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Não basta enfiar a faca, é preciso rodar (Militares / reserva – A farsa da meritocracia rompeu o fio)- JB Reis

 “[O general] deve ser capaz de iludir seus oficiais e soldados por meio de relatórios e apresentações falsas e, assim, mantê-los em total ignorância.”

(A Arte da guerra, de Sun Tzu)

Uma das sutilezas da vida dita civilizada é poder-se matar um sujeito a crédito. Para esta modalidade de crime praticamente não há tipificação penal. Pode-se levar anos a consumar o fato. Mata-se lentamente ‒ como dito, às prestações, aos poucos. Como as tecnologias atuais dão voz a praticamente todos, é possível exercer esse tipo de esporte nefasto mesmo à distância. Com uma conexão de internet fazendo o papel de arco e muitas palavras vagas e cálculos controversos fazendo papel de flechas é possível espicaçar o alvo e atormentá-lo por raiva ou indignação, e ainda posar de bom moço. Ironia e deboche são as setas mais eficazes e certeiras. São delicados requintes de tortura pós-modernos que substituem (não perfeitamente, pois perfeito só Deus!) a gana real que os assassinos de reputação têm de exterminar, extirpar da vida social, em uma palavra feia, “matar” aqueles dos quais, por enquanto, só podem debochar e tripudiar.

Há alguns meses, em uma audiência no Congresso Nacional, um deputado questionou o comandante da Força Aérea sobre o fato de a Lei nº 13.954/19 ter “deixado soldados para trás”. Esta Lei foi promulgada sem vacilação por Jair Bolsonaro, apesar de ele saber dos prejuízos que adviriam dela. A resposta ao deputado foi que ele, o deputado, estaria enganado, que os militares da Lacuna 2001-2019 ‒ que só na FAB são no mínimo vinte mil ‒ não foram deixados para trás, e que esse “sentimento” do deputado não seria verdadeiro. O que não é verdadeiro só pode ser uma mentira. Se o deputado mente, é lá com ele. Não seria o primeiro nem o último político a mentir… Já o comandante militar, por seu turno, afirmou ter responsabilidade por “suas” tantas outras dezenas de milhares de militares, e que tal alegação do deputado seria, além de mentirosa (o que não é verdade, só pode ser mentira!), “perigosa”. Mas vinte mil militares sabidamente varridos para debaixo do tapete pelo Governo (em sua maioria eleitores de primeira hora do Presidente) não teriam condições mentais de aferir os próprios sentimentos? Estariam todos esses homens e mulheres sofrendo de alucinação coletiva? Teriam perdido a capacidade de fazer simples comparações matemáticas em suas folhas de pagamento? Isto certamente não é verdadeiro…

Mais recentemente o comandante da Marinha do Brasil deu declarações bastante objetivas sobre a reestruturação da carreira das Forças Armadas. Afirmou com toda convicção que os suboficiais teriam tido vantagens financeiras mais consideráveis, percentualmente maiores do que os oficiais. O almirante estava no seu ambiente controlado, não havia interlocução séria nem muito menos alguém para lhe contradizer. Sabemos que isso é normal no militarismo. Por outro lado, no mundo real, os comentários nas redes sociais de militares foram em geral de tom irônico, para dizer o mínimo. Alguns até já estão saindo em defesa do comandante, o que é compreensível, pois o assunto é tão intrincado, a Lei nº 13.954/19 foi tão mal costurada e seus efeitos são tão inéditos e danosos, que é realmente temerário tentar contrapor as palavras ditas na entrevista simplesmente usando números frios.

Mas algo de muito revelador jaz nas entrelinhas desses dois episódios. Um princípio, uma ideia subjacente, como um pensamento diretor que jamais é convertido em palavras, mas que conduz e delimita esses discursos, essas falas tão desconectadas da realidade. Todos estamos mais do que carecas de saber que os militares que se aposentaram entre 2001 e 2019 foram desprezados pelo governo. Este exército invisível de homens e mulheres é uma pedra no salto alto da cúpula militar. Lá em 2019, quando os veteranos da Lacuna foram rotulados pelos generais políticos como “retrovisores”, “incompetentes e preguiçosos”, os ofensores não agiram assim pelo calor do momento.

Não eram simples ofensas. Aquele tratamento aparentemente passional na verdade era fruto de estratégia. Fazia parte do mito justificador de uma lei de exclusão, de uma lei elitista que, aos olhos míopes do parlamento, fazia justiça aos militares da ativa ao mesmo tempo em que punia os veteranos “desinteressados na carreira”. Hoje, dois anos após essa fábula ter sido encenada, o descaso do governo somado à negação dos comandantes militares também não são atos desconexos e isolados, mas fazem parte da sedimentação do mito criado em torno da meritocracia, que pretende justificar a ruptura radical inaugurada pelo governo Bolsonaro.

A reserva militar não é uma aposentadoria. Não é um depósito de encostados. A reserva é um seguimento venerável e lógico do militar fardado. A farsa da meritocracia rompeu esse fio. Houve sim quebra de hierarquia. Houve sim afronta à disciplina. E estes dois pilares deveriam ser o código genético de todos os militares, sem exceção, não sós de alguns escolhidos. Mas já está estabelecido que no militarismo brasileiro pós-Bolsonaro, o antigo lema “antiguidade é posto” é artigo de museu. A imprensa especializada já sabe que um general recebeu até agora cinco mil reais a mais, enquanto um cabo recebeu três reais. Ambos na reserva. Quem é o oportunista!?

A verdade é que admitir que existe a Lacuna 2001-2019, admitir que as pensionistas foram roubadas pelo Governo, seria admitir que a Lei foi um erro, que o Presidente errou, que meia dúzia de generais, almirantes e brigadeiros erraram e que vinte mil militares incômodos estão certos. Então é preciso negar a realidade. É preciso moldar os números. É preciso caluniar, chamar de oportunista, de comunista. É preciso debochar e tripudiar, vencer pelo desprezo, até que o último veterano lacunado tenha passado desta para melhor, e o assunto esteja morto e enterrado. Enfim, não basta enfiar a faca, é preciso rodar.

JB Reis / (servientes armorum do Veteranistão)

https://linktr.ee/veteranistao / Publicado na Revista Sociedade Militar

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Sociedade Militar