Forças Armadas

Revolta da chibata – 110 anos. A chibata moral, as históricas e inglórias lutas dos graduados das Forças Armadas

Uma reflexão rápida sobre o passado e o presente. (Republicado)
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Festas como a independência e o 15 de novembro são momentos propícios para lembrar que a história já consagrou como corretas as atitudes de vários subordinados que – acreditando que estavam agindo da melhor maneira que podiam – decidiram lutar pela defesa de seus pontos de vista. A própria proclamação da independência foi vista como um ato de rebeldia de um subordinado que não aguentava mais ser explorado, aviltado por seus superiores. Na época alguns oficiais generais portugueses exigiam que Dom Pedro continuasse a se submeter completamente e tentaram até obrigá-lo a retornar para Portugal.  

Em 9 de janeiro de 1822 o príncipe regente avisou que permaneceria no Brasil, a data é conhecida como o Dia do Fico.

Os fatos evoluíram naturalmente e alguns meses depois o Príncipe, que era considerado um rebelde, um insubordinado, declarou a independência do Brasil. Hoje é considerado um herói.

A Revolta da Chibata

90 anos após a declaração de independência e 22 anos depois da libertação dos escravos – em 1910 – um grupo de militares ousou, em nome do fim dos terríveis castigos físicos praticados na Marinha do Brasil, após muitos pedidos por meio dos chamados “tramites hierárquicos”, também lutar para defender seus pontos de vista. Acabaram se vendo, após uma sucessão de acontecimentos, obrigados a se rebelar de vez e – como homens de coragem – se recusaram a continuar passivos, a ser tratados como animais.

Na verdade vejo-os como alguns dos homens mais disciplinados de todos os tempos, só depois de anos ou décadas assistindo punições terríveis ou sendo eles mesmos massacrados por castigos físicos – as vezes centenas de chibatadas – ousaram se sublevar. Todos deveriam ser considerados heróis e seus descendentes sim deveriam ser encontrados e recompensados por aquilo que seus antepassados sofreram. Estes deveriam ser chamados ao Palácio do Planalto e ali deveriam receber em sessão solene as desculpas do estado brasileiro, das Forças Armadas, da Marinha do Brasil. As punições físicas haviam sido abolidas em todo o mundo civilizado, mas a oficialidade da Marinha do Brasil insistia em ver a chibata como sua melhor técnica de persuasão.

A coisa acabou crescendo mais do que os próprios marujos sublevados esperavam e o movimento ficou conhecido como a Revolta da Chibata. “Um protesto que se transformou numa revolta”, são as palavras do próprio João Cândido, que é representado por uma discreta estátua num canto da Praça XV no Rio de Janeiro, injustamente escondida atras da nova estação do VLT.

Bem no meio da praça ficou a estátua de D.João VI, o rei fugitivo, onde não se enxerga heroísmo algum. Talvez os pombos saibam disso tudo, sempre há um a fazer suas necessidades na cabeça do português.

Alguns negam que foi João Cândido quem comandou a chamada sublevação dos marujos.

A mim isso não importa, não há como negar que ele estava lá e penso que o ALMIRANTE NEGRO na verdade representa uma classe NOBRE, que era tratada como animais. Por isso todas as vezes que passo por ali rendo uma homenagem silenciosa àquele homem… àqueles homens de brio, verdadeiros homens de honra que são representados por ele.  

Pouca gente menciona, mas a marujada não queria só o fim dos castigos físicos. Sempre pediram oportunidade para estudar, uma escala de serviço mais humana e o afastamento dos oficiais violentos. Mas, as reclamações eram vistas como coisa de indisciplinados, de revoltados.

E jamais a sua luta foi oficialmente reconhecida como razoável, coerente.

Naquele tempo se achava que homens com estrelas nos ombros eram os salvadores da pátria e que suas decisões estavam sempre corretas. A própria sociedade civil os via como uma espécie de deuses da sabedoria.

Algo semelhante aos dias atuais?

Por mais obvio que seja que rejeitar castigos físicos é algo natural, louvável, o governo Brasileiro e as Forças Armadas se negam a aceitar João Cândido como um verdadeiro herói.

Na minha opinião sua estátua deveria estar na frente do Primeiro Distrito Naval e não escondida naquele canto da Praça XV. 

Rejeitando um projeto de lei

Nos últimos meses vemos uma grande movimentação de militares da reserva tentando levar até o Presidente da República suas contestações contra uma lei que acreditam que os prejudica. Como em 1910, graduados não têm voz, suas associações não são reconhecidas e as cúpulas militares se declaram como os únicos que têm o direito de discutir as carreiras, ainda que nas Forças Armadas existam duas carreiras, uma de oficiais e outra de praças.

Depois de tantos casos complicados, como o 28.86%, poucos acreditam que os primeiros realmente zelam pelos segundos.

Lideres de associações, que viram ao longo dos últimos anos o Clube Militar do Rio de Janeiro atuar politicamente de forma intensa, convocando manifestações de oficiais associados e agindo em defesa da necessária mudança no país, têm que agora digerir ordens que indicam que militares – mesmo na reserva – não podem de forma coletiva pleitear direitos.

Normas que batem de encontro umas com as outras frequentemente são invocadas as pressas para proibir militares da reserva de se manifestar politicamente. O código Penal Militar diz uma coisa, os regulamentos dizem outra e a lei 7.524 refuta os dois, permitindo ao militar da reserva se manifestar sobre qualquer assunto, exceto de caráter sigiloso.

Em artigos recente relembrei a magistral colocação feita por Barbosa Lima Sobrinho em 1963, que nunca esteve tão atual: “… não há como entender, ou justificar, que generais possam ter direito a manifestações políticas e que o mesmo direito seja negado aos suboficiais, de modo a que sejam presos aqueles que pretenderam seguir os exemplos de seus superiores hierárquicos (…) Se a tropa se convence de que, no plano político, os superiores gozam de um direito que é recusado aos sargentos, a conseqüência será … a formação de um sentimento de animosidade, de um conflito que, por não se manifestar de imediato, não será menos perigoso, como uma força latente de desagregação (…)” (BARBOSA L. SOBRINHO, in O Semanário, 23 a 39-5-1963, p.5).

No projeto de lei apresentado e aprovado – entre tantos absurdos – havia um item curioso, derrubado pelos graduados. Por mais que os regulamentos cobrem que todos os militares representem bem as forças, o Ministério da Defesa teve a desfaçatez de inserir no PL 1645, somente para os generais – na ativa a reserva – uma gratificação de representação. Estariam todos os demais isentos de ser obrigados a bem representar as Forças Armadas? Note-se que representar envolve muito mais do que somente vestir-se bem. Representação engloba comportamento em público, modo de falar, higidez financeira etc.

Alguns itens enquadrados como má representação

– Contrair dívida ou assumir compromisso superior às suas possibilidades, que afete o bom nome da Instituição;

– Esquivar-se de satisfazer compromissos de ordem moral ou pecuniária que houver assumido, afetando o bom nome da Instituição;

– Ter pouco cuidado com a apresentação pessoal ou com o asseio próprio ou coletivo;

– Portar-se de maneira inconveniente ou sem compostura …

Estariam todos – exceto os generais – dispensados disso tudo? Felizmente, por conta da intensa luta dos graduados no Congresso Nacional, essa vantagem injusta foi derrubada, os cofres públicos foram poupados de mais uma régia vantagem concedida a categoria já abastada.

Indo ao Parlamento

Alguns – que se acham superiores – insistem em ver como afronta a hierarquia e à disciplina o fato de sargentos e suboficiais levarem até os parlamentares as suas queixas. Ora, pessoalmente, como militar da reserva, sociólogo e jornalista, enxergo mais como afronta contra a hierarquia o fato de um general da ativa – ocupando cargo civil e falando em nome de um Presidente da República que sempre incentivou as associações de graduados a lutar por melhorias salariais – se dirigir à grande mídia se referindo a seus subordinados como “estamentos muito inferiores”, que por isso não teriam o direito de levar a sociedade e parlamento a discussão sobre um projeto de lei que os afeta diretamente.

Lembro-o que projetos de lei são discutidos por parlamentares, eleitos pelo povo. E que – portanto – o povo têm o direito de opinar sobre as suas decisões.

A afirmativa que diz que os chefes sabem o que é melhor para seus subordinados é derrubada vez por outra, sempre que – com a ajuda da justiça – se revelam as inúmeras arbitrariedades e erros cometidos por aqueles que ocupam os luxuosos gabinetes, nos andares mais altos.

As próprias medalhas concedidas para mensaleiros – cassadas só após muita pressão popular – são também grande prova de que generais nem sempre acertam.

Chefes militares devem ser reconhecidos sempre como tais, as instituições não subsistem sem a hierarquia e sem a disciplina. Mas, devem ter também a humildade de reconhecer que as instituições precisam evoluir – não só em aspectos tecnológicos – mas também no trato com o pessoal.

Infelizmente. E muito infelizmente mesmo! Quase todas as mudanças para melhor no que diz respeito a humanização de nossas instituições chegaram após lutas como as de João Cândido e de muitos outros heróis anônimos que em algum momento ousaram ir contra o senso comum.

Está na hora de mudar isso, definitivamente a categoria precisa de representantes nas casas legislativas. Se no passado praças eram castigados com a chibata, hoje – embora não existam mais as “rubras cascatas” mencionadas por Bosco e Aldir Blanc – graduados e suas famílias – apesar de ser literalmente quem realmente toca o barco – são ainda relegados a segundo plano, tratados como uma espécie de sub-cidadãos, sem direito a opinar sobre suas próprias vidas e muito menos de lutar por melhores carreiras e salários.

Seria isso uma nova espécie de chibata?

Hoje não é mais necessário tomar navios, pegar em armas ou ir contra a legislação vigente. A batalha se dá no campo das idéias, da argumentação, contra as negativas, caras feias de superiores hierárquicos e até mesmo de pares que nem sempre discernem muito bem o que e legal do que é ilegal.

Um salve, um Bravo Zulu, um brinde e nossa melhor continência para todos que ousam ingressar em lutas inglórias, bem intencionados e em favor daquilo que acreditam.

Afinal, aquele que hoje é reconhecido como o Rei dos reis foi quem empreendeu a mais inglória de todas as lutas.

Robson / Militar R1, Cientista Social, jornalista

Abaixo a música o Mestre Sala dos Mares – homenagem a João Cândido Felisberto, com a letra original, sem censura (Almirante Negro).

Comentários do post antigo / republicação

Eduardo Pontes

Ai vai a ladainha até a eleição: Graduado vota em graduado, isso significa não votar em oficiais, esposas dos mesmos, filhos dos mesmos, avós, avôs, primos, papagaios de pirata (graduados que estão ali para ajudar o oficial), irmãos e demais coligados a esses senhores pois os eleitos se tornaram avatares do oficial e você graduado é quem terá ajudado a os por lá. GRADUADO VOTA EM GRADUADO.

Wagner Coelho

Parabéns pelo texto, rico em detalhes e muito bem exposto!

Luiz Marinho

Acredito que tudo se resolverá no campo das ideias. Adeus síndrome de Estocolmo.

Subten Preteridos

Querem calar os praças e surrupiaram seus direitos com uma lei imunda e inconstitucional, aprovada as pressas e sem debate com os graduados. ´´PRAÇAS, SOMOS 82% DAS FFAA, VOTEMOS EM PRAÇAS E VAMOS VARRER OS OFICAIS DA POLITICA“.

Luiz Sergio Macedo

Bom presidente, embora não esta sendo nada bom os meses que seguem após a sanção da reestruturação das Forças Armadas. Reforma na qual os únicos e muitos beneficiados foram os oficiais generais com percentuais altos de aumento dentro do intitulado “meritocracia”, como também os demais oficiais e praças de carreira. Reforma que privilegia tão somente uma classe de militares, pois sim mérito a quem tem de direito, porém não pode esquecer de uma classe que na ativa ou inatividade trabalhou e muito. Não devias jamais esquecer aos que verdadeiramente o elegeu, pois os graduados do Quadro Especial eVer mais

Jorge Gonçalves

Excelentissimo Sr. Prtesidente da Republica, Militar SUBALTERNO, da Ativa, da Resderva, Reformados e Pensionistas das Forças Armadas, não são Escravos, não são Vassalos, não são Empregado regido pela CLT, não estão pedindo Favor ou Esmolas a Vossa Excelência. Militares SUBALTERNOS, são componentes Essenciais à Segurança da Nação e´, não devem ser tratados com Descaso assim como V.Exa., vem tratando a Todos os SUBLTERNOS:
LEI Nº 13.954, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2019 – Estatuto dos Militares
Capítulo VII para DAS VEDAÇÕES, DOS DIREITOS, DOS DEVERES, DA REMUNERAÇÃO, DAS PRERROGATIVAS, DA Ver mais
Mesmo estando em 2020 e vivendo-se num Estado Democrático de Direito, querem proibir os militares de postarem textos como esse. Aproveitem, pois a liberdade de expressão parece estar com os dias contados.
Excelente texto. Transcreve a história e resgata uma memória de todos nós militares, da reserva ou não, vivida por nossos companheiros que muitos hoje já dormem. No entanto, faço uma simples e humilde consideração ao texto e se me permite também uma leve discordância. Não é no campo das ideias que se está travando uma guerra ou batalha, pois no campo das ideias podemos discordar das opiniões alheias mas como pessoas civilizadas, devemos respeitar as ideias dos outros. A batalha é travada contra leis e regulamentos absurdos nos impostos a força por aqueles que deveriam nos proteger e brigar pelVer mais
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