Depois de quase trinta anos do final do governo comandado por generais, almirantes e brigadeiros, os militares das Forças Armadas voltaram à arena política em 2018. Eleito presidente da república, Jair Bolsonaro – ele mesmo, um capitão reformado do EB – deu sinal verde para que mais de 6.000 militares ocupassem cabeça, tronco e membros da máquina estatal brasileira durante os quatro anos de seu mandato. O pacto entre a política e a caserna foi selado naquele ano por mais de 57 milhões de eleitores, que enxergavam os militares como uma alternativa viável para colocar o Brasil no eixo.
Em 2018, o índice de confiança nas Forças Armadas brasileiras era muito elevado. De acordo com uma pesquisa Datafolha realizada em junho daquele ano, 78% da população declararam confiar nas Forças Armadas. Essa pesquisa posicionou-as como uma das instituições mais confiáveis do Brasil, destacando a alta percepção positiva que os brasileiros tinham em relação ao Exército, à Marinha e à Força Aérea.
As evidências, e o tempo – que se encarrega de provar os amores – foram arrefecendo esse sentimento.
O fim da lua de mel: desilusão e desconfiança na pandemia
Principalmente a partir de 2020, quando a pandemia de corona vírus se instalou no país, e graves escândalos envolveram generais da primeira linha do governo, a lua de mel entre o povo e os militares deu lugar à desilusão e à desconfiança.
A partir desse ano, nas manifestações do Twitter do Exército já começava timidamente a surgir o termo “meio-fio” como sinônimo de ofensa aos militares. Havia pouco mais de dez tuítes com o termo naquele ano.
Ainda que tacitamente, o tom de ofensa foi reconhecido pelo próprio EB, que chegou a autorizar a publicação no EBlog de um texto intitulado “Valores, deveres e ética militar: a ordem em meio ao caos”.
O primeiro parágrafo do artigo, de autoria do tenente coronel Maurício Gröhs é “sim, nós pintamos o meio-fio! E também engraxamos nossos coturnos. Sim, nós cortamos a grama! E também temos nossos cabelos cortados. Nós prezamos pela ordem em desfavor do caos.”
O artigo foi publicado em 2023, indicando que os ataques iniciados na era Bolsonaro vieram para ficar…
A confiança despenca e a rua se inflama: militares no olho do furacão
Em 2021, a confiança nas Forças Armadas brasileiras despencou de quase 80% para 37%. Essa era a porcentagem entre os entrevistados que afirmaram confiar nelas.
Esses dados foram coletados em mais uma pesquisa do Datafolha realizada em setembro de 2021. A pesquisa refletia uma percepção pública que, conquanto positiva, mostrava sinais de desgaste em comparação com anos anteriores.
As manifestações em frente aos quarteis em 2022 foram os tijolos que edificaram a antessala do inferno astral dos militares.
Durante os últimos 8 meses daquele ano, milhares de eleitores de Bolsonaro, antes esperançosos e depois da derrota nas urnas, decepcionados e irados, pediam insistentemente, como um mantra, a “ultima ratio”, pediam o braço forte e a autoridade. Pura e simplesmente, à luz do dia, pediam intervenção militar.
De novo, os militares estavam na ribalta. E desta vez não havia interlocução política – Bolsonaro não fora reeleito. Estavam cara a cara com a massa…
As maiores vítimas do terremoto institucional
O 8 de janeiro se tornou história como uma tentativa de golpe de Estado. As investigações, ainda em curso, revelaram a existência de um núcleo golpista nas camadas mais altas das Forças Armadas.
A prisão de oficiais de alta patente, generais e coronéis, acusados de conspiração contra a ordem constitucional e de financiamento dos atos antidemocráticos, é um terremoto institucional, cujo impacto ainda não pode ser avaliado.
Porém, alguns efeitos dessa hecatombe já podem ser vislumbrados. Suas maiores vítimas, dada a própria coluna de sustentação das Forças, são forçosamente os princípios básicos da hierarquia e da disciplina, e a fragilização dos valores éticos no meio militar.
Legado de desconfiança: a crise que ameaça a Defesa Nacional
Se quando os militares se comportavam discretamente nos corredores do Poder político, já era trabalho de Hércules convencer a sociedade da importância de sua missão constitucional, num “país sem guerras há 150 anos”; se quando não havia antipatia declarada de todo o espectro político – de direita à esquerda – já era penoso seduzir os caciques partidários para angariar investimentos e adquirir equipamentos modernos; como será nos anos que virão..?
A recente reputação angariada pelos militares nos últimos anos não é apenas uma crise de imagem facilmente reversível por campanhas publicitárias bem feitas.
Aliada às recentes reformas previdenciárias, que tornaram ainda menos atrativa a carreira, a médio e longo prazos, essa má reputação pode afetar por via oblíqua a capacidade das Forças Armadas de cumprir seu papel constitucional de defender a soberania nacional.
A desconfiança da sociedade naturalmente refletida na baixa credibilidade/atratividade da carreira podem causar um sucateamento de recursos humanos como nunca antes na história militar brasileira.
A rachadura no moral da tropa, desmotivada pelos escândalos públicos e pelas consequências da politização, podem comprometer de maneira sub-reptícia a eficiência e a operacionalidade dos homens e mulheres que são as Forças Armadas. Se esse quadro não for revertido a médio prazo, o que se seguirá pode ser uma desagregação do poder dissuasório do país, expondo-o a riscos de segurança e à influência de atores externos.