Forças Armadas

Pista quente. Reflexões sobre a “milítica” na era Bolsonaro – Texto de colaborador

… militares contemporâneos do capitão Bolsonaro e que, sem nenhuma crise de consciência, hoje furam o teto de gastos do orçamento, enquanto a população brasileira em massa amarga uma crise econômica sem precedentes …

Pista quente

Reflexões sobre a “milítica” na era Bolsonaro

“Melhor um fim com horror do que um horror sem fim.”
Robert Gellately, em “Apoiando Hitler”

A novidade oculta entre as linhas dos jornais é que estamos sob um governo militar, embora não de direito, mas de fato. A promiscuidade imoral e quase ilegal entre a figura política do presidente da República e um alto comando informal das Forças Armadas é mais do que patente. Por mais que a grande imprensa insista em uma polarização meramente pessoal entre figuras conhecidas da cena política, e ignore os aspectos mais profundos do aparelhamento em curso da máquina pública, é possível entrever consequências danosas decorrentes da militarização da política brasileira ora em ato.

É importante não esquecer que este governo é corolário de uma operação em estilo militar, ao que tudo indica, consciente e orquestrada por oficiais generais, e que teve como eixo principal a transmutação alquímica daquele que o próprio EB – por meio da nota nº 7.449, de 25/02/1988 de seu Centro de Comunicação Social – tentou “extirpar de suas fileiras” por “faltar à verdade e macular a dignidade militar”, o atual presidente da República. O núcleo dessa “regência” é composto por militares contemporâneos do capitão Bolsonaro e que, sem nenhuma crise de consciência, hoje furam o teto de gastos do orçamento, enquanto a população brasileira em massa amarga uma crise econômica sem precedentes.

Não podemos sustentar infantilmente que a política haja se tornado pior depois de Bolsonaro. A política profissional sempre foi terra arrasada e carente de princípios de moral elementar. Não nos importa o esgoto insalubre em que patinam felizes os seus luminares. Já há muito tempo a “mulher de César” desistiu de tentar parecer o que nunca foi. Não tocaríamos neste assunto em razão da matéria em si, se o presidente não ostentasse o título de “capitão da reserva”. O militarismo não é uma confraria de santos. O militar não é pior nem melhor do que ninguém, mas o cheque em branco dado pelas Forças Armadas à candidatura de um oficial de passado desabonador se reveste de especial gravidade, já que toda a espinha dorsal da classe armada e todo o seu ethos se baseiam no lema não escrito “a palavra convence e o exemplo arrasta”.

Seria tedioso exibir a lista de “arrastados pelo exemplo”, mas um episódio estrelado pelo nosso presidente da República (que ostenta a patente de capitão do EB em suas redes sociais) é sintomático da crise de moralidade que envolve a sociedade brasileira e que tem raízes no autoritarismo, que é uma forma distorcida de militarismo. Recentemente um assassinato grotesco realizado por policiais rodoviários deixou entrever uma dimensão até agora inédita da violência patrocinada por alguns setores estatais. Não foi uma operação policial planejada, não foi uma incursão de guerra urbana em algum esconderijo do tráfico. Foi a execução de um brasileiro, já imobilizado, incapaz de oferecer reação, ao melhor estilo nazista. O Brasil de 2022 mostrou ao mundo que já tem a sua versão tabajara do Endlösung nazi, a sua “solução final” para brasileiros como Genivaldo dos Santos, um transgressor do CTB, que foi exterminado em uma câmara de gás por não usar capacete.

Seria pouco, se fosse só um caso a mais de violência praticada pelo Estado, exceto por um fato ocorrido alguns dias depois (ou alguns dias antes, tanto faz). O presidente da República e seus motoqueiros devotos não usam capacetes, e não apenas não são abordados, como são escoltados pela PRF. O que isso nos diz? A mensagem é clara, apesar de muitos não quererem entender. Dirão que a violência sempre existiu. Dirão que não se pode culpar Bolsonaro por tudo. Tudo isso é verdade. Mas, para além do pragmatismo de superfície, não se pode desprezar o caráter transpessoal de que se revestem os atos, as falas e as atitudes do homem público mais importante do país.

Quando uma execução seguindo uma praxe historicamente reconhecida no mundo todo como nazista é realizada por membros do Governo, e o chefe desse mesmo Governo desfila em público desrespeitando a lei que levou o transgressor indefeso à câmara de gás, a mensagem mais ou menos subliminar é de que não importa a transgressão, não importa o erro, se você for um de nós, você está acima da lei. Se você não for um de nós, temos uma câmara de gás aguardando. No dia 26 de maio, a PRF afastou os policiais envolvidos no caso. O Governo, por sua vez, exonerou dois diretores da corporação. Eles, no entanto, foram indicados para cargos nos Estados Unidos e devem atuar como oficiais de ligação na capital do país. Essas nomeações são a ratificação escrita da mensagem não verbalizada de que “nós” não somos como “eles”, e que a “missão” foi recompensada.

Estamos longe de ser um povo refinado. Não temos as melhores instituições. O Brasil fragilizado do pós-impeachment foi às urnas em 2018 com menos disposição para eleger um presidente, do que para empossar um reformador radical. A maioria estava exausta de tanto escárnio com o recurso público, de tanto desprezo pela segurança, enfim, de “tanto ver triunfarem as iniquidades” (no dizer de Rui Barbosa). Um repórter televisivo disse que não se deveria politizar as mortes do jornalista inglês e do indigenista afastado da FUNAI, que não seria justo atribuí-las ao governo Bolsonaro, que a violência não nasceu em 2019 e que seria muito “perigoso” misturar as coisas. Elegemos um governo militarizado, talvez acreditando na bazófia de que fogo se combate com fogo. A tônica do governo sempre foi divisionista, “nós contra eles”, “ou eles ou nós”. As altas esferas governamentais são dominadas por adeptos contumazes da doutrina de segurança nacional. É fundamental que sempre haja um inimigo para que a teoria se encaixe coerentemente na realidade. Na falta de inimigos externos, o que se apresenta é a ameaça doméstica. O crime foi cometido, há digitais por todos os lados, mas é preciso que se apure além, é preciso que se perfure o verniz óbvio da violência aparentemente gratuita e fortuita e se mapeie o DNA dos mantenedores do caos, dos que endossam o erro, dos que premiam as torpezas do passado e lucram com seus frutos no presente. Esses são os verdadeiros inimigos da pátria.

JB Reis – Revista Sociedade Militar

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