Forças Armadas

A face tenebrosa da Lei nº13.954/19 – “Oficiais generais e superiores envergonhados”


Artigo de colaborador. Este artigo foi sugerido por um suboficial veterano, que por muitos anos foi instrutor nas escolas militares da FAB, especialmente na EEAr. Ele relata que ao longo de 2020 recebeu diversos telefonemas e algumas visitas de antigos conhecidos. Todos sabem o que é a relação entre professor e aluno, mas quem já passou por uma escola militar sabe que o vínculo que se forja entre o instrutor militar e seus alunos transcende um pouco a mera “relação”.

Pois bem, ele conta que alguns oficiais superiores e mesmo alguns oficiais generais, que foram seus instruendos e que mantém por ele um carinho e um respeito que não se apagou com a ascensão na carreira, foram até ele dizer com todas as letras que estão profundamente envergonhados pela situação em que a Lei nº13.954/19 colocou a família militar e que sentem vergonha dos Comandantes que permitem que essa covardia (segundo o suboficial, essa palavra foi recorrente nesses desabafos!) se perpetue e não se pronunciam sobre o acordo feito entre o Governo e o Legislativo Federal. Segundo o relato, a humilhação que foi imposta aos veteranos e pensionistas chegou às casas desses oficiais por intermédio de seus pais, que são suboficiais ou viúvas de suboficias – inlusive ele diz que um desses oficiais superiores conta, entre consternado e indignado, que seu pai morreu em missão numa aeronave, e que isso aumenta-lhe ainda mais o espanto diante da glorificação da deslealdade, que é a Lei nº13.954/19.

A face tenebrosa da Lei nº13.954/19

Entre a traição e o desprezo, a lenta agonia do espírito militar

A lealdade é um aguilhão que não nos deixa esquecer que existimos para servir ao Exército e à Pátria, sem jamais nos deixarmos seduzir pela tentação de deles servir-se, ao que estaremos fatalmente sujeitos se, em qualquer nível, cedermos a interesses menores, sejam corporativos ou individuais.

Marcelo Oliveira Lopes Serrano – Cel R1¹

Os episódios vergonhosos passados em 2019 nos corredores do poder político federal e que culminaram na publicação da Lei nº 13.954 completaram recentemente o primeiro aniversário. Para os veteranos e pensionistas das Forças Armadas é uma data fatídica, uma chaga aberta, que sangra mais a cada dia. Aos primeiros, que honraram seu juramento feito na juventude perante a alma da Nação, representada pela Bandeira do Brasil, a “reestruturação” da carreira militar reservou perdas salariais em média de R$2.500² sem mencionar o insulto à hierarquia e ao mérito militar, uma vez que extinguiu a paridade secular entre ativa e reserva. Às pensionistas, filhas ou viúvas dos guerreiros que não mais estão conosco, a “malha de proteção social dos militares” trouxe uma funesta e torpe sobretaxação. Os miasmas dessa aberração legal estão se alastrando e já penetram os muros da caserna, causando mal estar em muitos. Até as famílias de militares estão sendo influenciadas. Mas o que não estava previsto no bojo malsão desta Lei é que a “família militar” é mais do que uma abstração baixada em portaria³, pelo contrário, é uma entidade viva, pulsante e que foi ferida de maneira tão covarde, que já dá sinais de que uma reação, ainda que oblíqua, está a caminho.

A natureza peculiar da atividade militar criou algo que se denominou “hereditariedade de vocação”, um “ethos” particular ao meio castrense, que, também por causa das limitações impostas às famílias, paradoxalmente ou como meio de compensação, proporciona  condições, inclinações “genéticas” aos membros dessas famílias a uma retroalimentação da carreira militar. O popular “filho de peixe, peixinho é”.

“Até meados do século XIX, o Exército brasileiro funcionava nos moldes patrimonialistas das forças coloniais portuguesas. Recrutados em bases personalistas, os oficiais eram, em sua grande parte, membros da nobreza lusa, filhos de oficiais superiores e sem formação específica ou treinamento”. “(…) Assim, a forte endogenia no recrutamento do alto oficialato, que atravessa todo Império, é mantida na República. Entre os generais de 1822-1860, cerca de 60% eram filhos de oficiais superiores, percentual que cresce para 66% no intervalo 1861-1889. Mais de ¾ dos generais do período 1890-1930 eram filhos de oficiais – a maioria, subalternos (43% do total conhecido). Essa maior presença de filhos de oficiais de patentes inferiores é que constitui novidade. As informações disponíves sobre as patentes dos pais oficiais entre os anos 1970 e 1990 mostram amplo predomínio (acima de 70%) de oficiais subalternos e praças” (CASTRO, 1993).4

Após a Segunda Guerra Mundial, as Armas brasileiras definitivamente mergulharam no universo tecnológico da guerra moderna. O militar profissional, o técnico especializado, o sargento, deslocou sensivelmente o eixo das Forças Armadas, arrastando seu centro de gravidade um pouco mais para baixo na hierarquia de patentes. Os subtenentes e sargentos especialistas nas mais diversas áreas (só na Escola de Especialistas da FAB, já foram quase trinta especialidades) tornaram-se necessário vetor do futuro. A “hereditariedade  vocacional” não acabou por isso, pelo contrário, ampliou-se. Agora, com a mudança de enfoque para a guerra tecnológica, o pessoal técnico passou a fazer parte da matriz “genética” militar. Os filhos de suboficiais (normalmente adolescentes) migram agora para as academias militares. Temos hoje coronéis e até oficiais generais que são filhos de suboficiais.

Eis que vem à lume a Lei nº13.954/19 e o drama de ter o salário reduzido (como está ocorrendo com as pensionistas) ou de ter sido descartado pela Força Armada a que pertence como alguém “desleixado, preguiçoso e que deixou passar oportunidades” de ascensão profissional por pura inércia (como foi jogado na cara dos veteranos pelo Ministro Fernando Azevedo) está sendo, em alguns casos, um drama também doméstico. No mundo real, os oficiais superiores, e até alguns generais que são filhos de graduados não estarão sendo questionados pelos pais e mães viúvas? “Como isso pode acontecer, e principalmente sob a presidência de quem conhece o militarismo por dentro?” Ser visto como parte de uma conjuração nefasta cuja única finalidade parece ter sido mascarar um aumento de salário para a própria categoria representativa de menos de 20% da tropa em detrimento do restante, que é efetivamente o coração palpitante das Forças Armadas  pode ser um espinho silencioso na carne desses oficiais, que conhecem bem os dois lados.

Sabemos que o que mantém um grupo forte e unido são as dificuldades. Da família às nações, os momentos mais dolorosos são o solo em que germinam as sementes de uma paz mais duradoura. O militar é uma classe muito particular, já que por mais que “a guerra só nos cause dor”, o que nos mantém fortes e coesos é justamente o conflito! É nele, ou talvez dele, que brota a flor da profissão, que é a lealdade. Mas na ausência do flagelo maior da humanidade onde fica a lealdade? O que torna os elementos de um grupo de combate autorreferentes, isto é, leais uns para com os outros, é também a desesperada e vital dependência que guardam entre si. Se um general não for leal para com seus oficiais, em quanto tempo virá a traição? Se um sargento não honrar seus soldados, por quantos dias ainda viverá no campo de batalha?

Como um sinal dos tempos, a Lei nº13.954/19 talvez tenha vindo finalmente legitimar o pensamento “classista” de muitos nas Forças Armadas (principalmente MB e FAB). O pensamento e a cultura da despersonalização, da “coisificação” e do desprezo para com os graduados. A lealdade do superior para com o subordinado afrouxa na paz. Pode tornar-se interesseira e utilitária, chegando às raias da exploração pura e simples. A guerra, num certo sentido, mutila e mata muitos soldados, mas a falta dela talvez destrua-lhes algo mais importante, o espírito.

JB Reis – PUBLICADO NA REVISTA SOCIEDADE MILITAR

¹ https://www.ebrevistas.eb.mil.br/RMM/article/download/51/75/

² Capitão QOEA da FAB que ingressou na Reserva entre 2001 e 2019 receberá  R$ 3.600,00 a menos que outro Capitão QOEA transferido para a Reserva até o ano de 2000. Já o Capitão QOEA que ingressar  na Reserva a partir de 2021 receberá R$ 3.450 a mais que aquele inativado entre 2001 e 2019.

O Suboficial da FAB que ingressou na Reserva entre  2001 e 2019 receberá R$ 1.900,00 a menos que outro Suboficial que ingressou na Reserva até o ano de 2000. Já o Suboficial que ingressou na Reserva a partir de 2020 receberá R$ 1.800,00 reais a mais que aquele que foi inativado entre 2001 e 2019.

³ A Portaria EB nº 650, de 10 de junho de 2016, estabeleceu o dia 18 de setembro como dia da Família Militar.

4 BARROS, A. S. C. Parentesco entre membros das Forças Armadas brasileiras. In: CASTRO, C. (Org.). A família militar no Brasil: transformações e permanências. Rio de Janeiro: FGV, 2018.

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Sociedade Militar