Quão forte é afinal a China? Desmistificando a Ameaça

 

Desmistificando a Ameaça: quão forte é afinal a China?

RESUMO

   O presente artigo procura desmistificar a tese da ameaça chinesa na ordem mundial, particularmente no que respeita à hegemonia dos Estados Unidos neste novo século, traçando, em simultâneo, algumas pistas de reflexão sobre o lugar da China na conjuntura internacional.

   Gigante frágil, enquanto a China não exorcizar primeiro os seus ‘demónios internos’, freios ao desenvolvimento, o país dificilmente poderá ser entendido como uma ameaça, ou, mesmo, como a próxima superpotência.

ABSTRACT 

This article seeks to demystify the ‘China threat’ theory in the world order, particularly with regard to the U.S. hegemony in this new century, tracing, at the same time, some clues about China’s place in the international system.

‘Weak’ giant, as long as China does not exorcise its own ‘demons’, brakes on its development, the country can hardly be seen as a threat, or the next superpower.

O poder: conceito em mutação?

O poder é extremamente difícil de medir. Simultaneamente curioso e ilustrativo, é o pensamento de Joseph Nye a propósito deste conceito: “O poder é como o amor, é mais fácil senti-lo do que o definir ou medir (…); é a capacidade de levar os objetivos a bom termo” (Nye, 1992: 23). Por sua vez, Adriano Moreira confirma, efetivamente, que “o poder não é uma coisa mensurável em termos quantitativos”, acrescentando, por sua vez, que ele “é sempre uma relação: a capacidade de realizar objetivos é sempre função das capacidades opostas” (Santos, 2007: 248).

Atualmente, o poder encontra-se em mudança. Se outrora, ele se impunha pela simples força das armas, exigindo e alcançando, de facto, o respeito do inimigo, hoje, este último tornou-se, mais do que nunca, contestatário face ao poder.

            No passado, o poder era fator de equilíbrio no sentido em que se revelava “funcional na cena internacional”, regia as alianças, organizava as proteções” (Badie, 2004: 277). Hoje, com o fim da bipolaridade, os novos atores reivindicam um lugar na arena política internacional. Eles procuram, de ora em diante, impor os seus próprios pontos de vista, em vez de seresignarem ao status quo.

            Num mundo cada vez mais ‘globalizado’, os atores experimentam uma sensação de indignação e insatisfação face à hegemonia dos Estados Unidos. Eis então que surgem o caos e a desordem que o poder de outrora não mais consegue controlar nem reprimir. Isso explica, segundo Joseph Nye (1990: 175), que os Estados Unidos tenham “mais dificuldade em atingir os seus objetivos no século XXI” Mas não somente estes últimos pois, na realidade, todo o estado que disponha de um grande poder encontrará obstáculos à sua hegemonia. Ainda de acordo com este autor, o poder encontra-se disseminado, fundamentalmente por causa de cinco fatores. A saber, “a interdependência económica, os atores transnacionais, o nacionalismo em construção nos estados fracos, as transferências de tecnologia e os novos problemas políticos” (Nye, 1992: 166). Por outro lado, o facto dos atores serem simultaneamente individuais e múltiplos, quase anónimos e invisíveis, torna ainda mais difícil conter os seus movimentos, obrigando também a uma negociação e a um consenso frequentemente complexos e morosos.  

Richard Haass comunga igualmente deste ponto de vista, falando dos perigos causados pela existência de um mundo ‘não polar’. Da mesma forma, Haass (2008) acredita que a ‘não polaridade’ será causa de uma série de ameaças que têm por origem os terroristas, os estados-pária, entre outros. Se o autor afirma que a emergência dessa ‘não polaridade’ é inevitável, defende, contudo, a ideia de que os atores podem tentar contrariar os seus efeitos negativos, para que a ordem global seja o menos instável possível.

            O poder de outrora está, pois, sob ameaça. Tem tendência a diluir-se ao mesmo tempo que a arena política se fragmenta. Por outro lado, não se sabe ao certo como é que a nova ordem pós-bipolar se vai estruturar. Na verdade, “conhece-se sobretudo o que se perde, não tanto o que se ganha” (Badie, 2004: 280).E isto porque, na opinião de Bertrand Badie (2005: 12), antes “conhecia-se as regras, admitia-se essas mesmas regras, sabia-se em que mundo se vivia”.

            De qualquer forma, e apesar da tranformação do poder, um outro autor, Brzezinski, acredita que os Estados Unidos (o hegemon) dispõem de um enorme poderneste novo século. Brzezinski (1997: 7) afirma que tal atributo se manifesta nas “capacidades de intervenção militar à escala planetária”, no “carácter nevrálgico da sua vitalidade económica para a saúde da economia mundial”; ao nível do “dinamismo tecnológico (…)” e da “difusão além-fronteiras de todas as facetas da sua cultura de massa (…)”.

            À semelhança de Bertand Badie, Brzezinski fala, também ele, da existência de ameaças ao poder dos Estados Unidos, de contestação à hegemonia americana por parte de atores rivais. Em suma, ohegemon vê a sua segurança ameaçada. Se se pretendesse recorrer a uma analogia entre alguns dos antigos impérios e os Estados Unidos da atualidade, constatar-se-ia que a América é mais vulnerável aos desafios securitários do que, por exemplo, a Inglaterra no século XIX. Por outro lado, a questão crucial não é saber se a hegemonia de Washington vai desaparecer num futuro relativamente distante, porque a História é feita de mudanças. Ao contrário, o debate deve concentrar-se antes num ponto importante, ou seja, em saber quem vai ocupar o lugar dos Estados Unidos.

            A problemática da instabilidade do poder na esfera política é também cara a James Rosenau. De acordo com este autor, a hegemonia encontra-se em declínio, as fronteiras estão a esbater-se e a autoridade, isto é, o poder dominante, é cada vez mais contestado. Conclui-se portanto que o mundo está em mutação (como aliás sempre esteve), mas tal mudança é marcada por um carácter de imprevisibilidade em relação a tudo o que diz respeito ao poder.

            Ao mesmo tempo que a governação mundial vacila, os sistemas sociais deterioram-se, os conflitos entre grupos aumentam e a ordem internacional é posta em questão. Dito isto, não surpreende que a governação possa ocorrer na ausência de governo, enquanto os modelos de poder se encontram em reestruturação.

            Os ventos turbulentos que fustigama antiga conjuntura internacional, e o rumo a uma nova ordem faz-se acompanhado de diversos fenómenos, tais como, o terrorismo, a poluição do ambiente, a globalização da economia, o tráfico de droga, a diminuição das distâncias (graças ao efeito das novas tecnologias), entre outros fatores. Todas essas mudanças não significam, porém, que os governos se tornarão totalmente inativos, mas que muitas das suas competências podem, de ora em diante,seratribuídas a outras entidades.

A ordem e a governação estão intimamente ligadas na medida em que a última condiciona e modela a  natureza da ordem do sistema político. Uma existe apenas porque a outra está presente, e vice-versa. Por outro lado, como já explicado, é possível que haja governação sem governo (Rosenau, 1992). Mas, então, é legítimo pensar-se, a esse respeito, que a ausência de uma autoridade central – capaz de impor a força se necessário – conduzirá possivelmente à anarquia. Desse ponto de vista, não estaremos provavelmente muito longe do caos se os Estados Unidos (que possuem as maiores forças armadas do planeta) renunciarem ao papel de ‘polícias do mundo’. A questão é, então, saber o que poderá acontecer se o hegemonquiser permanecer à margem dos ‘grandes acontecimentos’ mundiais (como, aliás, já se verificou no passado) ou se ele já não é suficientemente capaz de se ocupar de tudo e de todos, ao mesmo tempo.

            Em jeito de conclusão, se o fim da Guerra Fria tornou possível o nascimento de um sistema unipolar, onde os Estados Unidos eram a única superpotência, hoje a conjuntura mudou. Se é indiscutível que os Estados Unidos “representam a primeira potência mundial em numerosos domínios, não se pode ignorar a influência que exercem polos como a China, o Japão ou a União Europeia” (Homerin, 2003: 5). Aliás, como sublinha Paul Kennedy, “não é inconcebível que o mundo, em 2020, se organize em torno de três grandes polos de influência económica e tecnológica, bem como de três moedas rivais: o dólar, o euro e o yuan” (Homerin, 2003: 5).

Aquestão ‘Uni-Multipolar’

De acordo com Samuel Huntington (1999: 35), um sistema internacional unipolar pressupõe “a existência de uma única superpotência, algumas grandes potências e bastantes potências de menor peso”. Seja como for, é possível deduzirmos que a “única superpotência aos olhos de Huntington só pode ser os Estados Unidos” (Homerin, 2003: 12). Isto não significa, no entanto, que o autor defenda que o sistema atual é unipolar. Porquê? Porque, mesmo se a noção de unipolaridade se apoia na existência de uma única superpotência e de numerosaspotências menores, “é um facto que o sistema internacional atual é constituído por potências que não podem, de modo algum, ser classificadas de menores” (Homerin, 2003: 28).

Em segundo lugar, para que um sistema possa ser qualificado de unipolar, é fundamental que a superpotência possa resolver sozinha, e de modo eficaz, os grandes problemas internacionais. Ora, sabe-se que apesar do peso dos Estados Unidos no xadrez internacional, estes estão conscientes, porém, que não podem permitir-se tudo sem o apoio de outros países. Efetivamente, mesmo enquanto superpotência, devem cooperar, sobretudo quando se trata de questões complexas (Homerin, 2003: 28).

Finalmente, se nos recordarmos da citação do grande diplomata americano George Kennan, compreendemos que o postulado de um mundo atual unipolar deve ser posto em questão, ou mesmo rejeitado. Com efeito, Kennan preconizava que “este planeta jamais será governado a partir de um único centro político, qualquer que seja a sua capacidade militar” (Homerin, 2003: 29).

A ideia de unipolaridade cede o lugar à noção de ‘uni-multipolaridade’, avançada por Samuel Huntington. Por sistema multipolar, o autor entende um sistema que “possui diversas grandes potências de forças comparáveis que cooperam e rivalizam entre elas” e, no qual, “é necessário existir uma coligação de estados importantes para solucionar os grandes problemas internacionais” (Huntington, 1999: 36).  

Se Huntington afirma que o modelo unipolar não se aplica, em bom rigor, ao sistema internacional atual, o autor está convencido, contudo, que este último não pode continuar a ser explicado pelo modelo multipolar (Homerin, 2003: 29). Por conseguinte, o modelo ‘uni-multipolar’ revela-se um conceito híbrido, resultante da fusão de características multipolares e unipolares (Zaidi, 2003). Além disso, ele supõe a existência de uma superpotência e de várias grandes potências (visto que polos como a China, o Japão ou a União Europeia estão muito longe de ser considerados potências menores) que cooperam nas grandes questões internacionais (Homerin, 2003: 29).

               De acordo com um outro autor, Pierre Hassner (2003: 63), o mundo atual é “unipolar do ponto de vista militar” e, ao mesmo tempo, “multipolar do ponto de vista económico e, sobretudo, cultural”. Estas duas características, apesar das suas diferenças, “podem perfeitamente coexistir”, segundo o autor, tanto mais que nos encontramos “num contexto onde o poder e os atores internacionais são complexos, imprevisíveis” (Homerin, 2003: 29).

A China face à hegemonia dos Estados Unidos  

Pequim na valsa do poder mundial

Perante tal imprevisibilidade, que lugar dever-se-á atribuir à China no xadrez das potências? A título de curiosidade, como diria Hubert Vedrine, “não se trata de dar um lugar às potências emergentes, elas acabam por tomá-lo sozinhas” (Degans, 2008). Ou, como diria ainda um outro autor, Pierre Hassner (2003), se os países emergentes fazem ‘tremer’ a liderança dos principais estados ocidentais, é porque se dão, pouco a pouco, conta que, também eles, têm direito a uma voz na arena internacional.

À medida que a China luta contra os seus próprios ‘demónios’, contra as suas dificuldades internas, isto é, as suas próprias resistências ao progresso, tem tendência a tornar-se um ator de maior peso na cena internacional. É o que pensa por exemplo Robert Sutter (2003-04: 88), para quem “surgirá um momento, antes mesmo de 2020” em que a China terá adquirido um estatuto que permitirá aos seus dirigentes optar por uma política diferente e mais segura face aos assuntos internacionais”. No entanto, o autor afirma que não há certezas quanto ao facto de saber se essa nova atitude vai apoiar ou, ao contrário, opor-se aos Estados Unidos e a outras potências importantes, no futuro contexto internacional (Sutter, 2003-04: 88).

Parceiro ou adversário do Ocidente, a China será, de qualquer forma, obrigada a coabitar com ele. Por um lado, as potências ocidentais não podem ignorar o êxito económico do Império do Meio (que abriga 20% da população mundial), nem tão pouco prescindir da sua preciosa colaboração relativamente à questão do terrorismo e da proliferação nuclear. Por sua vez, a China não pode abstrair-se de parceiros económicos como os Estados Unidos ou a União Europeia.

Estados e Unidos e China: entre ‘paixão’ recíproca e desconfiança mútua

Contrariamente às relações entre chineses e europeus, as relações entre Washington e Pequim revelam-se muito mais complexas, frequentemente tensas e impregnadas de um misto de ‘paixão’ recíproca e de desconfiança mútua. Elas são, aqui, alvo de análise dada a sua importância (uma, porque é a superpotência, a outra, uma potência em ascensão). Por outro lado, “o que torna hoje essa relação mais importante e interessante que nunca, é que ela associa dois países cujo peso face ao resto do mundo não tem cessado de aumentar desde há vinte anos” (Vermander, 2004: 101).  

Vários autores estimam que este novo século será mais ‘chinês’ que ‘americano’. Todavia, se em Washington a ‘obsessão chinesa’ é efetivamente uma realidade, os responsáveis políticos parecem, no entanto, hesitar face aos perigos de uma política de contençãoque, no caso da China, poderia ser nefasta à economia americana” (Courmont, 2007: 1). O que sucede, na prática, é que os Estados Unidos preferem optar, antes, pela via ‘intermédia’, que consiste em “isolar politicamente Pequim, mantendo, simultaneamente, uma parceria ativa no que respeita às questões económicas e comerciais” (Courmont, 2007: 1).

Perante tal contexto, pode-se afirmar que as relações sino-americanas são marcadas por uma ameaça potencial, ourevelam, ao contrário, uma vontade de cooperação? A resposta oscila entre estes dois extremos, mas como veremos, parece ser sobretudo marcada por um clima de suspeição mútua.[1]De facto, nas relações entre Washington e Pequim, existe a possibilidade de uma colaboração frutuosa nos mais variados domínios. Mas, por outro lado, segundo B. Courmont (2007: 1), “os dirigentes americanos consideram a China, se não como inimigo ou ameaça à sua segurança, pelo menos, enquanto risco potencial”.

Na realidade, há desafios-chave, tais como “a competição política e económica na Ásia, a vontade chinesa de estender a sua soberania aos espaços terrestres e marítimos que ela considera seus, e sobretudo a questão de Taiwan” que, em conjunto, “continuam a comportar riscos sérios de tensão, ou mesmo de afrontamento, inclusivamente no plano militar” (Heisbourg et al, 2004: 17).

De acordo com Benoît Charpentier e Christophe Reveillard (2007: 265), “a omnipresença e a desconfiança americana face à China é percebida como um isolamento, uma dominação injusta, e um obstáculo à concretização dos objetivos estratégicos chineses, em particular, o seu abastecimento energético, já que a China se tornou fortemente dependente de energia”.

Se tal ‘isolamento’ está longe de ser irreal, já que Washington tenta fazer de tudo para que a China permaneça uma ‘média potência’, Pequim não quer ser relegada a segundoplano (Medeiros, 2005-2006).Entre outros aspetos, o Império do Meio conta “antes de mais recuperar Taiwan, por razões estratégicas, mas também, fundamentalmente políticas (o princípio de uma ‘única China’) e, enfim, retomar a hegemonia comercial do Pacífico fazendo encerrar as bases americanas e encorajando a diáspora” (Fouchet, 2001).

No fundo, as ambições e estratégias das duas potências “jogam-se nos mesmos terrenos” pois Pequim e Washington “querem simultaneamente assegurar-se da diversificação das suas fontes de matérias-primas, mas também, controlar os gestos do outro”: elas “interessam-se de novo por África, que era tida como ‘esquecida’, e aproximam-se sensivelmente da Índia” (Charpentier and Reveillard, 2007: 266).

Em todos estes esforços, que se concentram na busca de influência e de recursos pela China e pelos Estados Unidos, o nacionalismo que ‘unifica’ os chineses em torno de um futuro ‘glorioso’ não parece ser compatível com o ‘recalcamento’ das ‘injustiças’ percebidas pelo Império do Meio. Dito de outra forma, a China está a tornar-se “muito crítica face à política americana na Ásia ao longo dos últimos anos (desde o início da crise nuclear norte-coreana, outono de 2002, e do discurso sobre ‘o eixo do mal’ de George W. Bush, em janeiro de 2002, que marcou uma nova era nas relações entre os Estados Unidos e os estados ditos pária)” (Courmont, 2007: 3).

Por sua vez, a política americana tornou-se mais firme do que no passado. Mas isto não impede, contudo, que ela comporte uma certa ambivalência. Com efeito, os termos “strategicpartner” e “strategic competitor” parecem sobrepor-se “em função das circunstâncias e das influências políticas e ideológicas que definem a perceção que Washington tem da China” (Courmont, 2007: 3). Seja como for, o misto de “prudência tática e de indeterminação estratégica”, de que é feita a política chinesa do Estados Unidos, não visa, no entanto, o choque perigoso entre os interesses chineses e americanos (Heisbourg et al, 2004: 24). Segundo B. Vermander (2004: 104), “os Estados Unidos querem absolutamente evitar deixar-se envolver numa espiral conflitual com Pequim”, assim como a China que, por sua vez, procura “não meter em perigo uma relação comercial essencial ao crescimento económico, peça-chave da manutenção da estabilidade social”. Efetivamente, um outro autor, Robert Sutter (2003-04: 77), adverte que indo contra os interesses de Washington, a China “poderá colocar em risco a estabilidade (muito importante para a sua modernização e para a da Ásia do Sul), forçaria os países asiáticos a escolher entre os Estados Unidos e a China, e afastaria dela a maioria dos dirigentes asiáticos (que pretendem evitar a instabilidade)”.

Apesar dos desafios que fazem da China e dos Estados Unidos parceiros, parece, na opinião de numerosos analistas, que a rivalidade e a desconfiança superam a cooperação entre os dois países. Certos autores, à semelhança de Gerald Fouchet, veem mesmo a confrontação entre estas duas potências como inevitável, a médio ou longo prazo.[2] Tal constatação funda-se, nomeadamente, na política de modernização vigorosa do armamento chinês. Segundo Charpentier e Reveillard (2007: 266) “Pequim reajusta a sua frota, planeia a aquisição de um porta-aviões, constrói satélites-espiões e revaloriza os salários dos seus homens, como que preparando uma situação militar de envergadura transfronteiriça, com os Estados Unidos (por exemplo), mas também para conquistar uma verdadeira dimensão marítima”.

Dito isto, partindo da ideia que “a disputa China-Estados Unidos é muito mais pesada que a antiga contenda Estados Unidos-URSS, porque é estratégica e não mais ideológica, e também porque se assemelha a um choque de civilizações”, Gérald Fouchet (2001) crê “que um afrontamento global entre Washington e Pequim constitui um dos riscos maiores do século XXI”.Se G. Fouchet (2001) estima que não é possível conhecer o “pretexto do seu despoletar, nem a forma que ele revestirá”, B. Vermander (2003: 459) acredita, a esse respeito, que “cinco grandes questões determinarão o futuro das relações entre uma potência e a outra: Taiwan; a competição económica; os direitos do Homem e a governação política; os valores culturais e o sistema internacional”.

Em conclusão, verificamos que os Estados Unidos se encontram numa posição delicada já que, como sublinha B. Courmont (2007: 3), Washington não pode nem “impor uma parceria durável”, nem aceitar a China “como sendo o inimigo supremo”. Digamos que o estatuto que a China adquirir em função dos acontecimentos, ditará então o seu comportamento: continuar, ou não, a cooperar com os americanos. Elucidativo, a esse respeito, é o comentário deGeorge W. Bush(proferidoquando estava em funções),para quem a China “não é mais um parceiro estratégico, mas um concorrente estratégico”, e que, no fundo, quer se admire ou não a figura do ex-presidente americano, é assaz representativo da perceção do ‘perigo amarelo’ nos Estados Unidos(Courmont, 2007: 3).

A ‘ameaça’ chinesa: falso alarme?

Depois de estudarmos as relações sino-americanas que oscilam, como vimos, entre rivalidade e cooperação, concentremo-nos agora na questão da ameaça ao poder do hegemon. Poderá a China ser considerada uma ameaça ao poder dos Estados Unidos? 

Para António de Sousa Lara, a visão da China enquanto ‘concorrente estratégico’ (acima referida) não é um mito, mas realidade. De facto, de acordo com o autor, Pequim é “um concorrente estratégico na medida em que a capacidade produtiva chinesa já provou serperfeitamente bombástica, até porque a China não tem problemas laborais nem de falta de mão de obra, nem em termos sociais e legislativos” (Lara, 2011). Pelo contrário,contando a China oficialmente com 65 milhões de presos (o que representa um número superior ao dos habitantes da Península Ibérica, não se podendo todavia confiar nos números oficiais chineses pois são quase sempre manipulados), o cenário pode revelar-se preocupante para o hegemon. Como adverte Sousa Lara (2011), “utilizar todo este potencial humano para trabalho escravo, é já uma concorrência complicada e desleal”. Mas o autor vai mais longe, sublinhando que se “até aqui havia um problema de baixa tecnologiae de produtos baratos”, agora os chineses estão “a comprar marcas europeias (à semelhança do que se passou recentemente com a Volvo) e, portanto, vão reciclarnão só o seu Know-how, como também a estéticae tudo o resto” (Lara, 2011).

            Enquanto que para António de Sousa Lara (2011), a China “é uma ameaça” aos Estados Unidos, mais concretamente, “aos produtos norte-americanos”, na opinião de Adriano Moreira, a questão tem de ser analisada através de um outro ângulo. Para este autor, não são os Estados Unidos que devem absorver a nossa atenção. O nosso olhar crítico acerca da conjuntura internacional deve, antes, concentrar-se em algo mais vasto, mas essencial: o Ocidente. E porquê? Porque para Adriano Moreira a redefinição do conceito estratégico da NATO, continua erradamente a imaginar que é o Atlântico norte que está em jogo. Ora, “é o Ocidente que está em causa porque, em primeiro lugar, é ele que está em crise e, depois, porque foi ele que a causou” (Moreira, 2011). Nesse Ocidente está a Europa, mas esta é atualmente um espaço bastantedébil. Como nos diz o autor, “os europeusestão hoje dependentes de matérias-primas e de energias não-renováveis, que eram supridas pela supremacia imperial e que, neste momento, não o são” (Moreira, 2011). Tais recursos são atualmente disponibilizados pelo que A. Moreira denomina ‘o resto do mundo’, que engloba ‘os poderes emergentes’. Aliás, o autor adverte que “os Estados Unidos são um grande país, têm muitos recursos, mas o ‘resto do mundo’ é maior” (Moreira, 2011).

                 À parte a discussão Estados Unidos – Ocidente, como é que devemos interpretar os sinais dados pela Chinano xadrez internacional?Estará ela em condições de ser a próxima superpotência? António de Sousa Lara não duvida: a China já o é. Para o autor, neste momento, Pequim “detém uma parte substantiva da dívida externa americana, é um parceiro incontornável, um colosso demográfico, territorial, financeiro, económico, militar” (Lara, 2011).Contudo, ressalva que, por causa da história do país, não lhe parece que os chineses queiram ter uma projeção transcontinental: “Eles são mais respeitadores de um todo, desde que não se lhes mexanas zonas de influência periférica” (Taiwan é um exemplo do que, na opinião do autor, não pode ser tocado) (Lara, 2011).

                 Ao contrário de A. Sousa Lara, Narana Coissoró não vê na China uma superpotência, nem para já, nem num futuro ‘relativamente próximo’. Não é que a China não queira “estar em pé de igualdade com a América”, como afirma o autor, contudo os Estados Unidos têm “um sistema económico facilmente maleável que a China ainda não possui” (Coissoró, 2011). Na verdade, de acordo com N. Coissoró (2011),“quando se fala de mercado e da liberdade de mercado, há uma democracia económica que ainda não está bem enraizadana China”.

                 Prudente na análise que faz da conjuntura internacional, Adriano Moreira, por sua vez, revela ser difícil, ou mesmo um pouco arriscado (segundo o próprio), afirmar que a China tem condições para ser a próxima superpotência num futuro não muito distante. A razão para tal reside no facto do país “ter separatismos porque a China tem umas cinquenta nacionalidades” (Moreira, 2011).  

Efetivamente, o país tem separatismos, o que direta ou indiretamente, acaba por se refletir na forma como a China se afirma regional e mundialmente. Todavia, este aspeto apontado pelo autor não explica, por si só, que seja ‘arriscado’ dizer que o Império do Meio será a próxima superpotência. Devemos ter em conta, para além deste, outros fatores que nos ajudam a compreender melhor porque é que a tese da ‘ameaça’ chinesa (face aos Estados Unidos ou, se quisermos antes, face ao Ocidente, como prefere A. Moreira) deve ser mitigada. Na verdade, apesar de ser evidente que a China tem crescido economicamente a um ritmo impressionante ao longo dos anos, é, também, indiscutívelque um tal vigor económico tem sido acompanhado de imensosproblemas internos. Como veremos de seguida, esses obstáculos são pedras em que a próprio país tropeça. Sem antes procurar limpar o seu caminho, isto é, sem primeiro ‘arrumar a casa’, a China dificilmente constituirá uma ‘ameaça’ ao Ocidente e/ou aos Estados Unidos, a não ser, paradoxalmente, a ela própria.  

 Um ‘gigante’ vulnerável

       A par de uma China que se apresenta ao mundo como paradigma alternativo ao “Consenso de Washington”, existe, em contrapartida, uma outra China a quem o planeta critica o Estado autoritário que oprime os seus cidadãos, prende os dissidentes políticos e exerce a censura. Esta é, por outro lado, a China do crescimento económico espetacular (ao ritmo de 10% desde há 25 anos) que se funda contudo, de acordo com Jean-Luc Domenach, “num desastre ambiental sem precedente: desertificação dos solos, inundações, poluição, falta de água, chuvas ácidas, doenças pulmonares…” (Jaffrelot, 2008: 83).Estes e outros fatores, que passamos a apresentar de seguida, dão-nos a conhecer a outra face de uma China que é vista frequentemente como‘gigante’, contudo um gigante vulnerável.

O desmazelo ambiental

A questão ambiental é, pois, uma das que mais preocupaos dirigentes chineses. Dado que os combustíveis fósseisfornecem 94% da energia consumida na China (70% carvão e 24% petróleo), apesar do grande potencial hidroelétrico de que o país dispõe, não surpreende que Pequim se mostre apreensivo (Meidan, 2008). As estimativas dão conta de 300 000 a 400 000 pessoas que perdem a vida, cada ano, por causa dos efeitos da poluição. Por outro lado, é de notar que, entre as dez cidades mais poluídas do mundo, sete localizam-se na China (Perry and Selden, 2003).A todos estes factos, é preciso acrescentar as numerosas (cerca de 50 000, segundo fontes oficiais) manifestações e conflitos que ocorreram em 2005 devido aos problemas ambientais, o que não deixa de ter impacto na estabilidade social (Jaffrelot, 2008). Os problemas ambientais pesam,também, fortemente no setor agrícola. As terras e os rios pagam hoje a fatura de uma herança complicada, que remonta à tradição confucionistade dominação da natureza. Mao tinha sido um adepto feroz dessa tradição, zelandopelo nascimento de uma China industrializada. Mas, essa industrialização pesada e extremamente poluente,conduziu “à desflorestaçãomassiva, à diminuição das terras aráveis e ao esgotamento dos recursos aquáticos” (Meidan, 2008: 82).Um outro aspeto que não joga nada a favor da agricultura é o nível de poluição dos rios. A esse respeito, é preciso sublinhar que 70% da água dos rios mais importantes da China é imprópria para consumo (Perry and Selden: 2003). Não são as leis para combater a poluição que faltam no país, no entanto, elas não são aplicadas convenientemente. Se a classe dirigente revela um empenho ainda tímidoface à ecologia, é, sobretudo, porque “a importância queo desenvolvimento económico tem para a China, não pode sofrer, aos olhos do poder, da proteção do ambiente” (Meidan, 2008: 81).

                Para além da questão ambiental, uma outra fustiga particularmente o país, contribuindo, tambémela, para mitigar a tese da ‘ameaça’ chinesa, ou se preferirmos, para enfraquecer a visão da China como a próxima superpotência. A questão das desigualdades entre regiões é inquietante.

                       

As várias ‘Chinas’

Jean-François Dufour prefere falar essencialmente de um país “dividido em ‘várias Chinas’, caracterizando-se por problemáticas diferentes em termos de geografia humana” (Dufour, 1999: 57).Deste modo, o autor contrapõe a uma “China costeira dinâmica, motor do crescimento dos últimos vinte anos”, uma outra China “interior, deixada para trás, que sofre de um cúmulo de males socio-económicos consideráveis” (Dufour, 1999: 57). Face a essas ‘duas Chinas’, é preciso considerar ainda uma “terceira China, ‘exterior’ e colonizada, onde o princípio da unidade nacional não foi concretizado, e cujas aspirações independentistas chocam com as inquietações geopolíticas de Pequim” (Dufour, 1999: 57).Ao mesmo tempo que “a China oriental continua a explorar as riquezas naturais da China ocidental”, há “500 milhões de camponeses que estão dispostos a trabalhar 16 horas por dia, apenas para subsistir e economizar um pouco”.[3]Ainda que as autoridades chinesas tentem promover reformas para combater as diferenças entre regiões, constatamos que a grande maioria dos investimentos estrangeiros continua a ser dirigida para a zona leste do país (entre 85% e 90%) (Jaffrelot, 2008). De acordo com certos observadores[4], a relação entre as regiões do oriente e as do ocidente da China “é a mesma que entre países desenvolvidos e países do terceiro mundo”.[5] E, por outro lado, “é a coesão de todo o país que está ameaçada, tanto mais que às disparidades económicas e sociais se somam as disparidades étnicas e culturais”.[6]

                 A tudo isto se junta, como lembra B. Vermander (2004: 10), “as instabilidades, as tensões e perigos crescentes, cujo mais significativo está ligado à estabilidade social: falhas do sistema de saúde; a diferença (cada vez maior) de rendimentosentre zonas urbanas e rurais; as desigualdades enormes no que toca ao ensino; as manifestações ligadas à corrupção, aos acidentes nas minas e nas indústrias, (…)”.  

 O Partido Comunista chinês: ‘obstáculo’ ao desenvolvimento

Não é por acaso que se optou por abordar aquestão do Partido Comunista chinês nesta parte do artigo, relativa aos obstáculos internos ao progresso do país, os quais contribuem, por conseguinte, para enfraquecer a visão de uma China ‘ameaçadora’ no plano internacional.

A constatação deBenoît Vermander parece ser, ao mesmo tempo, pertinente e esclarecedora, a esse respeito. De acordo com o autor, se ele “foi um partido de mobilização, outros fatores contribuem, de ora em diante, para fazer dele (aos olhos dos próprios chineses) um obstáculo, mais do que uma ajuda, ao desenvolvimento contínuo do seu país”(Vermander, 2004: 20).

Se recuarmos um pouco na história do Partido Comunista chinês e naquela da China recente, constataremos que os dois estão de tal modo ligados que, por vezes, se confundem numa única e mesma história. Verificamos aí uma prova da força do Partido: o facto de ter traçado um caminho para milhões e milhões de chineses que, por sua vez, reconhecem a sua legitimidade e se deixam conduzir pelo que este acreditava ser a melhor escolha para a China. O Partido era, por outro lado, credível porque incarnava a figura de um libertador, tendo ganho a guerra civil contra um partido corrompido (o Guomindang) e, assim, oferecido à China a estrada da independência e do progresso.

Contudo, se outrora ele mobilizava os chineses em torno de um projeto político-económico comum e ambicioso, hoje o Partido parece não mais corresponder à sua missão histórica. Essa é, pelo menos, a convicção de B. Vermander. Com efeito, o autor considera que “uma vez asseguradas as bases do desenvolvimento económico, o papel da iniciativa individual, a necessária pluralização da sociedade civil e a necessidade de uma circulação rápida e fiável dos fluxos de informação, fazem do Partido Comunista um travão mais do que uma locomotiva para o acesso às etapas seguintes do desenvolvimento nacional, que se tornam mais qualitativas que propriamente quantitativas” (Vermander, 2004: 20).

Tendo perdido largamente a sua função mobilizadora, o Partido limita-se a assumirhojeum papel essencialmente de regulação e de distribuição, sendo que, além disso, a sua natureza se tornou mais estatal do que propriamente ‘partidária’. Um outro fator prejudicial à credibilidade do Partido diz respeito à mudança sociológica, que emergiu no seu interior. De facto, se outrora o Partido se apresentava como a vanguarda dos camponeses e do proletariado, atualmente converteu-se num conjunto heterogéneo e estranhamente ambíguo para, de ora em diante, poder incorporar também as classes dominantes, frequentemente vistas como grupos parasitários e escandalosamente corrompidos.

 No sentido de contornar as dificuldades que minam o futuro do Partido, algumas estratégias foram postas em prática.Elas visam, sobretudo, ultrapassar as razões de descontentamento interno, através de um trabalho ‘ideológico’, catequizando o espírito. Dito de outro modo, é preciso concentrar os fatores de divergência, não em torno do Partido, mas em ideais ‘nobres’, tais como a corrida ao espaço, Taiwan e os Jogos Olímpicos. Nesse sentido, os últimos anos fizeram prova de um nacionalismo e de um patriotismo exacerbados (Laliberté e Lanteigne, 2008).

Em conclusão, se “a suspeita que o Partido teria acabado de preencher a sua missão histórica, se o travão que ele representa à modernização do governo, se as contradições internas e a corrupção ameaçam o Partido Comunista chinês”, este recorre ao “suplemento da alma”, para provar que “fornece a dinâmica capaz de fazer brilhar a chama da cultura e da tradição chinesas mais claro e mais alto” (Vermander, 2005: 466).Por outro lado, como sublinha Andrew Nathan (2009), “apesar de todos os desafios que ameaçam o regime, aprendemos mais sobre a manutenção de um sistema autoritário adotando um ponto de vista que vai ‘de cima para baixo’ do que ‘de baixo para cima’: tais regimes não se fazem derrubar, caem”. Seja como for, segundo este autor, para que o Partido se mantenha no poder, “deverá recrutar novos tecnocratas, elevaro nível de educação da população, aperfeiçoar o sistema jurídico, melhorar o sistema de assistência social, e ter uma ação mais eficaz no que toca à saúde pública e ao ambiente” (Nathan, 2009).

Medindo os vários componentes da ameaça

                       Todos estes aspetos nos levam a concluir, à semelhança de François Houtart (2011), que a China não pode ser considerada um ator ‘ameaçador’ neste novo século, em todo o caso, na situação atual. O autor justifica a sua posição, baseando-se essencialmente no argumento da destruição ecológica (a que já aludimos), gerada pelo crescimento chinês e, em segundo lugar, na questão das desigualdades sociais, “ampliadas por este modelo de crescimento” (Houtart, 2011). Partilhando o mesmo ponto de vista, um outro autor, Paul Servais (2011), não hesita em concluir, a esse respeito, que “o crescimento económico chinês pode representar um problema mais para a própria China do que para a economia mundial”.No entanto, de acordo com P. Servais, isso não impede que o país, na sua busca de matérias-primas e de recursos energéticos, sobretudo em África, seja responsável por consequências negativas ao nível ambiental, que podem ser dramáticas. A este aspeto, importa evidentemente acrescentar o impacto nefasto que as práticas chinesas – em matéria de (in)segurança no trabalho ou ao nível da concorrência comercial – provocam em certos países africanos.

                  No plano económico, o autor explica que “não é de todo evidente, por outro lado, que a China seja uma ameaça às economias ocidentais, primeiro porque se a sua performanceglobal é verdadeiramente notável, ela permanece contudo extremamente limitada” (Servais, 2011).Por outro lado,o facto da industrialização e da urbanização terem sido muito rápidas na China causou certos desequilíbrios que devem ser corrigidos pelas autoridades chinesas, para que a performance da economia não seja afetada a longo prazo.

 Na realidade, a par desse crescimento espetacular, é preciso reconhecer que a população chinesa permanece ainda ‘relativamente’ pobre. A título de exemplo, “em 2002, 47% dos camponeses(sobre)vivia com menos de dois dólares americanos por dia”, e “o nível de vida dos chineses continua a ser nitidamente inferior ao dos habitantes dos países industrializados”.[7]Tenhamos igualmente em conta que “poucos chineses têm uma formação superior, o desemprego e o subemprego permanecem elevados, as empresas estatais manifestam atrasos ao nível da competitividade, a insuficiência de infraestruturas gera pontos de estrangulamento na produção e na extração de recursos”.[8]A juntar ainda a este quadro difícil, “o sistema financeiro é negativamente afetado pela existência de maus créditos e de empréstimos improdutivos” e “os fundos públicos não bastam para financiar o sistema de proteção social e a reestruturação das empresas estatais”.[9]

Em termos militares, Paul Servais (2011) defende que “no plano mundial, a China não é, provavelmente, uma ameaça”. O autor explica, com efeito, que “o seu orçamento militar é incomparavelmente menos elevado que o orçamento militaramericano”, que “as suas forças armadas, ainda que impressionantes quanto ao número de efetivos, são, no geral, extremamente sub-equipadas” e que a “teoria que fundamenta a ação chinesa no plano internacional é uma teoria da não intervenção nos assuntos internos dos parceiros” (Servais, 2011).Masse a ‘ameaça’ não vem das forças armadas chinesas (de acordo com P. Servais), isto não impede que, segundo F. Houtart (2011), “a China preveja que, a médio ou longo prazo, haja um conflito com os Estados Unidos”.

François Houtart (2011) explica, a esse respeito, que “a China está perfeitamente consciente que um império que se encontra em declínio económico e que permanece extremamente potente ao nível militar, é uma fonte de conflito potencial para o futuro”.Daí,segundo o autor, “a aproximação que se estabeleceu entre a China, a Rússia e a Índia, para tentar neutralizar a influência americana” que, por sua vez, “se esforça por desmantelar um conjunto de países potencialmente inimigos (sobretudo a Rússia e a China), ajudando, por exemplo, as forças ‘centrípetas’ no interior do Tibete ou do Xinjiang, que podem colocar problemas à China” (Houtart, 2011).Para F. Houtart (2011), “a iniciativa de conflito não virá da China, pois esta tem toda a vantagem, ao contrário, em conservar uma situação de paz militar para poder estabelecer as bases do seu futuro, primeiro a nível interno, e também para assegurar as fontes de energia, no exterior”.

No que respeita à esfera regional, F. Houtart (2011)também não crê que a China constitua (pelo menos, de momento[10]) “um perigo de invasão ou de intervenção direta, de tipo imperial”. Seja como for, Paul Servais (2011) afirma que não é estranho “que a China procure controlar a zona que lhe é mais próxima, isto é, a região do Mar da China”. No fim de contas, segundo o autor, “ela age dessa maneira como qualquer outra grande potência” (Servais, 2011).

Breves conclusões

O presente artigo procurou demonstrar que a China não deve ser considerada, na conjuntura internacional atual (mais precisamente, para o hegemon),um ator ‘ameaçador’.

                 A ‘ameaça chinesa’ é, de momento, reduzida, pelas razões já expostas. Isto não quer dizer, contudo, que os chineses não lutem para reencontrar o caminho da ‘tentação imperial’, para voltarem a ser a ‘grande nação’ que eram no passado. Essa amálgama de ‘destino manifesto’, de ‘missão histórica’, de nacionalismo, de prestígio e de nostalgia de um passado glorioso poderá, talvez um dia, fazer da China uma superpotência. De facto, as fraquezas de hoje serão, talvez, as forças de amanhã e é dificilmente concebível que um estado tão grande, territorial e demograficamente, não desempenhe um papel mais importante no futuro. Nesse momento, ainda longínquo e incerto, não é de excluir que a China se torne um dia um ator ‘ameaçador’. Mas essa possibilidade não deve ser interpretada como sendo um fenómeno anormal. Ao contrário, ela inscreve-se numa dinâmica natural do ‘nascimento e declínio das grandes potências’. Superpotência em gestação, ela observa calmamente e esconde as suas capacidades para se manifestar enfim, para acordar do seu ‘grande sono’ e cumprir finalmente o papel grandioso de que essa China orgulhosa, nacionalista e nostálgica de um passado glorioso, tem sede.

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[1]Segundo B. Courmont (2007: 1-2), esta suspeição manifesta-se, por exemplo “depois do episódio do avião-espião americano na ilha de Hainan, ou ainda, pelo relatório Cox e o bombardeamento da embaixada da China a Belgrado durante a guerra do Kosovo e, de maneira quase constante, desde a chegada ao poder de George W. Bush”.

[2]A título ilustrativo, “Em março de 2002, o Pentágono publica o documento ‘Nuclear Posture Review’, no qual é dito que a China constitui um potencial alvo de ataque nuclear”. (Holtzinger, 2008)

[3]“La Chine: tendances récentes et perspectives – Troisième partie: Etudes Economiques”, [www.desjardins.com/fr/entreprises/projets/commerce-international/chroniques/cci050813.pdf]. Disponibilidade:13/05/2011.

[4] Entre outros autores, François Gipouloux (2005) contribui para um bom conhecimento acerca das desigualdades existentes na China, entre regiões e também entre indivíduos.

[5]“La Chine: tendances récentes et perspectives – Troisième partie: Etudes Economiques”, Op. Cit..

[6] Ibidem.

[7]“Portrait macroéconomique et marché du travail en Chine – Première partie: Analyse et conjoncture économiques” in Finances Québec, Volume 2, n° 6, 17 janvier 2005, [www.finances.gouv.qc.ca/documents/EEFB/fr/ace_vol2_no6.pdf].Disponibilidade: 10/05/2011.

[8]“Les défis et perspetives de l’économie chinoise – Troisième partie: Etudes économiques, fiscales et budgétaires” in Finances Québec, Volume 1, n°57, [www.finances.gouv.qc.ca/documents/EEFB/fr/eefb_vol1_no5.pdf].Disponibilidade:13/05/2011.

[9]Ibidem.

[10]François Houtart não exclui, contudo, no futuro, a possibilidade de uma intervenção militar chinesa no plano regional (no Mar da China essencialmente). O autor afirma que as necessidades (cada vez maiores) da China em matéria de recursos energéticos podem, um dia, eventualmente justificar uma tal intervenção.

Paulo Duarte é doutorando em Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa – ISCSP-UTL, Portugal, bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, e investigador no Instituto do Oriente (duartebrardo@gmail.com).

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