Geopolítica

Quando a morte te bater à porta, deixa que seja a empregada a abrir

Paulo Duarte // PhD, Universidade Católica de Louvain

 Quando a morte te bater à porta, deixa que seja a empregada a abrir

Confesso que sempre senti um certo fascínio em um dia escrever um artigo de opinião que tivesse por título este que aqui apresento: “Quando a morte te bater à porta, deixa que seja a empregada a abrir”. Estava na minha to-do list. Só não sabia quando. Faltava um pretexto qualquer. Até que Putin me ajudou. Atenção: não tenho nada contra Putin, como também não tenho nada contra Trump. Só que se puder escolher entre um e outro, não escolhia nenhum.

Por que digo que Putin me ajudou? Porque a serem comprovadas as suspeições levantadas pelo Reino Unido, face ao recente envenenamento do ex-expião Sergei Skripal em solo britânico, então já é longo o histórico de mortes alegadamente encomendadas. Quem não se recorda da luta pela vida entre um ex-agente secreto do KGB que, exilado no Reino Unido, não sobreviveu ao letalíssimo polónio 210. Alexander Litvinenko faleceu, em 2006, em Londres. A luta era desigual. Era apenas uma questão de dias. A morte podia ter sido, afinal, rápida, como a de Boris Nemtsov, que, em 2015, se passeava perto do Kremlin quando, “inesperadamente lhe dispararam quatro tiros nas costas”.[1] Mas não foi.

Por vezes, a técnica varia: não necessariamente o gás ou o polônio, nem sequer a pistola. Basta uma “compressão ao pescoço” (como provou a autópsia[2]) realizada com o talento mórbido de quem conhece o assunto. Foi assim que morreu o empresário russo Nikolai Glushkov. Em Londres, uma vez mais. E, já agora, também ele exilado no Reino Unido. Um leigo na matéria começa a achar coincidência a mais. É que como se não bastasse Glushkov era amigo íntimo de outro russo, um magnata, chamado Boris Berezovsky. Outra vez no Reino Unido e outra vez um russo e outra vez um exilado. Déjà-vu?

Mas o que mais estranha ao leigo na matéria não é ser no Reino Unido, nem a forma como a morte é administrada (embora haja um certo je ne sais quoi de suspense quanto ao próximo alvo, alegadamente). O que o cidadão comum se pergunta é o que é que estes cadáveres – que já não falam, como se compreende – diziam em vida, antes de se tornarem cadáveres. Ora, aí há um aspeto unânime: todos eles eram demasiado críticos de Putin.

Dito isto, seria estranho o Reino Unido vir agora acusar a Rússia da morte de mais um exilado russo, o tal Sergei Skripal com que comecei o texto, não fosse o Reino Unido reparar, como alega, no histórico de mortandade relativo aos exilados russos precisamente no Reino Unido.

Mas há uma diferença nesta última morte: a arma química não foi administrada só em Skripal. Alegadamente, o envenenamento com gás neurotóxico levou a que 21 pessoas fossem tratadas por sintomas de intoxicação.[3] Dito de outro modo, desta vez poderia ter morrido mais gente, ‘inocente’. E daqui vem a escalada diplomática. Começou com a retaliação do Reino Unido, a que se seguiu a resposta russa. E, posteriormente outros, já que as alianças pressupõem frequentemente que terceiros não diretamente lesados venham em defesa, ou pelo menos, reajam por contiguidade aos interesses ‘comuns’ ao parceiro.

É neste contexto que se ‘compreende’ que os Estados Unidos, não diretamente lesados, tenham ditado a expulsão de 60 diplomatas russos. É ainda neste contexto que se ‘percebe’ que uma parte significativa dos países da União Europeia tenha decidido alinhar, expulsando, por sua vez, outros tantos diplomatas russos. A Rússia reage, a seu turno, expulsando outros tantos diplomatas estrangeiros.

Usando uma analogia, este jogo do quem expulsa mais faz lembrar o que algumas seitas defendem: o mal combate-se com mais mal. O mais irônico da história é o estar fora dela e observar que, afinal, a História é cíclica: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Ou, a célebre máxima: colhes o que semeias. A CIA nunca matou ninguém, nem direta nem indiretamente e, portanto, por que haveria a Rússia de querer assassinar russos exilados no Reino Unido? Não cabe na cabeça de ninguém. E como se não tens provas não podes acusar ninguém, Putin argumenta: mostra-me lá vestígios desse veneno que dizem que se produz na Rússia. Provem lá isso. Quem tem razão? Os alegadamente ‘obcecados’ com a Rússia? A Rússia tem tanta coisa com que se preocupar: por que é que haveria de interferir com as eleições nos Estados Unidos ou silenciar os russos incômodos no exílio? Parvoíce tamanha que já levou, inclusive, um embaixador russo na Austrália, Grigory Logvinov, a vir dizer que “Moscovo está cansado de tanta propaganda contra si”, e que o mundo pode estar a caminhar para “uma situação de Guerra Fria caso o Ocidente continue a fustigar a Rússia”[4].

O que pode fazer confusão a um leitor que esperava tudo menos paz na Coreia do Norte, e, portanto, um cenário de mútua destruição nuclear, é ver agora Trump ansioso em apertar a mão ao líder norte-coreano. Mas, mais estranho que isso, é ver, de repente, alguém fazer da Rússia o novo inimigo do Ocidente (já não tanto a Coreia do Norte)… Não bate certo… Os mísseis que afinal a Coreia do Norte estava a ultimar… Agora a televisão, vem exibir o prestígio de um novo míssil russo, hipersônico e capaz de passar despercebido a qualquer radar. Não estamos aqui a confundir alvos? Outra vez a Guerra Fria? Não sei. São meros desabafos de um homem que perante tanto alegado homicídio, com ou sem gás, com ou sem compressões no pescoço, com ou sem tiros, lhe apetece por fim dizer: quando a morte te bater à porta, deixa que seja a empregada a abrir.

Revista Sociedade Militar –  Paulo Duarte // PhD, Universidade Católica de Louvain

[1] https://zap.aeiou.pt/principal-opositor-de-putin-assassinado-tiro-junto-ao-kremlin-60319

[2] https://www.dn.pt/mundo/interior/policia-britanica-abre-investigacao-a-morte-de-ex-empresario-russo-9192838.html

[3]https://oglobo.globo.com/mundo/ataque-ex-espiao-russo-no-reino-unido-intoxicou-21-pessoas-22469454

[4] https://www.news.com.au/finance/work/leaders/russias-ambassador-destroys-west-well-be-deeply-in-a-cold-war-situation/news-story/7cc361962ebd9d30a97e2928830b36c1

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Sociedade Militar