Forças Armadas

O Mito desmentido – Réplica ao discurso de Bolsonaro (Texto de colaborador)

Uma despretensiosa réplica ao discurso do Exmo. Sr. Presidente da República

Num recente discurso dentro da bolha militar, da qual quase foi banido em 1987 por ter-se levantado contra os princípios morais do bom soldado, o presidente Jair Bolsonaro voltou a afirmar que as Forças Armadas são a base do seu governo e que o país agora tem um presidente que respeita os militares.

Jair Bolsonaro (JB) “Hoje temos um governo que pensa no seu Brasil como um só, e a grande base nossa para cumprir essa missão são a nossa Marinha, o nosso Exército e a nossa Aeronáutica”.

Réplica (R) — Consideramos temerário que as Forças Armadas possam ser algum tipo de “base” (um protótipo) para se governar um país, seja ele qual for. Verdadeiras panelas de pressão social como a questão racial na MB, por exemplo, a administração tendenciosa que invariavelmente só pende para o lado de cima, o lado dos oficiais — que um dia irão comandá-las. Um catálogo de arbitrariedades repetidamente justificadas pelo mantra “hierarquia e disciplina” — necessário, mas mal usado. Uma justiça especializada, geneticamente enviesada para o lado platinado das Forças em detrimento do grande público de mais de 80% dos efetivos, os praças (nunca é demais lembrar que, diversamente do que ocorre com um oficial, os praças não podem ser julgados por seus pares, somente os oficiais julgam). Em que tipo de país viveríamos se o governo tivesse semelhante “base”, excludente, antidemocrática, classista — pois cuida prioritariamente dos interesses da classe dominante? Venezuela? China? URSS? Não sabemos o que o Presidente quer exatamente dizer com “base”, mas os valores da caserna, conquanto sejam louváveis, não foram talhados para a sociedade civil.

JB Quando somos atacados, dependendo de onde vêm esses fogos, tenho certeza de que estamos no caminho certo. Eu prego e zelo pela união de todos, pelo entendimento, pela paz, pela harmonia. Mas os poucos setores que teimam em remar em sentido contrário, tenho certeza, vocês perderão.

R — Vemos que o discurso obviamente não coaduna com a prática. O esforço de guerra que o Presidente e seus generalíssimos asseclas empregaram para entubar no Congresso via traqueostomia legislativa a Lei n°13.954/19 diz muito sobre os anelos presidenciais por “união, paz e entendimento”. Bolsonaro, nunca é demais repetir, para os militares que o apoiaram por trinta anos, reencenou à perfeição o papel de Joaquim Silvério dos Reis, o coronel que traiu Tiradentes. Com sua famigerada caneta Bic, ao assinar a Lei do Mal, pela primeira vez na história militar brasileira, desuniu militares da ativa e da reserva ao extinguir a paridade secular; instaurou um inédito sentimento de hostilidade entre militares fanáticos que, mesmo tendo sido financeiramente lesados, insistem em apoiá-lo, e os outros que conseguem ver o óbvio; foi, para as pensionistas, a Besta do Apocalipse, já que aprovou sem vetos a lei que as sobretaxou, reduzindo drasticamente suas pensões, pelas quais seus parentes falecidos já pagaram em vida; fragmentou virtualmente a unidade das FA, uma vez que alçando os generais ao teto salarial do funcionalismo público, sem linearidade com a tropa, insinuou que apenas alguns oficiais importam para as Forças; finalmente, mas não menos vergonhoso e coroando o périplo pacificador do “Mito”, debochou publicamente das Forças Armadas, declarando que elas deveriam ir para o INSS.


Mais uma vez, em meio a críticas sobre a ação do seu governo, o presidente repete a ideia de que as Forças Armadas estão a seu lado.

R — Negativo! As FFAA sempre estarão ao lado do Povo, da Constituição e sob as ordens do Comandante Supremo, seja ele quem for. De direita, de esquerda, daltônico, gay! Esse é o papel delas. O resto é produto de imaginação mítológica…

JB — “Vêm de todas as classes, todos os meios e incorporam a nós, são o sentimento de toda a nação brasileira”, declarou. Bolsonaro disse ainda que o Brasil tem um presidente da República, o Estado Maior e ministros que acreditam em Deus e respeitam seus militares.  “Fato raro nas últimas 3 décadas em nosso país”.

R — Isso também é mérito exclusivo das FA e dos brasileiros e brasileiras que as compõem. Não é fruto de nenhuma política visionária, sobre a qual se possa fazer plataforma eleitoreira. Realmente, não sabemos o que Deus está fazendo nessa frase, mas é sempre bom citar Livio Fanzaga, em seu livro Wrath of God, “Tome muito cuidado quando autoridades políticas começarem a louvar o cristianismo e a falar bem dele”. Não duvidamos que alguns ministros realmente respeitem os militares, mas a manifestação desse respeito destoa deveras do suposto sentimento, já que a lei de reestruturação da carreira militar marcou a ferro e fogo nos corações e almas de veteranos (principalmente suboficiais e sargentos) e pensionistas exatamente o oposto disso. Deixados para trás, tratados como sucatas humanas, foram até alcunhados por elementos do governo de “reflexos no retrovisor” para os quais não se deveria olhar.

JB — “Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas. Não tem ditadura onde as Forças Armadas não apoiam”, afirmou.

R — Muitas palavras já perderam sua força de tanto que foram desvirtuadas. Preferimos George Bernard Shaw quando diz que “a democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes.” Quanto ao novo papel atribuído pelo Presidente às FA, seria mais acertado dizer que, sim, talvez elas decidissem mesmo (à base da força) pela ditadura ou não, mas que certamente caberia ao povo brasileiro destruir essa ditadura, como já o fez outras vezes. Quanto à segunda frase, realmente não tivemos no Brasil uma ditadura de aço, mas houve no mínimo um regime de exceção, encabeçado pelas FA. A terra não é plana, é oca…

Em conversa com apoiadores, Bolsonaro afirmou que as Forças Armadas foram sucateadas nos últimos 20 anos porque os militares são “o último obstáculo para o socialismo”.

R — É embaraçoso desenganar, mas as FA não são obstáculo nenhum ao socialismo, já que a  Constituição brasileira é, em grande parte socialista, feita por oligarcas socialistas para manter nos altos postos de um governo gigantesco seus descendentes e correligionários. Por meio de um “autoritarismo constitucional” podemos estar vivendo numa ditadura sem nos darmos conta, como a história do sapo em banho maria. Em última análise, se tivermos um governo socialista, comunista ou qualquer outro “ista”, e as FA não se revoltarem contra tal estado de coisas, teremos uma Força Armada exatamente alinhada com o “ismo” da vez, já que elas são instituições do Estado, não de um regime.

A tentação de fazer das Forças Armadas um aliado preferencial parece ser o fetiche de quase todo político desesperado. Mas o atual Presidente talvez por ser capitão da reserva se ache no direito de falar por aqueles que são obrigados por lei a se calarem. No passado da humanidade, os grandes líderes eram antes de mais nada guerreiros. Combatiam lado a lado com seus homens, e por isso mesmo tinham o respeito de suas tropas. A guerra moderna dispensou-os disso. Já não há mais líderes. Agora são apenas burocratas que se escondem atrás de uma caneta Bic e de discursos vazios dirigidos a uma plateia muda, que em resposta só lhes pode devolver a continência regulamentar.

JB Reis

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