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A Eminência farda – Artigo de colaborador

” Se Jair Bolsonaro triunfar, o triunfo é de todos. Se fracassar, a culpa é só dele … “

“O militar é como um núcleo vivo e controlado de violência, a ponta de um fio condutor de uma energia poderosa… ”

Ao público deveras restrito e seleto deste site a vida militar é mais do que conhecida. Para alguns foi experienciada por décadas a ferro e fogo, para outros ainda é o pão cotidiano. Na economia da guerra, em que maior honra é destruir o inimigo sempre de maneira mais eficiente possível, a moral é despida do verniz civilizatório e se apresenta em estado bruto. 

O militar é como um núcleo vivo e controlado de violência, a ponta de um fio condutor de uma energia poderosa, que deve ser mantida sob rígidos controles legais, sociais, éticos e principalmente psicológicos. Freios e contrapesos peculiares fazem parte da vida do soldado justamente porque essa energia deve estar sob controle inteligente, e não apenas represada, sufocada. A atividade física por exemplo (que não é privilégio pessoal, mas dever profissional do militar) tem seu papel na sublimação dessa força. A rigidez ‒ que está um grau acima do rigor! ‒ dos ritmos, ou horários, seguidos à risca, canalizam as forças individuais para objetivos organizacionais, não dando chance à dispersão inútil das capacidades.

Mas como é preciso manter uma certa “vibração” alta, sob pena de se chafurdar os  soldados na monotonia burocrática, à falta de conflitos declarados, os condutores das coletividades militares valem-se de uma espécie de “jogo de cena” artificial, segundo o qual, a intervalos mais ou menos regulares de tempo, “microguerras” são deflagradas.

Quem não sofreu dias de cão em sua vida militar? Rotinas sabidamente eficazes que eram revogadas sem a menor lógica? Procedimentos comprovadamente eficientes que eram virados do avesso, aparentemente por caprichos infantis de homens que não enxergavam nem a ponta do iceberg? Dias em que parecia não haver lei. Dias em que a lei era conforme a conveniência de comandantes que agiam como senhores feudais. Ferdinand Céline definiu a vida militar como nada além de loucura armada. Às vezes é preciso cultivar uma certa loucura engavetada para suportar as loucuras de quem nos comanda. De forma alguma consideramos a vida militar demeritória. Mas não existe exatamente uma coisa ruim, o que existe é uma coisa fora de lugar, e o lugar da vida militar é no quartel ou no front. O que vamos tentar analisar são os efeitos do suposto putsch branco da atual junta militar, e como o ambiente de polarização se assemelha bastante a um roteiro rascunhado em alguma caserna obscura e não a um anseio legítimo da vontade popular.

Um texto¹ interessante publicado no UOL com base em declarações do Sr. Marcelo Pimentel, que vem em apoio à nossa suspeita, sugere que na verdade os militares atuantes no governo federal (aqui bem entendido que se trata do alto escalão obviamente) seriam a eminência (nem tão) parda por trás de Bolsonaro, que este seria tão somente um testa de ferro, um títere nas mãos de um núcleo manipulador, e que eles (os manipuladores) não estariam dispostos a abandonar o poder tão facilmente. Um conveniente jogo de empurra. Se Jair Bolsonaro triunfar, o triunfo é de todos. Se fracassar, a culpa é só dele. O grupelho se recolhe às sombras e aguarda a vontade das urnas em 2022. Bastante conveniente e previsivelmente covarde.

Assim como Lula em 2002, Bolsonaro perdeu uma grande chance. Sua evidente falta de tato ‒ que parece uma tentativa de compensar sua evidente falta de preparo ‒ mina as remotas possibilidades que tinha de conduzir, de modo o mais suave possível, mas com firmeza, o Brasil a outros caminhos. Incapaz de admitir que começou com o pé esquerdo, e sem acertar o passo, mergulhou de cabeça na arte da guerra de narrativas, provavelmente “aconselhado” por sua “junta fardada”. Por si só, a cansativa liturgia de pronunciamentos do Presidente, apelando constantemente ao lado mais neanderthal de seus devotos, já bastaria para desestabilizar bastante coisa no país. Não ficamos uma semana sem que ele destile suas “verdades sinceras” pela internet. A reação não se fez esperar e hoje estamos imersos numa batalha política entre duas visões de mundo radicalmente opostas e igualmente hipócritas. A belicosidade intransigente do Presidente obviamente transmite-se a seus apoiadores. Pedidos de intervenção militar (imagina!) pululam pelas redes sociais, sob pretextos os mais infantis, como o fato de que a China invadiria o Brasil e nos tornaria colonos produtores de comida. Uma falácia pífia, já que, segundo o site do The Economist¹, 75% do comércio global (incluindo o nosso “berço esplêndido”, cuja “bandeira jamais será vermelha”) já estão nas mãos do senhor Xi Jinping. Com Bolsonaro ou sem ele, nós já vivemos num planeta vermelho.

No plano interno, assistimos a uma briguinha doméstica de egos estatais. De um lado o Executivo, de outro o Judiciário, e entre eles o Legislativo sendo cortejado por um e ameaçado pelo outro. Um com a chave do cofre, o outro com a chave da cela…

O poder judiciário se converteu no grande demônio do bolsonarismo. O STF, talvez por birra institucional, talvez por motivos mais cabeludos, arvorou-se protetor dileto da própria democracia, quando deveria ser apenas o humilde zelador da Constituição. E esta democracia de fetiche revelou-se tão artificial, tão mentirosa, tão fake, que não pode ser questionada, sem que vez ou outra abra-se um inquérito mandraque para apurar supostos atos “antidemocráticos” praticados, claro, por bolsonaristas. Uma democracia pujante (como a norte-americana, um farol para o mundo livre) deve comportar tudo, inclusive os antidemocráticos. Já uma democracia que não tolera ser atacada no plano das ideias é uma democracia de vidro… E a luta continua.

O Legislativo, para não ficar atrás do STF, pariu uma CPI que supostamente estaria investigando problemas com a administração do sistema de saúde, vacinas, etc. Bizarramente nesta semana a Comissão inquisitorial, que ganhou o epíteto carinhoso de “CPI do circo”, conseguiu o milagre anticristão de ressuscitar a censura no Brasil. Diversas mídias independentes (em desobediência ao devido processo legal) estão sendo sufocadas por uma verdadeira inquisição incompatível com o Estado de direito ‒ nenhum pio do Judiciário até aqui. As alegações? As mais esdrúxulas e menos objetivas possíveis. Em uma das reuniões podemos ouvir um senador, não dizer, não ponderar, mas vociferar em altos brados: “eles são antivacina”, “eles são amigos do vírus”, enquanto os probos congressistas com suas fichas criminais quilométricas seriam paladinos da verdade e defensores da vida. Todos os investigados são supostamente conservadores.

Como em toda guerra, as maiores vítimas são os civis desarmados. Os próceres dos três poderes em luta têm suas defesas principescas, advogados gerais, procuradores estatais, inquisidores reais, etc. Encastelados em seus fortes (pagos com o nosso dinheiro) manipulam seus “exércitos” de brinquedo por trás do pano, como se nada tivessem a ver com isso. Mas o pobre pitaqueiro de twitter, o que tem em sua defesa? Os jornalistas independentes que tentam se estabilizar, como nova voz em meio a uma mídia velhaca, a quem vão apelar? Ao judiciário kafkiano? Ao legislativo de cueca? Afinal, para onde correr? Para os braços do governo? Falando em governo e fechando nossa investigação, voltemos à nossa pequena sociedade militar, trazendo à lembrança que o Poder Executivo, cujos defensores acusam o STF de implantar a “ditadura da toga”, ordenou por meio da AGU que fosse aberto um Inquérito Militar para apurar supostas atividades sindicais praticadas por associações de militares. Obviamente tais associações são de praças. Obviamente o Clube Militar, o renitente apologista-mor das intervenções bananeiras não será investigado, pois Bolsonaro governa para todos, para todos que são de sua estirpe.

Mesmo aos leigos, o mal estar que ronda a profissão das armas, é, se não conhecido, perceptível. Não só porque estudamos ou pesquisamos, mas porque vivemos a vida militar foi que assistimos ressabiados ao desembarque de mais de seis mil militares na administração federal seguindo as pegadas de Jair Bolsonaro em 2019. Muitas luzes vermelhas se acenderam e um medo (não infundado) surgiu de que esse desembarque seria a ponta de lança de uma tomada de poder mais violenta em futuro próximo.

Nada disso ocorreu, a questão da pandemia colaborou para revelar as fraquezas de um governo improvisado, e vivemos agora, não a administração de um país, mas uma rinha de galo de meia dúzia de engravatados de todos os três poderes que realmente não dão a mínima para o povo. No centro dessa guerra suave, no olho desse torvelinho, que semana sim, semana não, ameaça escalar e se tornar um furacão, estão os militares e seus trejeitos, suas roupas camufladas, seu modo de vida que, feito um gênio maligno, soltou-se da garrafa e está penetrando tudo, contaminando mentes, dando falsa coragem aos tolos, instaurando divisões dentro de divisões, insinuando que um fantástico poder moderador armado até os dentes (os deles, claro!) seria a única forma de pacificar o conflito… que eles criaram.

JB Reis / Artigo publicado na Revista Sociedade Militar – A Revista Sociedade Militar não necessariamente concorda com textos assinados por colaboradores, a publicação integral é parte de nossa política de discussão livre de conteúdos e assuntos relacionados às Forças Armadas e instituições de segurança brasileiras.

https://linktr.ee/veteranistao

¹https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2021/06/12/militares-planejam-se-manter-no-poder-com-ou-sem-bolsonaro-diz-coronel-da-reserva.htm

²https://www.economist.com/briefing/2021/07/17/joe-biden-is-determined-that-china-should-not-displace-america

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Publicado por
Sociedade Militar