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A única via!

” A representatividade política – apesar de duvidosa e temerária – é a única saída desse lamaçal de vergonha em que as baixas patentes das FA foram atiradas “

Ao público civil que vê os militares em formaturas, exercícios, até mesmo em combate, parece existir um corpo único, perfeitamente integrado em suas partes. Um mecanismo que deve funcionar sem a mínima falha. A disciplina que une essas partes infinitesimais é estatutária, isto é, fruto de consensualidade e regida por leis escritas. A hierarquia, irmã siamesa da disciplina, é o que ordena esse funcionamento dentro de limites também estatuídos. Como um código genético insculpido no militar, ambos os institutos modelam com mãos invisíveis os exércitos, em qualquer nação, em qualquer época. Mas, pelo menos nas Forças Armadas brasileiras, há um elemento de tensão entre as duas categorias de militares, chamadas de “círculos hierárquicos” pela legislação, os oficiais e os praças.

Longe de mitigar tais conflitos, o atual Comandante Supremo, apesar de dever sua relevância política à profissão das armas, já verbalizou que pretende mesmo é ampliar o fosso e precipitar nele o maior número possível de militares.

Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos da América, o processo de independência no Brasil, tendo sido desprovido de lutas intestinas prolongadas e excluindo a participação popular, não reproduziu na formação da sociedade militar a miscigenação étnica corrente na sociedade civil brasileira. No Norte as lutas fratricidas – os americanos se denominavam “ingleses do continente” – , se regaram o futuro com caudalosos rios de sangue, pela incorporação de componentes de diferentes estratos sociais, tornou as forças armadas estadunidenses muito mais democráticas, havendo ecos disso na própria Carta Magna Americana, modelo para as democracias do mundo. Por aqui, replicou-se o paradigma europeu em que “tradicionalmente, (…) o corpo de oficiais era recrutado entre a nobreza, e as praças entre os camponeses e proletários urbanos.”¹

Bem abraçados, o alto oficialato e os agentes políticos, não resta dúvida que o sistema “casa-grande e senzala” foi transplantado com a maior facilidade para a vida na caserna. Assim foi e assim ainda é. Todas as revoltas de praças na história militar brasileira foram motivadas por demandas sociais, previamente negadas pelas Forças, e as de oficiais (principalmente generais) foram por motivos políticos. Revolta dos marinheiros em 1910, dos sargentos em 1915, sargentos em 1963, greves de policiais militares entre 1997 e 2017 e a greve dos controladores em 2012.

A distância fria e calculada que é mantida entre oficiais e praças não é mera questão de etiqueta ou rigorismo profissional, mas um dispositivo latente no núcleo duro da sociedade brasileira que, não tendo sido capaz de barrar a mistura racial, também na caserna, teima em emparedar a gigantesca classe pobre sob os coturnos de alguns poucos senhores bem nascidos. Claro, não se pretende que haja tantos soldados quanto há generais. Seria um delírio socialista, impraticável e falacioso. Não é este o leitmotiv das manifestações de base das Forças Armadas. O que está na ponta de lança desses movimentos é quase sempre a quebra da lealdade justamente por parte daqueles que, por estarem no topo da pirâmide, e portanto mais próximos do poder político civil do que do simples trabalhador militar, são tentados (e invariavelmente sucumbem) a tratar as Forças que comandam como um clube exclusivo de oficiais, que nascem cadetes e morrem generais.

Nesta semana, o choro e o ranger de dentes dos veteranos principiaram a ser entoados também pelos nobres e ingratos companheiros da ativa, depois que o EB publicou novos períodos de interstícios para promoção de graduados (Boletim do Exército nº 19, de 14 de maio de 2021). Segundo o documento, “a fim de propiciar um judicioso aproveitamento dos militares”, um sargento poderá ser promovido a subtenente (topo de carreira para os praças) com 60 (sessenta!) anos de idade. Não deixando dúvidas sobre o papel de Cavaleiro da Morte, que vem desempenhando com maestria, o atual Comandante Supremo das Forças Armadas sancionou a Lei 13.967/19, que extingue a punição disciplinar no âmbito das Forças Auxiliares. Segundo Bolsonaro, “as punições são extremamente desumanas e humilhantes”. Foram excluídos do presidencial raciocínio os militares da MB, do EB e da FAB, talvez por não serem humanos o suficiente, ou talvez por serem humanos em demasia?..

Não se sabe se os militares votaram em peso em Jair Bolsonaro em 2018. Provavelmente sim. O fato é que, desde que deixou de ser o capitão para se tornar o Mito planaltino, já podemos colecionar os ataques que repetidamente ele vem desferindo contra aquela parcela das Forças Armadas que o fez chegar aonde está. Sejam bolsolóides idiotizados, sejam lulistas fanatizados, todos os praças foram manipulados e traídos. Se ninguém lutava por eles, agora há os que, investidos do poder público, deliberadamente lutam contra eles.

A busca por nomes é urgente. A representatividade política – apesar de duvidosa e temerária – é a única saída desse lamaçal de vergonha em que as baixas patentes das FA foram atiradas. Todos devem pensar por si próprios. Ver, isentos de paixões e de favoritismos, os efeitos que as alianças passadas provocaram na vida de cada um. Um novo pacto deve ser feito. Um pacto intramuros. Como categoria profissional caímos, como categoria profissional devemos nos erguer, com as nossas próprias forças, nossos próprios recursos, nossos próprios soldados. O passado, com sua inocência, acaba aqui. O presente nos apresenta a luta como única via. O futuro deverá ser construído pelos que tiverem fome e sede de justiça. A desilusão que Bolsonaro representou nos fez ver a verdade. Que ela nos liberte.

¹ Forças Armadas e política no Brasil, de José Murilo de Carvalho; 2a ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006

JB Reis / https://linktr.ee/veteranistao

Revista Sociedade Militar

Veja: Revolta da chibata – A chibata moral, as históricas e inglórias lutas dos graduados das Forças Armadas

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Sociedade Militar