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A OUTRA FACE DO CARANDIRU – O STJ anulou a decisão do TJ de SP e restabeleceu condenações de PMs feitas em júris do caso que ficou conhecido como “O  Massacre do Carandiru”

O Superior Tribunal de Justiça anulou a decisão do TJ de SP e restabelece condenações de PMs feitas em júris do caso que ficou conhecido como O  Massacre do Carandiru. Anteriormente o TJ, acertadamente, havia anulado os julgamentos.

Talvez estejamos diante da maior injustiça cometida contra policiais militares. Um julgamento político, uma grande aberração jurídica.

No dia dois de outubro de 1992 uma briga entre presos do pavilhão 9 iniciou a rebelião no complexo presidiário do Carandiru que tinha o objetivo de eliminar presos de quadrilhas rivais. Nesse pavilhão havia 2.070 dos 7.257 presos. O diretor tentou negociar, não obtendo sucesso.

Na entrada do prédio os detentos atearam fogo e fizeram barricadas, quando os bombeiros conseguiram apagar as chamas, a tropa, composta por 330 homens, 25 cavalos e 13 cães, entraram para dominar o presídio.

Na época não existia à disposição da polícia equipamentos não letais, como balas de borracha (elastômero) e o uso de munição química não era indicado, pois impossibilitaria a invasão. Havia poucos coletes de proteção balística e poucos rádios comunicadores individuais. As luzes do pavilhão foram quebradas pelos detentos, cacos de vidros espalhados ao chão e jogaram óleo nas escadas.

A AIDS apavorava a todos, os tratamentos da doença na época eram pouco eficazes e muito sofridos, levando a uma dolorosa morte em poucos anos. Os presos utilizavam seringas com agulhas, zarabatanas e todas as lâminas contaminadas com sangue infectado, o que era tremendamente nocivo. O poder psicológico de tais armas se mostrava muito maior do que o de uma arma de fogo. Não havia como imobilizar os resistentes, pois a aproximação e o contato corpo a corpo poderiam ser a certeza de morte, ferimento grave ou infecção.

A pressão para a rápida resolução da crise foi enorme, e o estresse sofrido pelos policiais na iminência de uma invasão a um dos maiores presídios do mundo sob total controle dos presos era inimaginável. E o pior, o país estava às vésperas de eleições. Talvez fosse essa a maior preocupação do governo, afinal, tinha que mostrar que seriam capazes de conter rapidamente uma rebelião e que o governador possuía total controle da situação.

O Carandiru era um labirinto com uma população carcerária maior do que muitas cidades. Um verdadeiro depósito de presos, no qual os agentes penitenciários tinham até mesmo dificuldades de encontrar algum condenado específico naquela bagunça. Típico dos políticos brasileiros e de nosso sistema penitenciário. Jogam os presos lá dentro e tentam esquecê-los, deixando o problema nas mãos dos agentes e da polícia quando há uma rebelião. Após isso, lavam as mãos.

A polícia cumpre ordens, e no caso da PM o não cumprimento é crime. Os policiais deveriam entrar lá e dominar a situação da melhor maneira com os equipamentos e treinamentos que tinham a disposição. Foi exatamente isso que fizeram. A tropa foi acionados para o local atendendo as ordens diretas do Secretário da Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, autorizado pelo governador Antônio Fleury, do PMDB. Não era nada fácil ser policial. Baixíssimos salários e pouco material somado a situações dificílimas de ser enfrentadas. Era essa a realidade daquele momento.

Para a invasão, o efetivo estava composto pelo policiamento de Choque, com Coe (Comando de Operações Especiais), Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais), Canil e Rota. Logo na entrada do prédio, o comandante do dispositivo, Coronel Ubiratan, foi atingido na cabeça, devido a uma explosão ocorrida por um vazamento de gás, sendo socorrido e transportado ao pronto socorro.

No andar térreo não houve mortos, os presos se entregaram. No primeiro andar, onde a Rota atuou, 15 mortos. Nos outros três andares morreram 96 detentos. Os números oficiais somam 111 mortos no total, porém, de acordo com os presos o número de vítimas vítimas fatais foi muito maior.

Foram apreendidos 165 estiletes, 25 barras de ferro, uma marreta, maconha, cocaína e 13 revólveres. Na época não havia telefones celulares disponíveis. Ao todo 22 policiais ficaram feridos.  A partir daquele dia os militares foram antecipadamente condenados pela mídia.

Passaram 20 anos na iminência da condenação, aguardando ansiosos, contratando advogados com dinheiro do próprio bolso e sem apoio. Em 1999 foi lançado o livro Estação Carandiru, do Dr. Drauzio Varella que trabalhou no presídio como médico. Ele conta os dramas pessoais dos internos e finaliza com a invasão da polícia, na versão dos presos. Em 2003 foi lançada uma superprodução, em termos nacionais, o filme Carandiru, baseado no livro do Dr. Dráuzio. Em 2005 foi a vez da série televisiva Carandiru, Outras Histórias.

Isso em nada ajudou aos réus, pois conforme o próprio Drauzio relata, é sua versão com base em sua experiência e relatos dos presos. Impossível não pensar que a mente dos jurados e até mesmo do juiz e promotor, não produzissem a imagem do filme ou trechos do livro a cada manifestação dos réus e da defesa. O promotor chegou ao absurdo de exibir por dez minutos cenas do filme durante o julgamento! Uma ficção parcial apresentada para um júri leigo.

Sempre que o assunto vinha à tona a TV transmitia reportagens com imagens dramáticas chegando a mostrar corpos sendo recolhidos e juntados lado a lado. Era o equivalente ao júri assistir centenas de vezes a versão da acusação sem ter a defesa o direito de responder. Não existia o contraponto. Não existiam redes sociais.

O primeiro a ser julgado foi o Coronel Ubiratan. Condenado em 2001 a 635 anos de prisão, recorreu em liberdade e se candidatou a Deputado Estadual. Grande parte da sociedade paulista apoiou a ação policial, tanto que o Coronel foi eleito, seu número foi o sugestivo 41.111.

Em 2006, meses após sua absolvição em grau de recurso, Ubiratan foi assassinado. Sua namorada foi acusada do homicídio, no entanto inocentada em julgamento. Sua morte nunca foi esclarecida. Ainda restavam os policiais sob o seu comando para serem julgados. Dos 330 policiais, 103 foram denunciados, 24 morreram, restando 79.

A última fase foi encerrada com a condenação dos policiais pertencentes ao Coe a 48 anos de prisão pela morte de quatro detentos. No local onde atuaram houve um total de oito mortes e duas tentativas de homicídio, contudo quatro dessas mortes foram por arma branca e não conseguiram associar as outras duas tentativas aos policiais.

Em 20 de março de 2014, encerrou a terceira fase do julgamento que terminou com a condenação dos réus que pertenciam ao Gate. Foram condenados a 96 anos de prisão.

Em um ato de coragem criticado pela imprensa, o julgamento foi anulado pelo Tribunal de Justiça, entendendo que a perícia foi inconclusiva e duvidosa, impossibilitando apontar a conduta individual dos acusados. Agora, em 9 de junho de 2021, o STJ restabeleceu as penas aplicadas aos réus.

Interessante observar que crimes contra a vida são julgados pelo Tribunal do Júri, composto por jurados leigos. O que por vezes torna a decisão perigosa. A influência externa pode interferir, afinal, são seres humanos. A situação política do momento ou algum fato recente que se alinhe a condição dos réus pode ser um fator de influência. Não raramente as sentenças são carregadas da emoção do momento somados a dificuldade de entender como eram as coisas na época dos fatos.

Essa não foi a alegação da defesa que conhece e encara bem as regras. A indignação dos réus e de seus defensores foram causas que entenderam como aberrações jurídicas, entre algumas dessas causas alegadas versa sobre a perícia ter sido executada dias depois do fato, com o local já lavado e totalmente adulterado. Não houve confronto balístico nem exames residuográficos, impossibilitando determinar quem realmente atingiu alguém com tiros, impossibilitando a  individualização das condutas.

Alegaram também que foi ignorado um dos Princípios Básicos do Direito Penal: o da Individualização das Penas. As penas devem ser desigualmente aplicadas de acordo com a ação de cada um, consideradas as peculiares circunstâncias do fato e do infrator. Ou seja, julgaram cada um dos acusados como se esse indivíduo tivesse matado todos do local onde estava, somando assim as penas. Ficando impossível para o advogado realizar a defesa individual.

Por exemplo: se um dos réus entrou em um local que houve dez mortes, é como se ele tivesse matado as dez pessoas, ainda que seu disparo tenha acertado a parede. Isso sem falar que ignoraram a possibilidade de legítima defesa. Entre outros detalhes técnicos.

Defesa e réus concluíram que foi um julgamento político e ideológico, a fim de dar satisfações a mídia e a órgãos internacionais.

O Secretário Pedro Franco de Campos e o governador Antônio Fleury não foram acusados, nem sofreram quaisquer punições. A corda como sempre arrebentou em sua parte mais fraca.

Homens que amam a sua profissão, dedicados a um trabalho perigoso e mal remunerado não hesitaram arriscar suas vidas. Ao acordarem naquela manhã não sabiam o que estaria por vir. Seriam mandados para conter uma situação na qual o descaso do governo fez com que ela surgisse e depois seriam os bodes expiatórios culpados de tudo.

Outros homens cometeram crimes e foram condenados, de dentro da penitenciária continuaram a cometer crimes, talvez até mais violentos. Iniciaram uma rebelião, não para reivindicar melhorias nem denunciar abusos, mas para assassinarem rivais e manterem a liderança interna.

Por outro lado, o governo alheio a esses detentos ignorava a situação carcerária. Praticamente não havia nenhum plano de melhoria. Entupiam os presídios com presos que viviam sem as menores condições humanas, os mais pacíficos sendo obrigados a se tornarem tão violentos quanto os que ali dominavam.

Em 1993, um ano após o ocorrido no Carandiru, outro movimento de uma organização criminosa se desenvolvia dentro dos presídios paulistas, era o Primeiro Comando da Capital, o PCC, mostrando-se ao mundo. A propaganda da quadrilha se baseava na busca por justiça contra a opressão sofrida pelos presos no sistema penitenciário, alguns também diziam que queriam vingança devido à morte dos cento e onze presos do Carandiru.

Ironicamente a quadrilha propagava o lema “Paz, Justiça e Liberdade”. Não há de que se surpreender, pois tais ideias são comuns em organizações que fazem justamente o oposto, assim como o nome “democracia” é estampada em bandeiras de nações ditatoriais. Isso faz parte da propaganda, da inversão de valores e confusão generalizada a fim de seduzir os desatentos.

Décadas após o caso do Carandiru a situação penitenciária pouco mudou. A questão é que os presos ficaram mais organizados. Eles mesmos reduziram a violência interna e com aparelhos celulares, tão comuns quanto o uso de drogas, continuam comandando o crime de dentro pra fora das prisões como se estivessem na sala de estar de suas casas. Praticam até mesmo novas modalidades criminosas, como falsos sequestros e julgamentos sumários com condenações a morte.

O governo ignora por completo, em troca monitoram as ligações e escolhem as que entendem de maior importância para atuarem. Parece que é a única forma de investigação que o país conhece.

As opiniões expostas não são necessariamente as da instituição da qual pertenço. Para expô-las, utilizo do meu direito constitucional que dá liberdade de opinião.

Revista Sociedade Militar

Davidson Abreu é Oficial da Polícia Militar de São Paulo. / Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas / Pertenceu ao corpo docente do Curso Superior de Formação de Soldados / É professor do Estágio de Aperfeiçoamento Profissional da Polícia Militar / Escritor e palestrante / Autor do livro Tolerância Zero – Faro editorial – selo Avis Rara

 

 

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