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Manual do revanchismo – Uma resenha sobre o livro “Pequeno manual antirracista”

Uma resenha

Porque escrevi uma resenha sobre o livro “Não somos racistas”, de Ali Kamel, senti-me obrigado a opinar sobre um livro de mesmo tema, racismo, mas de abordagem oposta. O livro escolhido foi o “Pequeno manual antirracista”, de Djamila Ribeiro. A autora é filósofa profissional e professora em uma universidade católica. É difícil não fazer comparações entre as duas obras. O leitor não deve me culpar por ter ficado exigente após ler o livro de Kamel. Enquanto este preza por documentação farta, abundante em números e estatísticas, o manual da professora é uma ode à autorreferência. Se no primeiro sobra racionalidade e boa vontade, no segundo abundam inexatidão e ranço. O primeiro procura convencer pela argumentação racional sofisticada. O segundo pretende incubar a mente do leitor de opiniões pessoais com verniz de filosofia.

De início, a autora diz que “quando criança, fui ensinada que a população negra havia sido escrava e ponto”. Ela diz “o que não me contaram é que o quilombo dos Palmares (…) perdurou por mais de um século (…)” Ela também exibe certa resistência em aceitar que a Princesa Isabel tenha passado para a História como libertadora dos escravos, e se surpreende ao constatar que a população negra tinha um vida (livre) anteriormente à escravidão. Segundo ela, perceber essas “revelações” secretas é “desafiador” para o pobre leigo (claro, o leitor está incluído) que nunca, como ela, debateu sobre esses temas. Será que ela sabe que havia escravidão na África e que muitos africanos vendiam outros negros para os brasileiros?

Ela sabia que Zumbi dos Palmares tinha escravos em seu quilombo? Ou isso também é uma “nuance complexa e dinâmica” demais para nós? A professora não parece ter sido uma aluna muito assídua nas aulas de história do Brasil.

O título cai bem à proposta do livro, já que parece ter sido escrito para um tipo de público específico, como se fosse direcionado, um livro de etiqueta política. A cada dez páginas, o leitor, se for branco, é alfinetado. Da mesma forma que a autora diz ter sofrido por ter “sido acusada de ser negra”, o leitor é, aqui e ali, acusado de ser branco. Uma pequena amostra: “Ainda que uma pessoa branca tenha atributos morais positivos — por exemplo, que seja gentil com pessoas negras —, ela não só se beneficia da estrutura racista como muitas vezes, mesmo sem perceber, compactua com a violência racial.”

Não menosprezo a experiência de ninguém, e sei que ser prejulgado por condição social ou etnia é algo tenebroso, mas afirmações como esta beiram à demonização pura e simples. “Ainda que uma pessoa branca tenha atributos morais”, isto é, a frase obviamente insinua que ela (a “pessoa branca”) normalmente não os têm, e ainda assim, se ela os tiver, ela “se beneficia da estrutura”, e mesmo sem ser (violenta), ela é violenta(!). Revanchismo descarado? Marxismo disfarçado de justiçamento social? Vamos em frente, pois a coisa vai ficando ainda mais preta…

A certa altura do manifesto, digo, do manual, a autora discorre sobre os “os privilégios da branquitude”. Segundo ela, porque há poucos negros no poder, “todas as pessoas devem questionar essa ausência.” E que “é preciso pensar em ações que mudem essa realidade.” Aqui a primeira incursão da filósofa no mundo da matemática. Vale a pena contextualizar:

“Se a população negra é a maioria no país, quase 56%, o que torna o Brasil a maior nação negra fora da África, a ausência de pessoas negras em espaços de poder deveria ser algo chocante. Portanto, uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que entenda os privilégios que acompanham a sua cor. Isso é importante para que privilégios não sejam naturalizados ou considerados apenas esforço próprio.”

Explanando… Porque a população negra é maioria, os negros não serem chefes, comandantes, presidentes, deve chocar. A partir desse “choque” os brancos devem entender que são automaticamente privilegiados por serem brancos (vivam eles em Copacabana ou debaixo do viaduto), e que – esta é a parte mais refinada deste veneno apelidado de filosofia – esses “privilégios” (claro, ela não se digna a identificá-los) não devem ser considerados apenas “esforço próprio”. Explanando um pouco mais… Se você, amigo leitor, tem uma cor de pele diferente do que a autora qualifica como “negra”, e você conquistou uma vaga num bom emprego, se você formou uma família feliz, se você passou em primeiro lugar num concurso disputado… cuidado! Pelo menos, demonstre remorso. Há uma grande chance de que você não tenha conquistado tudo isso com o seu esforço. Sim, todas as noites mal dormidas, as viagens adiadas em troca de estudo, as festas recusadas para revisar matérias… Isso tudo pode não ter sido “apenas” o seu esforço… O que terá sido então? A pensadora não diz…

Para contrapor as afirmações estatísticas da filósofa vou me socorrer do livro “Não somos racistas” de Ali Kamel, já citado anteriormente:

Disse que o livro é pródigo em números. A parte que mais me intrigou foi o capítulo “Sumiram com os pardos”. É recorrente entre ativistas do “movimento negro” a frase “lacradora” “a pobreza no brasil tem cor, e ela é negra”. Dizem muito “o Brasil tem a maior população negra depois da Nigéria”. Mas essa interpretação (distorção) é falaciosa, já que soma pardos e pretos e os classifica como “negros”. Segundo Kamel, os brancos são, de fato, 51,4% da população. A grande omissão diz respeito aos pardos: eles são 42% dos brasileiros. Entre os 56,8 milhões de pobres, os negros são 7,1%, e não 65,8%. Os brancos, 34,2%, e os pardos, 58,7%. “Portanto, se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor é parda.”

Sem precisar apelar para a matemática, já se vê que a tese do “esforço próprio chocante” é, no mínimo, descolada da realidade, e que a exatidão não é o forte da escritora. Os pardos, não os negros, são maioria no país! Todo o argumento do livro é perneta. Mas a arenga não se importa com a vida real, o que importa é lacrar.

Nem no texto sobre o livro “Não somos racistas” nem nesse texto defendo racismo. Existem, sim, preconceitos. E não são poucos. E todos devemos nos educar para suprimi-los, não há dúvida. Para isso é preciso antes de tudo ser objetivo e realista. Qual a base dos problemas desta Nação? A educação. Somos um povo pobre, mas antes de tudo sem educação. Séculos de preconceito não se desmancham no ar tão facilmente. Mas o povo brasileiro está caminhando, está se formando. Todos juntos e misturados, inclusive. O tom ressentido de propaganda travestida de filosofia deste livro menospreza aquilo que vejo como uma grande força para o bem, isto é, a nossa capacidade (quiçá) única de miscigenação. A tendência que este povo tem para a síntese de tudo, da filosofia à política, da religião à arte.

A autora chega a deplorar que somos assim. Lamenta que não tenha acontecido por aqui o que aconteceu nos EUA e na África do Sul, locais em que a segregação era brutal. Diz que somos amortecidos, porque não tivemos um “apertheid” para chamar de nosso. É uma questão de perspectiva isso. Reconhecer a miscigenação – o que não significa ignorar o racismo – como um “vir a ser”, como um caminho, o nosso caminho, o caminho brasileiro, gira uma chave importante.

Ignorar esse mecanismo, que está aí, na história, nas ruas, nas casas, nos relacionamentos, é descartar uma ferramenta preciosa para elevar a consciência nacional pela convivência de indivíduos tão diversos, mas ao mesmo tempo tão iguais, porque de mesmas raízes.

A autora insiste por diversas vezes no coletivo. Para ela o indivíduo é deslegitimado. O testemunho válido é o da “estrutura”. Não importa se você não é racista. A superestrutura na qual você está é. Logo, você é. Não importa se você é casado com uma negra, você é racista. Não importa se você diz não ser racista, você é, só não sabe. Isto é, como ela não pode entrar na mente do leitor e obrigá-lo a dizer “ok, você venceu, eu sou racista”, ela conjura o anátema sobre a coletividade. Segundo ela, “é impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista.” O que seria dos mais de 1200 judeus que Oscar Schindler salvou da máquina nazista, se ele tivesse lido o “Pequeno manual antirracista”, não!? Ainda bem que não leu.

A parte final do livro trata de “políticas afirmativas”, isto é, de criar espaços (mais uma vez ela deixa implícito que todos sabem o que é isso) para os negros, onde eles normalmente não estão. Ler este tipo de livro é como conversar com um papagaio. Você vê que o argumento inicial é fraco e, para dizer o mínimo, falso, mas ele sempre retorna. Os negros, e muitos brancos e pardos também, não estão em posições de destaque na sociedade, o que pode ser sim por causa do racismo ou do preconceito, mas definitivamente não é exclusivamente por causa disso. O maior problema do nosso povo, repito, é a educação. Esta é a maior chaga. O maior obstáculo. O governo populista brasileiro instituiu a política de cotas. Mas o mal foi atacado pela raiz? Eliminou-se a possibilidade de haver cada vez mais gente inculta? Não! A cota pode ser necessária num primeiro momento, mas não é suficiente, e deve ser substituída simultaneamente por investimentos sérios em educação. É preciso educar o povo para que o indivíduo ascenda com o “esforço próprio”, e não criar um mundo paralelo de chances artificiais bancadas com o dinheiro arrancado dos impostos. Mas a educação das massas não interessou aos marxistas de ontem nem tampouco interessa aos de hoje.

Num dos capítulos finais, intitulado “Leia autores negros”, o livro diz que “se somos a maioria da população [já vimos que isso não é verdade], nossas elaborações devem ser lidas, debatidas e citadas.” “Devem” é um mandamento, uma ordem. Uma obra é lida porque me interessa ou porque é bem escrita, porque é real para mim, mas, mais importante, porque tem qualidade. E qualidade nunca dependeu de cor de pele, de raça, de sexo. Quem não lê Machado de Assis, porque ele era negro, além de preconceituoso é idiota. Daí, a dizer que as obras intelectuais devem ser filtradas com base na cor da pele do indivíduo, estaremos entrando em terreno perigoso. Só estaremos trocando um racismo pelo outro.

Eu recomendo fortemente que este livro seja lido. E logo depois esquecido.

O livro tem 108 páginas e foi publicado em 2019. É vencedor do Prêmio Jabuti 2020 na categoria Ciências Humanas

JB Reis / https://linktr.ee/veteranistao

Revista Sociedade Militar

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