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A Mansão dos mortos – (com uma visão relevante sobre a estruturação das carreiras militares no Brasil)

 “O terrível choque da derrota parece tê-los libertado.”

(Raoul Girardet)

Na semana passada, em Ouro Preto, Minas Gerais, um casarão foi soterrado por um deslizamento de terra. Embora já se encontrasse desde 2012 em observação por causa de outro deslizamento, o imóvel caiu, a mãe Natureza foi declarada culpada pelos homens, e a vida continuou. Felizmente não houve vítimas. Como sempre, acorreram os amantes da história, os defensores da arte, que nunca leram mais do que placas de trânsito, lamentando o incidente, culpando a Deus e o mundo – alguns até culpando o Bolsonaro. Deplorando que a história precisa ser conservada, que um povo sem memória não tem futuro, e tais platitudes que pululam por aí, quando algo assim acontece. Diz a sabedoria antiga que quando uma coisa cai ou se quebra é sinal de que algo dentro dos seres se rompe.

A partir dessa ruptura, nascida da aparente destruição, criam-se novos espaços para reconstrução. Assim foi com a bomba sobre o Japão, que fez nascer o Japão da paz. Assim ensina a sinfonia eterna da existência, que da morte faz rebrotar a vida. As revoluções amiúde nascem da quebra do que não pode mais se manter. Nem tudo deve ser conservado, mas nem tudo precisa mudar. Aferrar-se desesperadamente a uma ideologia tem sido a causa das piores quedas das coletividades, e com isso a inteligência se corrompe, embota-se, cristaliza-se. Mas isso é temporário, pois a inteligência é dinâmica, pulsante, e nasce do discernimento frente a cada passo, e não de ideologias natimortas. 

É conhecida a importância que teve a Missão Militar Francesa no Brasil, inicialmente prevista para poucos anos, mas que durou mais de vinte. A criação da Escola de Aviação Brasileira no Campo dos Afonsos, embrião da Força Aérea Brasileira, é devida a esse intercâmbio transatlântico entre os dois países. Curioso é que essa transfusão de ideias do velho para o novo mundo não trouxe apenas aparato bélico e doutrina militar.

O livro “A Sociedade Militar”, de Raoul Girardet, conta a história das Armas francesas desde 1815 até o fim do século XX. É assombroso constatar que os problemas que envolvem a classe armada, e que até hoje assolam a Família Militar brasileira, já eram sintomáticos no século XIX na França! A especialização minuciosa dos quadros de tropa – provavelmente refletida nas escolas de sargento brasileiras – colaborando para a necrose intelectual dos jovens militares, obstruindo-lhes a visão panorâmica da profissão (o que ainda hoje é uma decepção para as mentes férteis e, depois do salário pífio, grande motivo de evasão); o uso das Forças Armadas como força policial interna ou em grandes obras de utilidade pública já eram pautas de um debate ruidoso entre políticos e generais; o preconceito – vigente ainda hoje nos quartéis – contra o militar que “comprava e lia livros (…) ávido de ideias gerais” e que era visto por seus superiores como “‘farsante’, qualificativo que arriscava comprometer toda sua carreira”. Exemplos de casarões que se mantêm arrogantemente de pé, contrariando o espírito do tempo.

A recente reestruturação da carreira militar foi um exemplo de casa edificada sobre areia movediça. Alicerçada sobre a meritocracia, ideologia político-social que diz que tudo na vida deve ser dado como recompensa pela aplicação de esforço pessoal e por habilidades específicas – mas que convenientemente ignora a inerente diversidade dos seres humanos – a mudança na carreira militar mirava tão somente espoliar este setor do Executivo (as Forças Armadas), que por ser politicamente desorganizado, sem representação no Legislativo e completamente desprovido de união classista, mostrou-se presa fácil da voracidade neoliberal do atual Governo.

Graças às assessorias militares infiltradas no teatro parlamentar, os oficiais generais puderam conservar ilesas por mais algumas décadas as benesses próprias de sua “linhagem” aristocrática, até que um novo Bolsonaro apareça para derrubar o que foi construído. Conservaram com unhas, dentes e medalhas suas posições, e, como bons revolucionários de escritório, entregaram na bandeja de Paulo Guedes, as pensionistas dos praças e milhares de subtenentes, sargentos e cabos já aposentados como moeda de troca, para custear uma reforma que só trouxe arrocho para todos, menos para os bem nascidos das academias militares. Para os aristocratas da caserna nada mudou… a reestruturação foi uma revolução conservadora.

Para os que foram traídos de maneira covarde pelos que lhes deviam proteção moral e profissional restou o estupor. Ainda atordoados, mas já refeitos, os mais despertos divisam o único caminho a seguir, a via política. Aqueles que pelas leis vigentes e pelo dever de obediência irrestrita ainda não podem falar, observam, já antevendo que estão flutuando num mar de incertezas futuras.

Onde vigorava a ordem mais conservadora, nada mais parece ser garantido. Por outro lado, Alguns dos que estão libertos das amarras da caserna já se organizam para forjar uma nova força política, algo inédito na história do Brasil. Um partido político composto preponderantemente pelos militares que vieram diretamente do coração do povo brasileiro, que sabidamente são as pernas e os braços das Forças Armadas.

Os militares que conheceram o descaso de muitos comandantes, que provaram as arbitrariedades de um sistema pervertido por força de lei, e que só pode ser mudado pela lei. Essa mansão ancestral, que nenhuma ideologia política quer revolucionar, muito menos derrubar, só pode ser reformada por essa nova ordem de militares. Só os que se forjaram no coração das Forças Armadas, e que sempre as levaram, silenciosos e anônimos, “às estrelas e além”, com dedicação raramente reconhecida pelos comandantes, desconhecidos do grande público, só esses militares, que são o híbrido perfeito entre a antiga honra cavalheiresca e a vibrante tradição democrática têm a chave correta para abrir as portas dessa casa grande.

JBReis / https://linktr.ee/veteranistao

Revista Sociedade Militar

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