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Os porões do submundo (… uma perigosa promiscuidade entre as Forças Armadas e o poder político)

Num momento em que guerras e rumores de guerras inundam os noticiários, seria  oportuno fazer uma reflexão breve sobre as imbricações entre militarismo e política, que em última instância são os responsáveis finais pelos conflitos armados. Há atores ainda mais obscuros que atuam por trás dessa trama, mas esses dois são os mais perceptíveis a “olho nu”. No Brasil atual, demagogia, populismo e um flerte recorrente com o autoritarismo vêm protagonizando casos de uma perigosa promiscuidade entre as Forças Armadas e o poder político.

Numa época em que a propagação da informação é fácil e barata, palavras soltas ao vento podem se transformar em tempestades, que a História certamente porá na conta dos militares.

Equivocadamente ou talvez por calculada má fé, evoca-se o passado medieval com suas fábulas arabescas como repositório do espírito patriótico justificador das guerras. Nada mais ilusório. Segundo o historiador militar Michael E. Howard, a guerra era um negócio privativo dos reis, e, ao contrário do que os amantes de um mito inexistente teimam fazer crer, a boa economia da época ditava que o “bom cidadão deveria ser deixado em paz para construir a riqueza com que pagaria os impostos”. As guerras totais, com suas estratégias de propaganda, seus alistamentos cada vez mais invasivos, são fruto da democracia moderna e dos interesses dos grandes parasitas empresariais. Guerra e capital unidos em prol de infernizar o mundo…

Se por um lado a democracia atual olha com desdém para o passado dos reis, apresentando-se como uma evolução política, por outro lado, a guerra deixou de ser um assunto real para ser um flagelo nacional, e como tal, suportado “democraticamente” por todos, voluntários ou não, pacifistas ou não. “Assim como é em cima é embaixo”. Se no extremo da guerra a coisa é escatológica, num andar mais abaixo, não há muita diferença, e quando o militarismo se deita com a politicagem os casos de pornografia politica reinam.

Há três anos a máquina pública brasileira está infestada com mais de seis mil militares, entre ativos e inativos (os “aposentados”). Quando se ocupa as engrenagens desse sistema de maneira artificial por uma classe específica, de cima para baixo, não por decorrência de capacidades comprovadas ou mérito reconhecido, mas simplesmente por imposição política, como quem está tomando os espólios de uma guerra, o resultado é o desvirtuamento tanto da boa administração quanto da própria imagem da classe “invasora”.

Em recente diretriz ministerial a pasta da Defesa, responsável pelas três Forças singulares, baixou a “ordem do dia” para as comemorações do bicentenário da independência do Brasil. Entre tantas amenidades, que já arrancam suspiros de ufanistas saudosos e de integralistas enrustidos, há desde o direto e eficaz populismo mais vulgar do tipo “prestação de serviços de saúde [e] orientações médico-odontológicas” até a fina flor da doutrinação mais descarada como “promover apresentações em escolas assistenciais e da rede pública, seminários e exposições abertas à sociedade, com o objetivo de rememorar fatos históricos relacionados à Independência do Brasil”, passando pela “restauração de monumentos e bustos de heróis da pátria, a fim de fortalecer e valorizar o sentimento cívico da nação”. Já podemos suspeitar sob que prisma os fatos históricos serão rememorados e quais heróis serão cultuados… Em ato de virtual pré-campanha, o presidente Bolsonaro, como boa caixa de ressonância da Regência de Chumbo, fez questão de exaltar a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça brasileira como torturador em 2008, chamando-o de “‘velho amigo”…

O que um governo bastardo, cria de uma simbiose anormal entre revanchismo classista e ambição pessoal, pode ter reservado para a sociedade civil? Em discurso recente sobre eleições e apuração de votos, o presidente da República, que foi militar por quase vinte anos, afirmou de modo bastante exaltado que uma entidade incerta, à qual ele se referia como “nós”, defenderá a democracia e a liberdade, se preciso for, “com o sacrifício da própria vida”. Este trecho entre aspas é um lema conhecido dos militares pois é parte do juramento que todos eles fazem à bandeira nacional, dentro de um contexto especial, quase solene. Não é uma frase de parachoque de caminhão a ser usada como estimulação de condutas potencialmente danosas.

Sabemos o que acontece quando os governos se militarizam. A história brasileira recente é pródiga de exemplos. E quanto mais se desce pelos porões desse submundo, mais nítido fica que a “milítica”, a mistura imoral da política com as armas, é o fim da picada republicana – é bom não esquecer que a República nasceu de um golpe militar. Não se torna democrata um militar por lhe tirar a farda e emprestar-lhe um discurso demagogo. É mais fácil, e é mesmo o que se pretende, que a democracia seja engolida pelo militarismo. A militarização da sociedade, e não o contrário disso, é o que buscam os “milíticos”, este é o santo Graal dessas pessoas.

O tempo dirá qual das duas instituições sobreviverá de pé a este intercurso indesejável, a democracia ou a caserna.

JB Reis – Revista Sociedade Militar

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Sociedade Militar