Forças Armadas

Hierarquia e disciplina – Texto de colaborador

A Resenha de uma narrativa

Li recentemente o livro “Hierarquia e disciplina são garantias constitucionais – Fundamentos para diferenciação do Direito Militar”¹, de Adriano Alves-Marreiros. Creio que para o tipo de crítica que farei, importa saber que o escritor foi oficial do EB pela AMAN, e atualmente é Promotor de Justiça Militar, Especialista em Direito Penal Militar e Processo Penal Militar². Também sobre quem se atreve a criticar é importante saber que sou militar, mas praça da reserva da FAB, ignorante do Direito, mas amante da verdade. A única linha de toda a legislação militar que guardo de memória é: “amar a verdade como fundamento de dignidade pessoal”. Isso não me torna infalível, mas verdadeiro nas minhas falhas.

Apresentados Davi e Golias, vamos às considerações.

O cerne do livro é demonstrar que o binômio hierarquia e disciplina, antes de ser um mecanismo de controle da tropa, é garantia constitucional para os indivíduos e para a sociedade, ou seja, é necessário para a paz social que os militares sejam submetidos a controles ainda mais rigorosos do que aqueles com os quais o Estado normalmente já submete seus cidadãos. Esse argumento de que o braço armado do Estado deve ser mantido sob rígido controle é inatacável. Talvez por parecer óbvio demais quando explicado, seja até um pouco desmerecido. Mas atualmente vivemos tempos estranhos em que até as obviedades carecem de defesa. A abrangência temporal do estudo vai do presente até o século XVIII.

O autor faz um breve apanhado histórico, desde a guerra pela independência dos EEUU, passando pelo Tratado de Versalhes e dando um rasante sobre as Constituições brasileiras e os princípios de hierarquia e disciplina, sempre presentes em cada uma delas. Menciona alguns tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e, curioso e bastante pertinente ao momento atual, já que foi criado recentemente o primeiro sindicato de militares das FA no Brasil, o autor grifa excertos do Pacto de São José da Costa Rica (Dec. nº 678, de 1992), em seu art. 16, inc. 3; do Pacto de Nova York (Dec. nº 592, de 1992), em seu art. 22, inc. 2º; e da Convenção nº 98 da OIT, em seu art. 5º, inc. 1º. Em todos esses destaques, fica claro que tais instrumentos não impedem que aos militares se apliquem “restrições legais e mesmo a privação do exercício do direito de associação”. Parece que o nosso Sindicato militar caminha no fio de uma navalha.

A seguir, o livro trata de movimentos grevistas e paredistas ocorridos no Brasil entre 1997 e 2017. O único que foi protagonizado por militares das FA foi o último, quando controladores de tráfego aéreo insurgiram-se. Senti laivos de vaidade do autor, quando repetidamente ressalta que nas FA a hierarquia e a disciplina seriam mais efetivamente cobradas do que nas Forças Auxiliares. Ele faz um levantamento minucioso das greves por Estados da Federação. Apesar de reproduzir entrevistas históricas, como uma entre o cabo Júlio e (o candidato a governador) Eduardo Azeredo – ambos condenados e presos por corrupção – , o livro fica um pouco tedioso, já que em todas as greves o motivo é basicamente o mesmo: salário. Todo mundo sabe disso. Mas para não resvalar no óbvio, ou seja, que o militar para chegar ao ponto de afrontar o sistema, arriscando-se a manchar ficha, enfrentar um pesado processo penal, perder o emprego e ao fim de tudo ainda ir para cadeia – e cadeia para policial é um pouco mais delicado do que o normal – o militar só faz isso por um objetivo, aumentar o salário – o autor prefere demonizar os grevistas (que, claro, pertencem à suboficialidade) por meio de pinceladas românticas, tentando deixar o livro menos tendencioso. Por exemplo, na pág. 54 menciona certos “laços de solidariedade corporativa entre oficiais e praças” que teriam sido “gravemente” rompidos pelos grevistas. Na pág. 83 deplora que alguns grevistas entrevistados teriam “aversão à Instituição [militar]”, outros que “teriam entrado por necessidade” (!), e muitos que relatam – mas que triste a sina das corporações militares deste pobre País – não ter  “uma vocação ou sonho de ser policial.”

Não, não defendo greve. Sou contra o “atravessadorismo” dos sindicatos. Concordo que o braço armado estatal deve ser mantido sob rigoroso controle, mas repudio radicalmente a tese de que os grevistas tenham sido movidos unicamente pelo prazer da agitação “esquerdista”. E reputo como absurdo e até criminoso que os oficiais comandantes, sejam das Forças Armadas, sejam das Auxiliares, teimem em perpetuar por séculos o olhar míope que lançam sobre a tropa.

Olhando com imparcialidade, quem foram os responsáveis pela Revolta da Chibata? Os revoltosos ou os homens em posição de comando, civis ou militares, que faziam vista grossa para os castigos corporais? Em que distante olimpo vivem esses senhores, que de lá, não conseguem enxergar as condições de trabalho de seus subordinados? Não conhecem o salário do soldado? Não sabem onde vivem? Não sabem nada? Quando estoura uma revolta, surgem, indignados, palavrosos, autoritários. Mas todos sabemos como chegamos até este ponto…

O autor, não sei se por conveniência ou se simplesmente para cumprir um protocolo, repetidamente escreve que “representações ao Ministério Público” e “ações na Justiça” seriam os meios corretos de se resolver os problemas causadores das greves. Mas o fim último das greves é o salário, e, mesmo que as perseguições nos quartéis não fossem  normais – coisa que o autor também convenientemente trata de ignorar – o MP e o Poder Judiciário não têm competência constitucional para alterar os salários dos militares. Todos sabemos disso.

Algumas entrevistas feitas com grevistas são reproduzidas. Interessante que na esteira da questão salarial outras “reivindicações” também estavam em pauta, como mudança de regulamentos, adoção de códigos de ética e outras. O autor insiste na tese de que seriam reivindicações “esquerdistas”. A sutileza do viés classista aqui é quase imperceptível ao leigo, ao “paisano”, mas ela existe, mesmo que revestida do bom “jurisdiquês”. Uma das pretensões recorrentes dos grevistas era a extinção da sanção disciplinar que importasse encarceramento (xadrez). Uma coisa que o público civil provavelmente ignora é que a elite dos oficiais das FA tem algumas facilidades durante a vida militar. Uma delas é que quando um oficial fica preso por alguma indisciplina, cumpre “pena” em casa, desde que a casa seja numa vila militar, que normalmente é dentro ou bem próxima do quartel. Isto é, suponhamos que um coronel e um cabo, por exemplo, fossem declarados culpados pela mesma transgressão, que importasse prisão, o cabo iria para a cela e o coronel ficaria em casa! Questionar isso é “esquerdismo”?

Não sei explicar, e neste pormenor, solidarizo-me com o autor, por que na paralisação dos controladores (FAB) houve apuração e punição rigorosas dos amotinados e nas demais greves os procedimentos foram bem menos rígidos e ainda foram, em muitos casos, objeto de anistia, inclusive com interferência de altas autoridades da República, fazendo tábua rasa das leis militares. Talvez aqui, sim, tenha atuado o revanchismo da esquerda brasileira, mas comprovadamente da parte dos políticos.

A síntese que pude tirar é que pelo fato de a classe militar como um todo não ter representatividade política, e ser segmentada em praças e oficiais, estes últimos, mais próximos dos centros de poder, tendem a se beneficiar em detrimento dos outros. O art. 31 do Estatuto traz como “obrigação” “tratar o subordinado dignamente e com urbanidade.” Mas quem fiscaliza o cumprimento deste artigo etéreo da Lei por parte dos oficiais comandantes? É inquestionável, e o autor demonstra isso de maneira cabal, que o militar deve ter um regime jurídico diferenciado, que pela peculiaridade da profissão é justo e republicano que sofra restrições de direitos, mas onde entram as compensações? O civil tem suas agruras, mas tem seus contrapesos. Os servidores públicos, idem. Mas e o soldado? É justo que fique à mercê da boa vontade, quase sempre suspeita, de seus superiores? Toda situação de desequilíbrio, cedo ou tarde tende a se reequilibrar de um jeito ou de outro. A revolta pode ser caminho para isso…

A tese do autor descamba para um velado combate a um viés político, que ele chama de esquerdismo, mas quando em 2019 nascia o PL 1.645, os excelentíssimos e apolíticos generais não se furtaram a coser alianças espúrias com congressistas de esquerda – como o almoço do MD com políticos esquerdistas, documentado pela RSM³ – não pouparam medalhas, não se envergonharam de oferecer “café com tiro” a autoridades envolvidas com o PL. O resultado dessa manobra, todos conhecem, foi a Lei nº 13.954/19. O “braço” armado do Estado deve ser manietado, mas quem controla as “cabeças” armadas? Os militares são regidos por códigos medievais que não têm lastro no Direito moderno. Termos como “honra”, “vida”, “lealdade”, “pundonor”, salpicam as leis da caserna, e são habilmente manejados pelos homens em posição de mando. Pura perfumaria que não toca como deveria o chão de fábrica dos quartéis.

O livro atinge o objetivo. Demonstra que o direito militar deve mesmo ser mitigado pelo bem da paz social. Como obra científica de um direito romantizado, que, como toda boa ciência humana, compartimentaliza fatos, isola-os num laboratório frio, e por conveniência ou inaptidão, ignora dissonâncias, o livro convence os incautos. Um corolário não escrito pelo autor, mas que não resisto em imputar-lhe, ainda que por via oblíqua, seria um dos lemas da ditadura militar brasileira, “ame-o ou deixe-o, que aplicado à vida militar e com outras palavras serviria como aviso aos praças: “não tentem se rebelar, pois aqui, vocês jamais terão vez.”

JB Reis (metido a crítico, agora)

Revista Sociedade Militar não necessariamente concorda com as opiniões expressas em artigos de colaboradores, a publicação visa enriquecer o debate e expor as diversas visões em torno dos diversos temas tratados pela revista online

¹https://www.amazon.com.br/Hierarquia-Disciplina-Adriano-Alves-marreiros/dp/6599071309/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&dchild=1&keywords=alves-marreiros&qid=1618946985&sr=8-1

²https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/author/adrianoadriano-com-br/

³https://www.sociedademilitar.com.br/2019/11/2-nao-e-uma-reestruturacao-entrevista-com-adao-farias-advogado-e-um-dos-protagonistas-da-luta-por-modificacoes-no-pl-1645-2019-esclarece-pontos-importantes-e-desmistifica-situacoes.html

Deixe um comentário
Compartilhe
Publicado por
Sociedade Militar