Forças Armadas

Memória, chibata e transformação social

“Memória, chibata e transformação social”

Robert Wagner Porto da Silva Castro[1]

Para além de uma capacidade individual da mente humana, a memória é também um construto social formado a partir das interações entre indivíduos de determinado grupo ou sociedade, fundamental para construção ou (re)afirmação de identidades e o estabelecimento de suas fronteiras. Nesse sentido, considerando que a memória é fruto de uma eterna relação entre passado, presente e futuro. Construída com base no passado, mas tendo em conta demandas do presente e perspectivas de futuro, a memória não apenas evidencia, mas também esconde. Nas palavras do historiador Daniel Aarão Reis, a memória quando “provocada, revela, mas também silencia”. E esses silêncios não são mais que “esquecimentos” que compõem a memória, sendo, portanto, uma opção em seu processo de construção. Esquecer ou lembrar são ferramentas empregadas no transcurso da edificação da memória, que se tornam ainda mais relevantes quando se trata de passados ainda em franca disputa, como o são os das muitas lutas sociais de grupos considerados “minorias” no Brasil.

Nesse sentido, o dia 22 de novembro de 2020, marca os 110 anos do movimento em que marinheiros da Armada Brasileira, em sua maioria negros, se levantaram em armas contra os castigos corporais que, mesmo extintos por Decreto desde o segundo dia da República, 16 de novembro de 1889, ainda eram aplicados na Marinha e cujo mais simbólico era o açoite de chibata. Daí o motivo da Revolta dos Marinheiros de 1910 ter ficado popularmente conhecida como “Revolta da Chibata”, após a obra do jornalista Edmar Morel. Que, para além de uma página pouco lembrada de nossa história – e aqui destaco o esforço em esquecê-la durante o processo de construção da memória nacional – representa um passado de lutas de um segmento marcado não apenas pelo desprestígio social, haja vista a origem pobre daqueles marinheiros, mas, principalmente, pela cor da pele. Em uma instituição que à época, assim como a própria sociedade brasileira, tinha sua “pirâmide hierárquica” composta por uma oficialidade de maioria absoluta branca em seu topo, e os segmentos basilares, portanto a maior parte do contingente, constituídos por marinheiros negros e pardos, aos quais, até 1910, se dedicavam os açoites de chibata, mesmo passados mais de dez anos da abolição da escravidão no Brasil.

Os marujos brasileiros sublevados, sob a simbólica liderança de João Cândido Felisberto, ao tomarem alguns dos mais poderosos navios de guerra do mundo e, navegando nas águas da Baía da Guanabara, colocarem sob seus canhões a capital federal, buscavam romper com a relação de cunho senhorial escravista que ainda vigorava na Armada. Incompatível com os “novos ares” da nascente República, mas que tinha raízes profundas na própria constituição da sociedade brasileira, formada a partir de uma lógica senhorial desumanizante, fundamentada nas relações sociais e na hierarquia outrora estabelecidas nas casas-grandes. Portanto, a hierarquia que se viu ameaçada com aquele movimento revoltoso na Marinha, em novembro de 1910, não foi aquela tipicamente militar, mas uma hierarquia social que, como nas antigas fazendas e engenhos, não tinha espaços para quaisquer ações de segmentos subalternos que não estivessem alicerçadas na absoluta obediência, mesmo frente aos castigos corporais dispensados àqueles marcados pelos pés descalços e/ou pelo uso dos sapatos pretos. Que, por regulamento, deveriam ser utilizados por grumetes, marinheiros e cabos; em conjunto com a farda branca, enquanto aos oficiais, suboficiais e sargentos; era destinado o uso de sapatos brancos com esse mesmo uniforme. Considerando que a grande maioria dos marinheiros era composta por negros ou pardos, o fato de manter seus pés “negros” quando fardados de branco, aparentando estarem descalços, reveste-se de grande simbolismo e indubitavelmente remete a um passado senhorial e escravista não tão distante daquele momento histórico.

Rememorar a Revolta da Chibata e seus ícones, entre os quais destaca-se João Cândido, importa não apenas para a história militar-naval brasileira, mas para a própria História de nosso país e, sobretudo, para as mudanças necessárias em nossa sociedade. Na medida em que nos remete a refletir sobre os modos distintos como brasileiros são tratados e destratados, ou como lhes são dispensados privilégios e desfavores, a partir de sua condição social e / ou, simplesmente, da cor de sua pele.

Após 110 anos da Revolta da Chibata, quando marinheiros se levantaram em armas pelo fim da chibata em plena República, muitos dos quais pagaram com suas vidas por essa afronta à “ordem hierárquica” e à “disciplina”, entre os quais muitos negros. Assistimos no Brasil, inertes e com uma assombrosa naturalidade, a um homem negro, João Alberto Silveira Freitas, ser surrado em público até a morte por dois “capitães-do-mato”, bem em frente à “casa-grande”, em pleno Dia Nacional da Consciência Negra. Um “espetáculo” que, infelizmente, faz parte de nossa constituição enquanto sociedade, e que, desde as casas-grandes e as senzalas, passando pelos navios da Armada até 1910, tem como um de seus objetivos reforçar uma hierarquia e uma disciplina sociais características de nossa sociedade.

Portanto, mais do que nunca, nessa disputa de memórias em que lembrar e esquecer são instrumentos para (re)construir nossa memória, é fundamental trazer à tona a “Revolta da Chibata”. Para que possamos, de fato, refletir sobre a sociedade que temos e sobre aquela que desejamos.

[1] Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em História Regional Platina -NPHR/UFPel e do Grupo de Estudos de História do Tempo Presente – PUCRS. Organizador do livro Marinheiros e cidadania no Brasil: contribuições para uma história social militar-naval, atualmente em fase de pré-lançamento pela Editora CRV. Currículo Lattes:  https://lattes.cnpq.br/0760600782030940 E-mail: robert.castro@edu.pucrs.br

Publicado em Revista Sociedade Militar

Veja: A chibata moral, as históricas e inglórias lutas dos graduados das Forças Armadas

Deixe um comentário
Compartilhe
Publicado por
Sociedade Militar