Forças Armadas

O Advogado do diabo e o Comando dos sargentos

 “Nunca houve no Exército, e com ele é incompatível, essa ideia de classe no sentido moderno (sindical) de se contraporem umas às outras em busca de benefícios exclusivos. E é claríssima a nocividade de tais criações esdrúxulas nas classes armadas.”    Pedro Aurélio de Góes Monteiro, general-de-exército e político brasileiro

Há um livro chamado “Praças em pé de guerra”, de Paulo Parucker que é fundamental para se conhecer o período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964. A obra trata, além de outros temas correlatos, daquilo que ficou conhecido como o “comando dos sargentos”. Há também um artigo bastante detalhado publicado na Revista Sociedade Militar pelo cientista social Robson Augusto. Em resumo, a representatividade política – em seu sentido mais amplo, isto é, não só eleger, mas também ser eleito – aos olhos dos senhores de engenho, ou melhor, dos comandantes militares do passado, era taxativamente proibitiva para os praças. A trama foi muito bem escrita e documentada, e não careceria de ser repisada, não fosse por um detalhe. Ela pode estar se repetindo.

O atual presidente da República, no início de sua vida política, provavelmente a contragosto, travestiu-se de “sindicalista” da suboficialidade. Proscrito pelos generais da época, evitado pelos antigos colegas de academia, voltou-se para as camadas subterrâneas da hierarquia militar, enxergando naquelas pessoas simples uma peculiar massa de manobra. À custa de pronunciamentos aguerridos, mas bastante embasados, sobre o sucateamento da carreira, perpetuou-se na política como deputado, exercendo mandatos tão inúteis quanto longevos, praticamente graças aos votos de subtenentes, sargentos, cabos e soldados. Posteriormente com uma “ajuda” considerável da cleptocracia petista e do fantasmagórico “partido militar” tornou-se isso que é hoje. Mas como não existe crime perfeito, sempre ficam pontas soltas aqui e ali.

Não se sabe com certeza se o presidente Bolsonaro foi enrolado pelos generais, se foi coagido pelo ministro da economia (que tem horror a aposentados) ou se promulgou a nova lei previdenciária militar com o intuito deliberado de prejudicar os militares mais pobres (aqueles mesmos que o acolheram, quando ele nada mais era do que um pária aos olhos das Forças Armadas). Talvez nunca se saiba. Amante que é da democracia de cercadinho, ele não é muito inclinado a responder perguntas incômodas. O fato é que muitos entre os milhares que ele e os comandantes militares deixaram a ver navios financeira e moralmente em 2019, agora estão se organizando para criar um partido político. Um “déjà vu”?

As Forças Armadas são constituídas por oficiais e praças. Segundo o livro “Forças Armadas e Política no Brasil”, de José Murilo de Carvalho, (Jorge ZAHAR Editor; Rio de Janeiro, 2006), “tradicionalmente, por exemplo, o corpo de oficiais era recrutado entre a nobreza, e as praças, entre os camponeses e proletários urbanos. Esse tipo de recrutamento teve importantes consequências políticas. Possibilitava, de um lado, a identificação entre a oficialidade e os grupos politicamente dominantes e, de outro, o isolamento da oficialidade em relação às praças. Garantia a lealdade dos oficiais ao governo, ao mesmo tempo que impedia que eles se unissem aos escalões inferiores, com perda para o poder político da organização.”

Não é possível um exército só de comandantes, assim como não é concebível um ser humano platônico. É necessário que haja os idealizadores, mas também que haja os executores das ideias, os braços e as pernas que façam as Forças se moverem, seja no espaço, seja no tempo. Mas a história dá testemunho de que essa relação entre comandantes e comandados traz oculta uma componente política. Os praças seriam então, aos olhos dos detentores do poder militar, nada além de um “mal necessário”. Um lastro, que, se por um lado, serve para controlar as condições de equilíbrio de uma embarcação ou de um aeróstato, ao mesmo tempo, impede essas naves de avançarem mais livremente. Quem são os praças? Os praças são exatamente aquilo que as elites mais desprezam, e conquanto necessitem deles, detestam-nos mais do que tudo. Os praças são o povo.

Face a esse dilema, os líderes militares sempre trataram de manter as rédeas curtas. Um mínimo de direitos, cada vez mais restrições e muita arbitrariedade historicamente foi a política adotada para a carreira dos praças, em tudo diversa do que é reservado à carreira dos oficiais. Ou seja, há um vício de origem na própria gênese militar, cuja estrutura é edificada sobre o insulamento de uma de suas categorias formadoras.

Há poucos dias, foi condenado a quatorze anos de cadeia o sargento que traficava drogas no avião presidencial. Não havia nenhum suboficial ou sargento no conselho, que foi composto por um juiz, um coronel e três capitães. Que senso de justiça um réu pode experimentar em um julgamento desse tipo? O Princípio do Tribunal do Júri, isto é, a possibilidade de ser julgado pelos semelhantes, pelos seus pares, que se aplica ao último dos seres humanos, não se aplica ao praça das Forças Armadas. Nos últimos anos têm se multiplicado as investidas de políticos contra a Família Militar. Não se passam seis meses sem que algum projeto de lei tente tomar a bolsa minguada das pensionistas. Muitos dos praças eleitos em 2018 sob a bênção financeira de Bolsonaro encontram-se tão comprometidos com o ridículo jogo de cena governamental, que não gozam mais de nenhuma confiança por parte da tropa. Transcenderam a mera inutilidade parlamentar.

As manifestações de rua, o exercício da democracia por excelência – talvez até mais do que o sufrágio – minguaram a tal ponto vergonhoso, que, a mais recente, ocorrida no Rio de Janeiro (talvez a cidade com maior concentração de militares do Brasil), contou apenas com duas pensionistas e algumas dezenas de veteranos. Enquanto este texto está sendo escrito, aprova-se um projeto de lei para alteração do CPM. Quem está pilotando esse “panzer” anacrônico? Uma comissão mista de advogados, militares de ambas as categorias, associações de sargentos? Não. Um deputado, que teima em se autodenominar “general”, e que quer criminalizar “a atividade de vigilância ou segurança privada exercida por militares”, cominando pena de 2 a 4 anos de cadeia.

Submetidos por décadas a esse deplorável túnel de realidade, os militares de baixa hierarquia, sacudidos pela “onda Bolsonaro”, que atingiu em cheio veteranos e pensionistas, buscam, nos escombros de suas vidas erguer-se dessa invisibilidade, vencer esse complexo de castração que mancha a categoria. Aproveitando-se do estrago causado pelo presidente, um núcleo discreto começa a arregimentar voluntários para formar um partido político, que aparentemente terá a missão hercúlea de dar protagonismo aos estratos militares mais humildes, historicamente identificados com o povo.

Para isso devem costurar alianças, já que depois de tantos abusos, a credencial “militar” já começa a ficar suspeita. Deverão vencer uma forte resistência, fruto da própria doutrina militar, em relação ao envolvimento político. Precisarão lidar com um público no mínimo cinquentenário, condicionado por uma autopercepção insidiosa de baixa autoestima – não há veteranos jovens. Além de tudo isso, terão que remover ou furar a barreira gigantesca de contradições entre o asco que o bolsonarismo desperta no público civil, que pode vir a se identificar com os anseios dos praças, e a adoração irracional ao presidente, que, por incrível que pareça, mesmo entre militares simpatizantes do movimento político, ainda é muito forte.

É possível que 1963 se repita? Não exatamente nos mesmos moldes, mas é possível. A história será a mesma? Dificilmente. O que o futuro reserva ao novo “comando dos sargentos” é uma incógnita, mas o que é fora de dúvida é que ele precisa se erguer e andar com as próprias pernas.

JB Reis

https://linktr.ee/veteranistao / Revista Sociedade Militar

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Sociedade Militar