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Militarismo, nada mais que um mito (Artigo de colaborador)

O princípio sistêmico da inimizade e seu reflexo nas relações entre os militares.

A profissão das armas é prenhe de mitos, não no sentido pejorativo, mas no aspecto tradicional da formação de valores, e consequente construção do arquétipo de classe. A prática de não deixar ninguém ferido para trás criou o mito da lealdade militar. A profissionalização das armas impulsionou o patriotismo das nações. Virtudes militares, como camaradagem, coragem, etc.  são enumeradas  e desenvolvidas em publicações das três Forças. Não sabemos se as premissas éticas de outras profissões, igualmente necessárias à manutenção da civilização, chegam a essas filigranas tão etéreas, beirando o romântico e, aqui sim, ao mito, na sua acepção de fabuloso.

Mas quanto de verdade há nos mitos militares?

Recentemente alçado à fama nas redes sociais pelas declarações que deu em defesa das Forças Armadas, o comandante da FAB citou em seu twitter uma frase de Ernest Hemingway sobre trincheiras e companheirismo. A frase evocava a camaradagem, o espírito de corpo entre os militares ‒ nota interessante é que o “camarada” Ernest era propagandista de Fidel e comunista até os ossos.

Na mesma semana, a FAB comemorou o dia do veterano. Um belo sentimento a se externar, o reconhecimento e a gratidão aos veteranos de todas as épocas que construíram as Forças no passado. Um sentimento que, nas linhas de um papel ou nos bits da internet, fala bonito, mas não diz tudo. Aos que se queixam de sermos monomaníacos, de tratarmos recorrentemente de um tema central, qual seja, a traição sofrida pelos veteranos via canetada de Jair Bolsonaro ‒ referimo-nos, claro, à Lei 13.954/19 ‒ , respondemos: como é possível seguir marcha, se grande parte da tropa ficou “nas trincheiras”? Como é possível passar ao largo de tópico tão caro a qualquer militar que tenha realmente (e não via twitter) experimentado a camaradagem e o companheirismo ao longo de sua vida militar, e que tenha recebido como prêmio da Força a que se dedicou a traição institucional?

Sem medo do que possamos encontrar, precisamos olhar no espelho dos valores militares que nos moldaram. Bolsonaro não agiu sozinho nesses últimos anos. Ele não inventou a inimizade entre oficiais e graduados. O terreno sempre foi fértil, ele apenas regou a semente do mal, que previsivelmente cresceu e vingou. Enquanto o PL 1.645 era competentemente escrutinado por alguns veteranos, que tacitamente representavam os interesses da maioria dos militares (mais tarde prejudicados pelo Governo), oficiais de média e alta patente distribuíam panfletos aos congressistas no intuito de desacreditar a argumentação daqueles suboficiais que foram a Brasília na tentativa de deixar a futura lei justa para todos, sem distinção. Se isso não é inimizade institucionalizada, o que mais pode ser!? A recompensa pela audácia desses homens e mulheres que se atreveram a defender os direitos dos praças ‒ já que as Forças Armadas Brasileiras parecem ter sido criadas única e exclusivamente para os oficiais ‒ foi servida em prato frio e calculado.

É conhecida a fábula do sapo que é cozido em água morna. Ao fim do dia ele está morto e pronto para ser comido. Bolsonaro disse com todas as letras que as Forças Armadas deveriam ir para a vala comum do INSS. Pois bem, os veteranos já estão no INSS, apenas não estão se dando conta. A criação de um curso esdrúxulo ‒ que sempre existiu, mas que ninguém nunca viu ‒ que criou um filtro no fluxo de carreira da ativa e sepultou a reserva no ostracismo; a transformação de oitenta por cento dos efetivos de graduados em militares temporários ‒ agora o esquisito “dia do sargento temporário” criado por um deputado governista faz sentido; a questão da promoção dos sargentos do quadro especial que chegou a um decepcionante beco sem saída, já que os frutos dessa luta justa serão colhidos exclusivamente pelos militares da ativa; tudo isso aponta para o tratamento corriqueiro dado pelo Governo aos aposentados. A estes e aos veteranos, nada. Aos veteranos, o silêncio frio da Instituição. Aos veteranos ‒ os invisíveis ‒ a invisibilidade.

Na outra ponta dessa linha, soberanamente ignorando os invisíveis, estão os silentes, aos quais estão destinados os louros das Forças. Para os quais move-se toda uma estrutura que um dia transformará alguns deles em comandantes de milhares. Entre eles estavam os que panfletavam no Congresso Nacional, em deplorável atitude de sabotagem, indigna de suas patentes. Entre eles estavam os que confraternizaram com políticos comunistas para que os invisíveis não se beneficiassem da reestruturação da carreira. Entre eles estavam os que distribuíram medalhas como quem dá pérolas aos porcos, “porcos” que hoje difamam o bom nome das Forças Armadas. Entre eles, que silenciaram quando a traição estava se desenhando, estão alguns que hoje gritam aos quatro ventos que Bolsonaro envergonha as Forças Armadas. Eles, os silentes, que não abriram a boca para defender os militares mais pobres da sanha governista, pretendem agora defender os pobres brasileiros das garras bolso-lulistas.

Um reino dividido contra si mesmo fatalmente um dia cairá. Bolsonaro teve sua utilidade. Escancarou a divisão abjeta e antirrepublicana que sempre medrou na caserna. Entre os silentes e os invisíveis ‒ oficiais e graduados ‒ os mitos militares de lealdade e camaradagem não resistiram a um aumento disfarçado de salário. Revelaram-se apenas letra morta, inspiração romanesca para coronéis novelistas. Esperemos que nunca sejam postos, lado a lado, em trincheiras reais, os invisíveis e os silentes, pois, se isso vier a acontecer, a vitória do inimigo estará garantida.

JB Reis / https://linktr.ee/veteranistao

Crédito da imagem: https://pixabay.com/pt/?utm_source=link-attribution&utm_medium=referral&utm_campaign=image&utm_content=1172111

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