Arapongagem do século XXI – Exército usou tecnologias modernas de varredura da internet e aparato militar de guerra para influir em processo legislativo. “intromissão ilegal entre poderes”, diz advogado.

Está entre as destinações constitucionais do Exército Brasileiro colocar o aparato militar, incluindo aí pessoal, equipamentos e agentes influenciadores, para facilitar a aprovação de um projeto de lei e até para evitar que estratégias ou ações adotadas por um partido político (PSol) sejam adotadas por outras siglas?”

Adão Farias é advogado, por conta de seu conhecimento de questões legais relacionadas aos militares das Forças Armadas foi indicado por uma associação de militares e convidado por senadores para participar de audiências públicas sobre o projeto de lei da reestruturação das carreiras dos membros das Forças Armadas (FA). Para o advogado, residente em Brasília, o projeto de lei trazia inconsistências que acabariam fazendo com que militares de baixas patentes e pensionistas com salários mais baixos, aquelas que recebem pensão deixadas pelos militares mais humildes, como soldados, cabos e terceiros-sargentos, fossem o grupo mais prejudicado.

Recentemente, ao ler artigo publicado na Revista Sociedade Militar, revista online com foco na divulgação de matérias relacionadas ao pessoal militar das Forças armadas e Forças Auxiliares, o advogado tomou conhecimento de que suas redes sociais privadas haviam sido monitoradas pelo Exército Brasileiro em meados de 2019. Relatórios divulgados pela revista online mostram que seu nome apareceu pelo menos duas vezes nos documentos elaborados pelos setores de inteligência e comunicação social do Exército. 

No relatório divulgado em anexo pela Revista Sociedade Militar, a seção de inteligência do Exército Brasileiro escondeu com tarjas pretas a imagem do advogado e sua identificação principal, mas se esqueceu de apagar o endereço de e-mail do advogado, que fica à direita da imagem do perfil no Linkedin, isso permitiu que tomasse conhecimento de que o perfil com as tarjas lhe pertencia.

Sobre a situação, o jurista declarou que ficou muito chocado por ter sido monitorado e que seus discursos no Congresso Nacional foram feitos em audiência pública e a convite de parlamentares.

“… chocado, uma vez que atuei no Congresso em audiência pública na discussão do então PL1645 a convite de deputados e senadores… analiso que providências tomar e entre elas está a possibilidade de levar o caso até a OAB para que a ordem se manifeste a respeito desse monitoramento dos serviços de inteligência e tentativa de interferência na atividade da advocacia… as pessoas tentaram mostrar que o projeto continha erros… hoje isso se concretizou com as inúmeras ações na justiça sobre as falhas que trouxeram prejuízos para a família militar… “, disse Adão farias, advogado.

O advogado foi só um dos muitos cidadãos monitorados pelas Forças Armadas naquele período. Os relatórios recebidos pela Revista Sociedade Militar e dados obtidos com a ajuda de fontes (anexo) indicam que dezenas de militares, jornalistas e parlamentares foram acompanhados pelo Exército Brasileiro e qualificados como mais ou menos influentes de acordo com sua atuação durante o processo legislativo que se desenrolava no segundo semestre de 2019.

Um dos primeiros dados coletados, ainda em 14 de agosto de 2019, detectaram que os atores que se opunham ao projeto de lei do governo tinham um potencial de alcance de quase 12 milhões de pessoas, o que acendeu luzes vermelhas nos corredores do Ministério da Defesa. Fonte militar (oficial superior oriundo das carreiras de sargentos) ouvida pela revista declarou em off que os generais não acreditavam que os sargentos tivessem tanto poder de influência e que as investigações revelaram que algo deveria ser feito com urgência.

Aquele foi um dos primeiros grandes projetos apresentados pelo governo Bolsonaro e para a defesa logo ficou bem claro que com a intensificação de movimentos de oposição realizados por graduados das Forças Armadas a aprovação da proposta, mesmo endossada pelas maiores autoridades militares, não seria uma tarefa tão fácil como esperava-se que fosse.

De acordo com o que era observado os setores de inteligência da força elaboravam relatórios cada vez mais abrangentes, realizavam ações e  – com foco no convencimento de parlamentares e opinião pública – sugeriam os caminhos mais curtos para a aprovação do projeto de lei que, segundo vários parlamentares e militares graduados, era de interesse das altas patentes das três Forças Armadas.

Militares graduados apontam várias questões que para eles se configuram como irregularidades ocorridas durante o processo legislativo, entre elas o custeio de viagem pela Amazônia, distribuição de condecorações para deputados e senadores e até criação de vagas em colégio militar para um filho de parlamentar.

A Aeronáutica, em 20 de setembro de 2019, no auge das discussões sobre o projeto de lei 1645, distribuiu medalhas para 13 parlamentares.  Exército e Marinha também agraciaram membros do parlamento durante aquele ano. Instadas pela revista e outros veículos de comunicação, as instituições armadas não explicaram os motivos oficiais das condecorações, previstas para quem presta “bons serviços para as forças armadas” .

Em um dos relatórios divulgado pela revista, um oficial de Inteligência, cujo nome é omitido pelo Comando do Exército, dá indício do uso de técnicas de operações psicológicas quando deixa escapar que é preciso acionar influenciadores para atuar em favor do projeto de lei da DEFESA e impedir que as pautas defendidas pelo PSOL, que alegava que militares de baixa patente na ativa e reserva e pensionistas podiam ser prejudicados se o projeto de lei não fosse mudado, contagiassem outras siglas.

A Revista não conseguiu identificar quais são os influenciadores que eventualmente atuaram a serviço das Forças Armadas na redes sociais.

No relatório enviado pela DEFESA à Revista Sociedade Militar, o serviço de inteligência colocou tarjas pretas sobre os termos PSOL, Ministério da Defesa, Presidente da República, STF e outros. Todavia, a revista já havia anteriormente obtido acesso a partes do mesmo relatório por meio de uma fonte e pôde identificar claramente quase todos os termos.

Diante dessa quantidade enorme de informações, surge a pergunta? Está entre as destinações constitucionais do Exército Brasileiro colocar o aparato militar, incluindo aí pessoal, equipamentos e agentes influenciadores, para facilitar a aprovação de um projeto de lei e até para evitar que estratégias ou ações adotadas por um partido político sejam adotadas por outras siglas?

A força terrestre admitiu que usou pelo menos um software de varredura na internet, o V-Tracker. Segundo a empresa que o comercializa, a ferramenta é extremamente poderosa, capaz de monitorar 300 milhões de ocorrências por mês.

“Inteligência artificial … conseguimos escalar ciências comportamentais com a ajuda de tecnologia, aplicando elas em passos que muitos nem imaginam…”

Nos relatórios obtidos pode-se observar que os dados ultrapassam o que se pode coletar por meio das mídias sociais usando o V-Tracker. Foram citados, como visto acima, perfis no Linkedin, nome de proprietários de sites monitorados e até informações sobre as forças armadas onde alguns dos militares servem, dados que só pode ser obtidos por uma varredura e monitoramento bem mais amplos, que ultrapassam, o que se conhece como social listening, o que é uma evidência de que softwares mais complexos podem ter sido utilizados.

Alguns advogados ouvidos alegam que isso tudo pode se configurar como interferência entre os poderes e – pior – que o Exército tornou a discussão desigual, na medida em que as cidadãos comuns que tentavam legalmente atuar para a modificação do então projeto de lei 1645 de 2019 não dispunham dos mesmos recursos e tiveram suas ações anuladas pela atuação dos militares nas redes sociais.

A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 142 expõe de forma bem clara qual é a destinação constitucional das Forças Armadas.

 As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Como se percebe, não há abertura para interferência das Forças Armadas em um processo legislativo.

No que diz respeito a um processo de discussão de projetos de lei, a legislação atual deixa claro que obrigatoriamente deve ser justo e igualitário. O procedimento adotado para a elaboração de uma lei deve sempre assegurar condições igualitárias, simétricas, de participação a todas as correntes político-ideológicas interessadas na discussão.

Ver o artigo: O escandaloso Lobby Militar no Congresso Nacional

A distribuição de condecorações para parlamentares, a intromissão do Exército no sentido de tentar mover a opinião pública e a própria existência de uma assessoria parlamentar militar dentro do Congresso Nacional são questões importantes a se discutir a ponto de fazer com que nos questionemos se um projeto de lei cercado por um Lobby tão poderoso teria chance de fracassar ou de sequer ser modificado por pessoas comuns.

Logo no princípio alguns perceberam que a coisa iria muito mais longe do que se espera em um processo legislativo comum. Um dos primeiros atos do relator, deputado Vinícius de Carvalho, foi dizer em alto e bom som que havia sido escolhido pelos próprios generais para relatar a nova norma. Como se quisesse com isso intimidar possíveis adversários. Afinal, tinha todo o aparato militar ao seu lado.

Ficou, portanto, para muitos, bastante evidente que o aparato militar, construído para uma guerra, gigantesco , que dispõe de força descomunal, com numero enorme de agentes, criado e mantido para auxiliar o país a derrotar exércitos inimigos inteiros,  foi utilizado para tentar desconstruir o discurso de um grupo de militares de baixa patente e de parlamentares que lutavam dentro das regras do jogo político para incorporar a um projeto de lei itens que na sua visão fariam com que deixasse de favorecer as elites militares.

Advogado ouvido pela Revista Sociedade Militar, que prefere não se identificar por enquanto, “para evitar ações do lado oposto”, disse, avisa que nos próximos dias tentará contato com advogados de um partido político no Rio de Janeiro e com membros da OAB para consultar sobre os fatos expostos nas publicações da Revista Sociedade Militar.

Abaixo a íntegra dos relatórios obtidos pela Revista Sociedade Militar por meio de fonte e dos documentos recebidos do Exército Brasileiro

CLIQUE PARA VER OS RELATÓRIOS COMPLETOS

Robson Augusto / Revista Sociedade Militar

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Sociedade Militar