Em meio às tensões da Guerra Fria, quando potências globais disputavam supremacia militar e tecnológica, o Brasil tentou traçar um caminho ousado: dominar o ciclo completo da energia nuclear.
O sonho, no entanto, não se concretizou como planejado.
Entre diplomacias desastrosas, escolhas precipitadas e interesses internacionais, o ambicioso programa nuclear brasileiro ficou marcado por frustrações, interferências externas e falhas domésticas.
Em 1977, uma visita diplomática ao Brasil revelou mais do que o esperado: mostrou, com todas as letras, que os Estados Unidos estavam dispostos a impedir que o país alcançasse autonomia nuclear.
A visita de Cyrus Vance e a pasta esquecida
No dia 22 de novembro de 1977, o então secretário de Estado americano, Cyrus Vance, desembarcou em Brasília com uma agenda delicada.
Seu objetivo oficial era melhorar as relações bilaterais, estremecidas pelas críticas dos Estados Unidos às violações de direitos humanos praticadas por ditaduras latino-americanas, incluindo a brasileira.
Mas havia outra meta, menos diplomática: fazer com que o Brasil cedesse e reduzisse seu programa nuclear, então em expansão por meio do polêmico acordo com a Alemanha Ocidental.
Esse acordo, apelidado de “acordo do século”, previa a transferência de tecnologia para construção de reatores nucleares no Brasil, e causava profunda preocupação em Washington.
Ao fim do encontro com o presidente Ernesto Geisel, Vance cometeu uma gafe diplomática inesquecível: esqueceu uma pasta com documentos confidenciais em seu gabinete.
Dentro dela, estavam os planos detalhados de pressão dos EUA contra o Brasil.
Antes de devolver a pasta, autoridades brasileiras fizeram cópias dos papéis, que revelavam, entre outras estratégias, o uso da rivalidade com a Argentina e pressões sobre aliados europeus para barrar o avanço tecnológico brasileiro.
Uma pesquisa revela os bastidores do fracasso
Mais de quatro décadas depois, os cientistas políticos Dawisson Belém Lopes, da UFMG, e João Paulo Nicolini Gabriel, doutor em Ciência Política, publicaram um estudo revelador.
O artigo, intitulado “Who’s to blame for the Brazilian nuclear program never coming of age?“, foi lançado pela revista científica Science and Public Policy, da Universidade de Oxford.
No estudo, os autores apontam que, embora a pressão internacional tenha tido papel relevante, os principais erros foram cometidos dentro do próprio Brasil, fruto de escolhas políticas, autoritarismo e falta de visão estratégica.
Os quatro erros fatais da “nucleocracia” brasileira
Os pesquisadores identificam quatro principais motivos domésticos para o fracasso do programa:
- Isolamento da “nucleocracia”: termo criado para definir o grupo de burocratas militares que liderava o programa nuclear. Eles atuavam de forma isolada da comunidade científica, empresarial e de inovação do país.
- Opressão contra cientistas: a repressão do regime militar atingiu também o meio acadêmico. Cientistas foram perseguidos por razões políticas, o que minou a colaboração entre universidades e o Estado.
- Salto de fases tecnológicas: em vez de desenvolver tecnologia própria gradualmente, o Brasil buscou importar conhecimento pronto da Alemanha, sem preparar adequadamente sua infraestrutura nacional.
- Falta de realismo: houve subestimação das dificuldades envolvidas na transferência de tecnologia estrangeira, especialmente devido a restrições internacionais à Alemanha pós-Segunda Guerra.
O acordo nuclear com a Alemanha e o veto silencioso
O governo Geisel firmou um dos maiores contratos de transferência tecnológica da história brasileira com empresas alemãs.
Porém, a principal fornecedora, a KWU (Kraftwerk Union), era uma joint venture entre empresas da Alemanha, Holanda e Reino Unido.
Sob pressão dos Estados Unidos, os parceiros europeus vetaram a transferência completa da tecnologia nuclear.
Isso causou um impasse no acordo e prejudicou profundamente os planos brasileiros de independência na área.
Segundo Gabriel, “Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha não podia desenvolver um programa nuclear com capital exclusivamente nacional. Isso sempre esteve atrelado a regulações internacionais.”
O impacto disso nos dias atuais: o Brasil sem bomba e sem dissuasão nuclear
Hoje, em 2025, a ausência de um programa nuclear robusto coloca o Brasil em uma posição estratégica fragilizada diante das potências globais e regionais.
Enquanto países como Índia, Coreia do Sul e até mesmo o Irã avançaram em projetos nucleares, ainda que sob forte vigilância internacional, o Brasil segue limitado, sem capacidade de dominar o ciclo completo do combustível nuclear em escala industrial.
Essa lacuna compromete não apenas a autonomia energética e científica do país, mas também sua influência geopolítica no cenário internacional, especialmente em tempos de tensões crescentes como a nova Guerra Fria tecnológica entre China e Estados Unidos.
Além disso, a ausência de um domínio nuclear coloca o Brasil à margem de fóruns de poder e de dissuasão estratégica, dificultando sua atuação em temas sensíveis como segurança regional, defesa e até negociações multilaterais.
Para alguns analistas, o Brasil desperdiçou a chance de se tornar uma potência tecnológica soberana, ficando preso à dependência externa justamente em uma área que poderia garantir projeção global e segurança nacional.