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A política entrou no quartel! E agora, quando sairá?

A Regência de chumbo

Um vislumbre da república tutelada

“A utilização repetida e continuada das Forças Armadas em nosso país para a conquista do poder, impossível, para as forças do atraso, pela via eleitoral, é responsável por tal deterioração e consequentemente pelo declínio da disciplina que lhe é necessária, e que constitui mesmo a sua razão de ser.”

História militar brasileira, Nelson Werneck Sodré

Desde os primórdios da história do Brasil, a classe militar sempre orbitou em torno do poder. Como uma presença subliminar os militares parecem custodiar o Estado brasileiro, desde o tempo das sesmarias até os dias atuais, como fiadores de um nacionalismo desinteressado, mas necessário. A erupção republicana, sem a mínima participação de um povo, que, no século da revolução industrial, aparentava viver no medievo, foi resultado de uma intriga pessoal encabeçada por generais do exército. A partir daquele momento, os militares passariam a figurar como um Mefistófeles institucional ora a derrubar governos ora a erigir lideranças tuteladas. O que se segue é um apanhado histórico despretensioso da mais recente, mas talvez não última, investida da tropa política.

Sob uma perspectiva dos militares (cada vez mais majoritária, à medida que se sobe a escada da hierarquia) entre 1964 e 1985 no Brasil não houve ditadura, mas sim um “regime forte”. Aliás, essa afirmação do atual ministro da casa civil Walter Braga Netto (que ironicamente é militar) – proferida na Câmara dos Deputados, em 2021 – foi usada por ele como “prova” circular de que a história está errada, pois segundo ele, “se tivesse havido ditadura” muitas pessoas não estariam vivas. Parece que o “chega pra lá” do general disfarçado de ministro deu resultado, já que nenhum parlamentar naquela sala se incomodou com o que foi dito. Teriam concordado com o chilique revisionista do general!?

Por outro lado, e com outras cores, é estabelecido o consenso acadêmico de que houve sim um regime de exceção, com repressão estatal e todos os abusos que configuram uma ditadura militar. Tanto os militares quanto os guerrilheiros dos diversos movimentos revolucionários (que depois se tornaram homens públicos influentes na República!) tratam de moldar a história dentro dos limites de suas visões de mundo, e com isso gerar uma narrativa, uma maneira de (re) contar a história. Como em 1984, romance distópico de George Orwell, “quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. Ambos os grupos pintam o mundo com suas tintas preferidas e idolatram a interpretação tendenciosa que eles mesmos criaram, fazendo desse autoengano o protótipo da realidade última pela qual lutam entre si.

Mas sempre há uma alternativa, e normalmente ela é bem menos romântica do que as novelas enviesadas dos roteiristas da moda. De acordo com o cientista social Robson Augusto em seu artigo sobre 1964, os generais daquela época tiveram como motivação principal para o golpe nada mais do que o medo de serem depostos de seus tronos burocráticos conquistados na vida militar com toda a estrutura de benesses e privilégios bancada pelo Estado brasileiro. As águas turvas que se prestaram a justificar o injustificável, isto é, o rompimento da ordem democrática com tudo o que se seguiu depois, foi a ameaça (real) do socialismo no mundo, a guerra fria, a URSS, Cuba, enfim, a conveniente e oportuna culpa alheia. Uma estratégia de sucesso usada até hoje.

Nos fins da década de 1980, o “regime forte” teve um ocaso melancólico, mas marcado por um incidente folclórico cujas consequências seriam duramente sentidas por todos os brasileiros dali a trinta anos. A reportagem da revista Veja sobre um certo capitão Bolsonaro e seu posterior julgamento pelo Superior Tribunal Militar. De acordo com o livro de Luiz Marklouf Carvalho, “O Cadete e o capitão”, que descreve os fatos, o julgamento foi marcado mais por ofensas e ressentimentos em relação à revista Veja e à imprensa em geral do que realmente por algo que ultrapassasse o “espírito de corpo” corporativista da classe armada. É sabido que os militares (em geral no topo da pirâmide) se veem como destacados da massa social, mais brasileiros que o comum dos mortais e incumbidos sabe-se lá por qual divindade castrense de missões que só eles poderiam cumprir. Ao que parece, os fatos atribuídos ao capitão e divulgados pela imprensa, longe de colaborar para desabonar o réu, serviram mais para alimentar o ranço classista dos que estavam sendo defenestrados da cena política. A reabertura democrática congelou essa mentalidade, colocou seus ideólogos em hibernação, mas não eliminou a ideologia. Ela se recolheu aos quartéis e esperou… aguardando os sinais dos tempos.

Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar. Mas o que há de militar no Congresso? Acho que não há mais ninguém.” Esta frase foi dita pelo general Ernesto Geisel em entrevista concedida em 28 de julho de 1993, durante o governo de Itamar Franco, ao antropólogo Celso Castro. Segundo o falecido general, os “militares devem ficar fora da política partidária, mas não da política geral” e que à medida que o país fosse se desenvolvendo, essa interferência iria diminuindo. Mesmo fazendo concessões suspeitas ao espírito democrático nascente, é possível perceber um tom de ressentimento, de nostalgia, mas também de que, conquanto a saída dos militares tivesse sido pela porta dos fundos, ela teve pouco ou nenhum dano colateral. Já o deputado Jair Bolsonaro por muitos anos foi constrangido a fazer suas campanhas políticas do lado de fora dos quartéis – aliás, como manda a lei.

Em 16 de maio de 2012, o governo Dilma Rousseff instaurou a Comissão Nacional da Verdade. Os desdobramentos dessa iniciativa tardia – excessivamente tardia, pois basta lembrar que os luminares do partido nazista foram julgados menos de um ano após o final da segunda guerra –  mas inescapável do Estado brasileiro foram muito sérios. Mas, um episódio marcante, mais pelo simbolismo histórico do que pelo drama pessoal, foi o depoimento do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela justiça brasileira em 2008 como tendo sido torturador durante a ditadura… e ídolo do deputado Bolsonaro. Chamado a depor na CNV, uma de suas falas mais emblemáticas foi a de que, segundo ele, “quem deveria estar (…)” sendo interrogado era “o Exército Brasileiro”, pois ele, o coronel, sob o governo militar, “estava seguindo ordens legais da cadeia de comando”. Sabemos onde estava o Exército nos anos 60, mas onde estava o Exército na primeira década do século XXI?

Em 2013 eclodiram as hoje chamadas “jornadas de junho”. Protestos organizados pelo país, que chegaram a ser apoiados por quase 90% da população. Demandas sociais e políticas diversas aglutinaram-se em torno do eixo corrupção, impunidade e gastos estratosféricos do governo com a copa do mundo. No ano seguinte, o segundo mandato fantoche da ex-guerrilheira tratou de passar uma borracha nas “jornadas de junho”, e iniciou o governo com popularidade ainda mais baixa. O petrolão estava a todo vapor… A crise estava instalada. Talvez um primeiro sinal dos tempos.

Em 2015, o atual vice-presidente Hamilton Mourão, que à época era general da ativa, foi exonerado do cargo de comandante dos exércitos do Sul. Em uma palestra privada dentro de um quartel, um CPOR, ele dissera que era necessário um “despertar para a luta patriótica”. Mais tarde, em entrevista, saindo pela tangente, ele diria que a “luta patriótica” seria um “esforço e empenho de todos os patriotas no sentido de sobrepujar a crise“. É de se perguntar, como uma palestra feita por um general de exército, dentro de um CPOR chegou à imprensa…

Na minha visão, que coincide com a dos companheiros que estão no alto comando do Exército, estamos numa situação que poderíamos lembrar da tábua de logaritmo, de aproximações sucessivas. Até chegar ao momento em que ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou, então, nós teremos que impor isso”. Esta foi mais uma declaração dada pelo general Mourão em setembro de 2017. O ministro da Defesa, Raul Jungman chamou o Comandante da Força terrestre, general Villas-Bôas, e ficou decidido que as falas de Mourão não configuraram nenhum ilícito e que o “clima nas Forças Armadas era de absoluta tranquilidade”. Esta também foi a narrativa do Ministério Público Militar.

Morto o general Leônidas Pires, que insistiu na expulsão do capitão Bolsonaro do EB por incompatibilidade com o exercício do oficialato; morto Geisel, do qual já sabemos o que pensava do deputado, quem, na sociedade militar, denunciaria a escabrosa inversão de valores que estava por vir? Observe o leitor que isso é de importância crucial.

Não importava que qualquer cidadão soubesse do passado, menos ainda que a imprensa o reverberasse.

Excluídos do cenário os antigos generais – que certamente seriam uma presença incômoda, e provavelmente um voz de comando censora de ascendência inquestionável no universo militar – estava livre o caminho para o retorno triunfal da regência de chumbo. As Forças Armadas eram recorrentemente apontadas pela imprensa como as instituições nacionais de maior credibilidade perante a opinião pública. Em fins de 2016 foi lançada a cabeça de ponte derradeira. O deputado Jair Bolsonaro voltava sorridente a frequentar os quartéis para fazer a campanha política mais inadequada de que se tem notícia na história do Brasil.

Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, dizia a primeira postagem do general Eduardo Villas-Bôas (comandante do EB entre 2015-2019), feita no dia 3 de abril de 2018 no Twitter. A postagem polêmica, um petardo vindo diretamente do coração das Forças Armadas, foi interpretada por grande parte da imprensa e de estudiosos do tema, como uma pressão inapropriada e totalmente indevida, exercida contra o Supremo Tribunal Federal, que julgava o ex-presidente Lula por crimes de corrupção. Em uma segunda publicação na rede social, dirigida aos “cidadãos de bem” (típica abstração sem pé nem cabeça matraqueada pelo deputado Bolsonaro) o general, assoprando depois de morder, dizia que o EB “estava atento às suas missões institucionais”. Dois meses depois, foi lançada a campanha de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República, com o slogan da Brigada de Infantaria Paraquedista (Brasil acima de tudo) “gentilmente cedido” pelo Exército Brasileiro, sem nenhuma ressalva do Tribunal Superior Eleitoral.

Geisel queixou-se de que não havia militares suficientes no Congresso na década de noventa. Hoje, só no Executivo, há mais de seis mil fardados (ou de pijama) “aparelhando” a Administração Federal. Na conveniente e oportuna picada aberta pelo “mau militar”, oficiais generais das três Forças revezam-se nos pináculos do leviatã nacional, grande parte deles sem competência técnica legal para ocupar tais cargos, alguns inclusive bastante sensíveis, e que, num governo sério, jamais seriam ocupados por alguém sem as mais altas qualificações.

Descendo a escadinha hierárquica pode-se encontrar do coronel ao sargento, acocorados um e outro em cargos milionários ou em postos singelos como os antigos, agora ressurretos, bedéis, que disciplinarão nossas “gerações futuras” nas escolas cívico militares. Já se pode notar influências dessa blitzkrieg diluída no tempo. O caso mais descarado ocorreu na gestão da pandemia de coronavírus, em que um general (pelo insuspeito fato de ser general) encarnou o papel de ministro da saúde num dos momentos mais graves da crise. Há relatos de historiadores que estão tendo trabalhos acadêmicos “congelados” porque questionam a ditadura militar de 64 por um viés antigovernista. Um coronel da reserva abertamente crítico à politização dos militares e à regência (informalmente) empossada afirmou recentemente em rede social ter sido proscrito de um debate público por um reitor de uma universidade por supostamente ser ele, o coronel, um “militante petista”.

Os frutos surgem nos mais diversos campos. Um em especial promete ser o pomo de ouro da semeadura. Recentemente em uma sessão na Câmara dos Deputados, um deputado da chamada esquerda radical perguntou a um deputado da base governista (ultra direita) – que insiste em usar a designação de general – se era justo que o governo Bolsonaro remunerasse com mais de duzentos mil reais mensais o diretor da Petrobrás (outro general), enquanto inativos e pensionistas das Forças Armadas, em sua maioria praças, tiveram direitos usurpados e prejuízos em seus salários. O general sem soldados, deputado sem povo, não respondeu e encerrou laconicamente a sessão.

Uma frase lapidar do general Peri Bevilacqua, que não se metia a fazer politicagem, limitando-se a ser um bom soldado, poderia ser o dístico da regência de chumbo: Quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina e a sensatez saem pela outra“.

JB Reis / https://linktr.ee/veteranistao / Revista Sociedade Militar

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