recentemente um memorando de entendimento para a construção e desenvolvimento de infraestruturas de transporte, rodoviárias e ferroviárias, nos países de língua portuguesa.

A Faixa e Rota chinesa precisa de recursos energéticos, matérias-primas, mas tão ou mais importante, de continuar a assegurar a construção, o tal motor de crescimento de uma economia que quer recuperar a sua performance anterior. Não esqueçamos, por outro lado, que o Português é a quinta língua mais falada do mundo, o que torna quase inevitável a China, através da sua Faixa e Rota, dar mais atenção aos mercados de língua portuguesa, nos quais já tem (caso do Brasil e Angola) uma presença bastante ativa. Tal presença e dinamismo tende a intensificar-se, impulsionada pelo aumento de população (que ocorrerá na China nos próximos anos).

Ao longo dos últimos anos, foram várias as empresas chinesas que investiram em setores tão essenciais da economia portuguesa como a energia, a saúde ou a indústria seguradora. O que poderá significar, em termos económicos, para Portugal esta mudança de paradigma?

Portugal não tem, é sabido, petróleo nem gás, contrariamente ao que sucede com o Brasil, Angola ou Moçambique, mas nem por isso é menos interessante para a China. As exportações portuguesas distinguem-se fundamentalmente na área do azeite, da cortiça e dos serviços (incluo aqui o setor do turismo). Num contexto em que mais chineses (a tal classe média que pode, ao contrário do passado, viajar) querem e podem efetivamente conhecer outros países, Portugal pode beneficiar consideravelmente do facto (de além do que sucede na sua parte continental) dispor de aeroportos capazes de receber aviões de longo curso (sem necessidade de escala) quer na Madeira, quer nos Açores (penso fundamentalmente aqui na pista das Lajes, maior que a de S. Miguel). Ver a figura 1.

      

Visitar Portugal pode e deve ser mais bem aproveitado pelo grande potencial que as ilhas juntam aos destinos geralmente mais procurados, como Lisboa, Porto, Coimbra e Algarve. Mas importa que Portugal dê mais visibilidade aos seus recursos insulares. A China é atualmente um grande investidor em Portugal (o terceiro parceiro da China no universo dos países de língua portuguesa). É verdade que os chineses têm prestado um contributo muito positivo nos setores da energia, saúde e indústria seguradora. Ora, o país pode sair ainda mais beneficiado se o turismo chinês ganhar contornos visíveis, como espero. Para já, fico bastante satisfeito em saber que desde finais de julho de 2017, Portugal e China dispõem de um voo direto entre Lisboa e Pequim, várias vezes por semana. É algo que outros países europeus já possuem há algum tempo, mas que Portugal – fruto da sua pequena dimensão territorial e, naturalmente, população – pode, por via do turismo, contribuir para que este voo direto passe a ser diário. É através destes pequenos passos que o caminho se constrói e se cimenta.

O projeto de fazer do porto de Sines, um entreposto na “Nova Rota Marítima da Seda” é viável?

Não só é viável tecnicamente, como pode ainda dinamizar o aeroporto de Beja, para o qual nem sequer as companhias low-cost querem voar. Com o ímpeto que o porto de Sines e o aeroporto de Beja poderão dar à Faixa e Rota chinesa (em ambas as componentes terrestre e marítima), o volume do investimento direto da China em Portugal tenderá a aumentar. Penso, por exemplo, ao contributo que Sines pode prestar aos contentores chineses, recebendo, por mar, produtos inacabados, que podem ser processados e concluídos em solo português, e, portanto, europeu, para posterior venda aos restantes países da União Europeia (com as respetivas comissões/ganhos para Portugal). Sines pode e deve proporcionar uma plataforma logística multimodal, ou seja, uma plataforma para onde convergirão rodovias e ferrovias.

A ideia é prolongar a atual linha férrea que é, atualmente, a mais comprida do mundo (supera inclusive a extensão do Transiberiano) e que liga Yiwu (ver a figura 2) a Madrid, fazendo com que no futuro, em vez de esta terminar em Madrid, termine em Sines. A partir daí, os contentores de mercadorias provenientes da China podem seguir viagem, por navio, até às Américas. Ou, o inverso, a Sines podem, igualmente, chegar por navio mercadorias que depois serão expedidas por comboio utilizando a dita linha ferroviária. Por outro lado, Beja reforça a rede marítima, ferro e rodoviária, permitindo o transporte aéreo para mercadorias perecíveis ou sensíveis à humidade, que não podem esperar, por conseguinte, muito tempo nos portos nem aguentar o longo frete marítimo. Sines é, por todas estas razões, não só importante ao nível logístico, como também geopolítico, ao colocar Portugal na vanguarda da Faixa e Rota chinesa.

Que tendências poderão vir a pautar as relações entre a China e os Países Lusófonos (sobretudo os africanos) no curto e médio prazo?

Tendo em conta que uma parte dos projetos que a China mantém hoje com os países africanos (assim como noutros continentes) foram ponderados e concebidos pouco antes do lançamento da Faixa e Rota (em setembro de 2013), então apenas muda a designação, para mais apelativa neste caso, da série de empreendimentos chineses em África.

Os proveitos que os países lusófonos (sobretudo os africanos) poderão retirar compreendem desde o reforço do know how local (através da partilha de técnicas e experiências chinesas com os quadros locais), à aprendizagem do mandarim (língua claramente de futuro e ensinada, por exemplo, nos inúmeros Institutos Confúcio que já existem por toda a África), bolsas de investigação e programas de auxílio ao desenvolvimento; reforço de competências em várias áreas (como na indústria agrícola, em que a China investe, através da aquisição de terrenos, joint ventures, entre outros); a construção de infraestruturas várias (à semelhança do que já tem vindo a fazer); melhoria do setor dos transportes e, naturalmente, extração de recursos energéticos e matérias-primas. Por outro lado, importa ter presente que a China é um grande exportador de armamento e produtos de eletrônica (como telemóveis), para África. A este respeito, confesso que fiquei surpreendido quando há uns cinco anos, ao aterrar em Luanda, li um enorme cartaz, estrategicamente localizado antes mesmo de chegar ao terminal de entrega da bagagem no aeroporto, contendo propaganda à empresa chinesa Huawei.

A extração de recursos pode ser muito positiva, ao invés de replicar uma lógica que muitos interpretam como ‘neocolonizadora’, se os países africanos procurarem repartir os dividendos através do reforço das condições de vida da população local. A aposta na diversificação das economias dos países lusófonos africanos é fundamental, quanto mais não seja para evitar que quando cai o preço do petróleo, suceda que os líderes de países como Angola, por exemplo, peçam desesperadamente mais crédito à China. A China concede várias formas de auxílio, mas em troca pede que o Estado anfitrião seja responsável na gestão dos recursos e aproveitamento do capital humano e financeiro chinês.

Os ventos de mudança que sopram atualmente em Angola podem ser promissores para canalizar ainda mais investimento para o país, que perde apenas para a Arábia Saudita ao nível de exportação de petróleo para a China. O futuro das relações entre a China e os Países Lusófonos é extremamente positivo. Veja-se o caso, por exemplo da prospeção e exploração de gás em Moçambique, ou do posicionamento geoestratégico de Cabo Verde, muito interessante num futuro, diria a médio-longo prazo, para a construção de mais uma base militar chinesa (na convergência das plataformas africana, latino-americana e europeia). Não é por acaso que no passado 27 de novembro de 2017, a China fez questão de mudar (eu estive presente) a designação do centro de estudos sobre os países de língua portuguesa para Centro de Estudos Chinês dos Países de Língua Portuguesa.[3] Também não é por acaso que Pequim organiza, cada vez, mais uma série de iniciativas com vista ao fomento dos laços com a lusofonia.[4] É porque existe um potencial notável na cooperação entre o mercado chinês e os países/regiões falantes do Português. Macau tem aí um papel notável. Contudo, a China pode perfeitamente prescindir de Macau no seu trato com os países de língua portuguesa (até porque o bilateralismo tem pautado, até há alguns anos, a política externa chinesa), mas Macau não pode nem deve prescindir da China continental. Que o digam por exemplo as empresas de pequena e média dimensão de Macau, cuja internacionalização torna premente que estas se aliem a outras empresas de maior dimensão e com experiência internacional, mas que estão localizadas no sul da China. Macau dispõe de uma importante vantagem competitiva face a Hong Kong: o trilinguismo em várias empresas (Português, mandarim e inglês) vs o bilinguismo de Hong Kong (inglês e mandarim). Tendo em conta o magnífico potencial das regiões e países falantes do português, os esforços devem ser mútuos, o que pressupõe ir ativamente ao encontro da China, ao invés de ficar parado à espera desta.

Em 2017 a China anunciou a construção da sua primeira base militar no estrangeiro (no Djibouti). Esta é uma tendência que se pode vir a estender ao espaço lusófono?

Esta é uma temática que me é cara, porque tenho acompanhado de perto a base de Djibouti e em geral, a chamada ‘estratégia do Colar de Pérolas’ no Oceano Índico, embora a China recuse qualquer alusão oficial seja a bases navais, seja à dita ‘estratégia do Colar de Pérolas’. As mudanças que a China opera atualmente ao nível da geopolítica e da geoestratégia são algo, quiçá, de ‘novo’ face a uma política tradicionalmente resguardada do intervencionismo militar, como tem sido a política chinesa. Mas já não são assim tão ‘inéditas’ se atentarmos no que defende, por exemplo, Paul Kennedy: o nascimento e a queda das grandes potências e impérios é algo relativamente natural na história. Ou seja, os impérios ascendem, estão um certo tempo no auge, acabando, depois, por declinar. Aconteceu isso com os Impérios Britânico, Português, Francês, entre tantos outros. Tendo em conta que os Estados Unidos atravessam hoje uma fase de declínio relativo (não absoluto, note-se, mas relativo), a questão não é se os Estados Unidos vão acabar, também eles, por cair num declínio absoluto. Não se trata de se, mas de quanto tempo mais permanecerão no firmamento do poder mundial, enquanto superpotência.

Vários autores, nos quais me incluo, são da opinião de que a próxima superpotência será a China. Note-se que a China já é uma grande potência, mas não uma superpotência. No espaço de 15 a 20 anos – se a economia chinesa recuperar (a Faixa e Rota chinesa constitui, aliás, um estímulo para tal) e se o ritmo de modernização das forças armadas chinesas se mantiver constante – é possível que a China venha a substituir os EUA, dizia eu, enquanto superpotência. Feito este parêntesis para explicar o que está a suceder, devo dizer que à luz destes argumentos a abertura de bases no estrangeiro deve ser vista com alguma naturalidade por parte de uma potência que está a percorrer um caminho semelhante ao que os EUA percorreram há várias décadas. A doutrina marítima chinesa inspira-se, curiosamente, nas teses de um americano, Alfred Mahan, para quem o comércio subentende uma marinha de guerra e uma marinha mercante, bem como pontos de apoio ao longo do oceano (o tal Colar de Pérolas). Como explico no último livro que escrevi – A Faixa e Rota chinesa: a convergência entre Terra e Mar, publicado em Outubro de 2017 pelo Instituto Internacional de Macau – Djibouti é, a meu ver, apenas o início de uma série de bases navais que a China tenderá a abrir mundo fora, aos poucos e poucos. A base das Lajes (nos Açores) e Cabo Verde, fruto da sua posição geoestratégica, poderão, num futuro não muito distante (à exceção eventualmente das Lajes, por causa da questão sensível da OTAN e da presença dos EUA) albergar as próximas bases chinesas.

[1] Mais conhecida no Brasil por Um Cinturão, Uma Rota.

[2] Ditos celulares em Português do Brasil.

[3] https://portuguese.xinhuanet.com/2017-11/28/c_136782826.htm

[4] https://portuguese.xinhuanet.com/2017-12/01/c_136793464.htm

Revista Sociedade Militar – Artigo recebido do autor – Paulo DUARTE é PHD – Especialista na Nova Rota da Seda chinesa.

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