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A politização dos Militares e a falta que fizeram no terremoto da Turquia – Lições para as Forças Armadas brasileiras

No século 21, os países ao redor do mundo têm cada vez mais utilizado suas forças armadas para responder a epidemias e desastres naturais com grande sucesso. Por que, então, na Turquia, vitimada recentemente por um terremoto avassalador, surgiu uma tendência oposta?

Para além do desastre natural inevitável, a politização indevida do Exército turco potencializou os efeitos do evento sísmico. Essa tragédia pode trazer lições importantes para as Forças Armadas brasileiras, que não saíram ilesas do terremoto político que vivemos nos últimos tempos, cujo epicentro foram os quartéis.

Em 1999, um terremoto de magnitude 7,4 atingiu a Turquia, causando cerca de 18.000 mortes. As Forças Armadas Turcas (TSK) se mobilizaram imediatamente e, nas primeiras 48 horas, mobilizaram aproximadamente 65.000 pessoas para liderar os esforços de busca, resgate, evacuação e abrigo. Os soldados foram além de seus deveres militares ativos para operar hospitais de campanha, cidades de tendas e cozinhas móveis para os cidadãos afetados, provando-se cruciais para a recuperação do país após o desastre.

No entanto, em 2023 os militares turcos passaram as 48 horas mais críticas após o desastre, principalmente observando. Nessa janela de tempo, apenas cerca de 7.500 funcionários foram mobilizados – pouco mais de um décimo da resposta ao terremoto de 1999. O presidente Recep Tayyip Erdogan recebeu muitas críticas de todos os segmentos da sociedade turca, particularmente pela participação atrasada e inadequada do TSK nos esforços de recuperação.

Quando Erdogan assumiu o cargo de primeiro-ministro em 2003, as Forças Armadas turcas desfrutavam de enorme poder e prestígio no sistema político da Turquia. Apesar de estar fora do dia-a-dia da política doméstica, a classe militar era considerada a principal liderança em questões de segurança nacional. No entanto, devido à visão de mundo fortemente secular e à sua intolerância quanto ao Islã político, eram vistas como uma ameaça por islamistas como Erdogan.

Objetivando prevenir golpes militares, Erdogan reformou radicalmente o TSK e consolidou gradualmente seu controle sobre a instituição mais poderosa do país, criando uma estrutura civil-militar altamente centralizada e partidária.

O TSK foi reduzido à metade por demissões, prisão de milhares de oficiais e esforços mais amplos para profissionalizar e reduzir o número de militares. A mais significativa entre essas reformas foi a nova lei de recrutamento de 2019, que encurtou a obrigação de serviço militar obrigatório de homens adultos e expandiu as isenções de recrutamento pago. De 2007 a 2013 e, posteriormente, de 2016 a 2018, várias alterações legais e estruturais governamentais enfraqueceram a responsabilidade e a capacidade de resposta dos militares a desastres naturais e outras emergências.

Através de anos de reforma, o TSK tornou-se uma força menor e mais profissionalizada, composta por soldados em tempo integral em vez de conscritos. Embora seja uma força politicamente mais controlável, não é uma força mais eficiente. Essa nova reestruturação  dizimou o capital humano e a profundidade da experiência do TSK, além de criar vulnerabilidades importantes, especialmente aquelas que exigem reações rápidas, tomada de iniciativa e flexibilidade, tão necessárias em desastres naturais.

Em 2009, por exemplo, 15 comandos regionais de preparação para desastres – um dos quais localizado muito perto do epicentro do recente terremoto – foram abolidos após reformas burocráticas. Os exercícios de assistência e desastres naturais, realizados periodicamente em todos os níveis de unidade do TSK desde o início dos anos 2000, também foram encerrados. As capacidades médicas de campo do TSK desapareceram, depois que Erdogan alijou o comando médico e os hospitais militares como parte das reformas.

Apesar da superconcentração de tropas turcas no norte da Síria e na fronteira, nenhuma unidade foi transferida para a zona de desastre vizinha nas primeiras 72 horas após o terremoto deste ano. Suspeita-se que essa falha burocrática possa ter sido influenciada pelo cálculo político de Erdogan. Muitos críticos acreditam que ele está preocupado que tal medida aumente o prestígio público do Exército e mine seu monopólio de controle.

Felizmente para Erdogan, a popularidade do Exército turco caiu nos últimos anos, e a confiança social nos militares caiu de cerca de 90% para cerca de 60% na última década. O TSK não é mais a instituição estatal mais confiável da Turquia, e Erdogan parece contente em mantê-lo assim – mesmo às custas das vítimas mais vulneráveis ​​do terremoto.

Aqui no Brasil, muitos criticam a  participação dos militares em atividades que ultrapassam sua destinação primária, isto é, defesa contra o inimigo externo. São recorrentes as propostas vindas de políticos brasileiros para que o Exército fixe residência definitiva nas fronteiras, preferencialmente de costas para o Brasil. Pretendem ingenuamente que isso livraria a política de novos Bolsonaros. Outros estão em luta contra um moinho de vento chamado “artigo 142”. Igualmente ingênuos, pensam que golpismo pode ser combatido com linhas escritas em papel. Os mais radicais advogam a pura e simples extinção da classe.

 Principalmente depois do envolvimento político com Bolsonaro, as Forças brasileiras, que gozavam de uma reputação sólida – sendo bastante ativas e bem vistas em situações de calamidade nacional – estão agora sendo objeto de desconfiança de grande parte da sociedade e de escrutínio constante da classe política, que questiona sua participação em fatos e eventos que refogem ao seu papel tradicional. Assim como na Turquia, sua popularidade caiu consideravelmente.

 Muitos pretendem jogar fora o bebê junto com a água da bacia. Propostas radicais e simplistas são próprias do calor do momento e soluções extremas invariavelmente criam problemas extremos. Saímos de um período em que a perspectiva de viver num estado militarizado era considerável. Assim como foi errada e perigosa a promiscuidade entre as classes armada e política nos últimos anos no Brasil, igualmente temerário é usar desastradamente a política como instrumento de vingança. As Forças Armadas em qualquer lugar do mundo são instituições estatais, e não governamentais. São edifícios complexos, cujos tijolos são os homens e mulheres de todas as camadas da população.

 Qualquer interferência política nos quartéis deve levar em conta que as Forças Armadas não são feitas só de generais politiqueiros e golpistas, que, em última análise, são blindados pela própria estrutura militar. Ingerências políticas na caserna sem um estudo profundo da realidade militar e da sociedade que a forma pode ser um pulo da frigideira para o fogo. Não sabemos o que o futuro reserva para o Brasil, mas sabemos que ele precisa de Forças Armadas operacionais, bem remuneradas, afastadas da política e obedientes ao poder civil democraticamente eleito.

 O que o presidente turco conseguiu fazer com seu próprio povo, manipulando suas instituições militares, é um aviso mais do que eloquente para os brasileiros de hoje.

Fonte primária / Foreign Policy Magazine /// Edição e notas: JB Reis

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