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Transexualismo – Forças Armadas condenadas a reconhecer nome social e a não reformar militares transexuais

Em fóruns de discussão entre militares a decisão, que citou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi recebida com muita polêmica. Alguns militares são a favor da modernização. Mas, outros alegam que “se entrou como home tem que ficar assim“. Com a decisão, mesmo que o militar tenha ingressado nas Forças Armadas com um nome masculino, se o mesmo realizar a mudança de sexo, as Forças Armadas terão que passar a adotar em todos os documentos e no dia a dia, o nome escolhido pelo militar transgênero.

No que diz respeito a mudança de nome a União defende que o Decreto nº 8.727/2016, que permite a retificação do nome àquele que decide mudar de gênero, não se aplica à Administração Militar. 

A sentença julgou parcialmente procedente os pedidos formulados em uma ação civil pública, condenando a UNIÃO, que representa as Forças Armadas, a reconhecer o nome social de militares transgêneros que servem nas Forças Armadas e se abster de realizar aposentadorias ou reformas destes sob a alegação de doença ‘transexualismo’, a única hipótese ressalvada ficou no caso da mudança de sexo violar o edital do concurso no caso de restrição de gênero, quando não houver vagas para o gênero para o qual o militar assumiu após a mudança de gênero. 

O voto vencedor, do desembargador FEDERAL RICARDO PERLINGEIRO, determina que as Forças Armadas não podem mais alegar que militar transgênero seria um militar portador de uma doença. 

Veja a conclusão do voto e logo abaixo a sentença completa, o ACORDÃO

A conduta da União de não reconhecer o nome social dos seus militares transgêneros e de reformá-los, exclusivamente por esta condição, nega a plena efetivação do direito à identidade de gênero e vai de encontro à decisão vinculante do STF e a entendimento da Corte I.D.H. Dessa forma, deve ser negado provimento à sua apelação e à remessa necessária tida por interposta a seu favor e ser provido parcialmente o recurso da Defensoria Pública da União, para, reformando a sentença, excluir a ressalva nela contida para a hipótese de a mudança do sexo violar regra editalícia restritiva de gênero. E, ainda em relação à apelação da DPU, deve ser negado provimento na parte referente à condenação em honorários advocatícios.

Por fim, em remessa necessária tida por interposta a favor da Defensoria Pública da União, deve ser reformada a sentença na parte em que julgou extinta a ação com relação dos servidores civis por falta de interesse de agir, devendo, neste capítulo, a pretensão da DPU ser julgada improcedente por insuficiência de provas.  

Ante o exposto, voto no sentido de NEGAR PROVIMENTO À APELAÇÃO e À REMESSA NECESSÁRIA tida por interposta a favor da União e de DAR PARCIAL PROVIMENTO À REMESSA NECESSÁRIA TIDA POR INTERPOSTA E AO RECURSO DE APELAÇÃO da Defensoria Pública da União, para, reformando parcialmente a sentença, condenar a União, em todos os seus órgãos das Forças Armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica, a reconhecer o nome social dos seus militares transgêneros, assim como se abster de reformá-los mediante a alegação da doença ‘transexualismo’, sem qualquer ressalva, bem como para, com relação aos servidores civis, julgar improcedente o pedido por insuficiência de provas.


TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO

APELAÇÃO CÍVEL Nº 0002781-93.2018.4.02.5101/RJ

 

RELATORDESEMBARGADOR FEDERAL RICARDO PERLINGEIRO

APELANTEUNIÃO – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)

APELANTEDEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO – DPU (AUTOR)

APELADOOS MESMOS

EMENTA

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REMESSA NECESSÁRIA. APELAÇÕES CÍVEIS. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MILITAR TRANSGÊNERO. CONDENAÇÃO DE ENTE FEDERATIVO AO RECONHECIMENTO DE NOME SOCIAL E PROIBIÇÃO DE REFORMA COMPULSÓRIA. POSSIBILIDADE. NÃO COMPROVAÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DE SERVIDORES CIVIS. TEORIA DA ASSERÇÃO. IMPROCEDÊNCIA POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE DE GÊNERO. DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA CORTE INTERAMERICA DE DIREITOS HUMANOS. OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA POR TODAS AS AUTORIDADES ESTATAIS. DECRETO Nº 8.727/2017 E APLICAÇÃO ÀS FORÇAS ARMADAS. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 142, PARÁGRAFO 3º, X, DA CONSTITUIÇÃO. CUMPRIMENTO DIRETO DOS POSTULADOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E ISONOMIA. INGRESSO DE MULHERES NO CORPO DE PRAÇAS DA MARINHA. POSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE LEI FORMAL. DISCIPLINA OUTORGADA POR LEI AO COMANDO DA MARINHA. CONDENAÇÃO DO PODER PÚBLICO EM OBRIGAÇÃO QUE VISA À PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. NÃO OCORRÊNCIA. POSTULADO DA INAFASTABILIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL. PRECEDENTE DO STF. RETIFICAÇÃO DE GÊNERO DE MILITAR. VIOLAÇÃO DA ISONOMIA NOS CONCURSOS PÚBLICOS. INEXISTÊNCIA. AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE MINORIAS. TEORIA DO IMPACTO DESPROPORCIONAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NÃO CABIMENTO. ARTIGO 18 DA LEI 7.347/85.

1. Remessa necessária e apelações cíveis interpostas em objeção à sentença que julgou parcialmente procedente os pedidos formulados em sede de ação civil pública ajuizada por órgão federal independente, condenando ente federativo a reconhecer o nome social de militares transgêneros nas Forças Armadas e se abster de realizar aposentadorias ou reformas destes sob a alegação de doença ‘transexualismo’, ressalvando hipótese na qual a mudança do sexo violar regra editalícia restritiva de gênero.

2. Consoante mencionado, em razão de a sentença recorrida, com relação aos servidores civis, ter extinguido o processo, sem resolução do mérito, com fundamento no art. 485, inciso VI, do CPC, deve incidir o disposto no art. 19 da Lei nº 4.717/65, segundo o qual prevê que “a sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal; da que julgar a ação procedente caberá apelação, com efeito suspensivo”, em razão de a questão estar inserida no microssistema de tutela coletiva. A propósito, confira-se precedente do Superior Tribunal de Justiça: STJ, 1ª Turma, REsp 157898, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 4.2.2019. No mais, entende-se ainda pelo conhecimento da remessa necessária em favor da União Federal, aplicando-se subsidiariamente o art. 496, inciso I, do CPC à hipótese em comento, em conformidade com o disposto no art. 19 da Lei nº 7.347/85.

3. A ausência de comprovação de tratamento discriminatório de ente federativo com os seus servidores públicos transgêneros não tem relação com o interesse de agir e sim com o mérito da demanda que, neste ponto, deve ser julgada improcedente por insuficiência de prova, não fazendo coisa julgada material, conforme art. 16 da Lei nº 7.347/1985. Nesse sentido: TRF2, 7ª Turma Especializada, Rel. Des. Fed. JOSÉ ANTONIO NEIVA, E-DJF2R 11.5.2020; STJ, 3ª Turma, AgInt no REsp 1841683/SP, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe 19.11.2020.

4. A incongruência de gênero ou transgênero é a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento, incluindo-se neste grupo transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero, não podendo servir esta condição como único fundamento para a reforma de militares.

5. Precedente do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade que julga procedente ação direta “para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil” (STF, Tribunal Pleno, ADI 4275, Relator p/ Acórdão: EDSON FACHIN, DJe 7.3.2019) e Tema 761 da repercussão geral que firma tese assentando que “o transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa”, devem ser obrigatoriamente observados por todos os órgãos do ente federativo, inclusive as Forças Armadas.

6. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte I.D.H) estabelece que “o Estado deve assegurar que indivíduos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero possam viver com a mesma dignidade e com o mesmo respeito a que têm direito todas as pessoas”, e que “o reconhecimento da afirmação da identidade sexual e de gênero como uma manifestação da autonomia pessoal é um elemento constituinte e constitutivo da identidade das pessoas que se encontra protegido pela Convenção Americana em seus artigos 7 e 11.2” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Parecer Consultivo OC-24/2017 de 24 de novembro de 2017 solicitado pela República da Costa Rica. Disponível em:  https://bit.ly/3mHrV6p. Acesso em: 12 fev. 2021), devendo, assim, ser observado por todas as autoridades estatais (sejam elas órgãos do executivo, legislativo ou judiciário) dos países que se sujeitam à sua jurisdição (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Pessoas Dominicanas e Haitianas Expulsas vs. República Dominicana. Sentença de 28 de agosto de 2014. Disponível em: https://bit.ly/3p6fKAW. Acesso em: 12 fev. 2021).

7. O Decreto nº 8.727/2017, ao dispor sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica, tem por fundamento o poder normativo da Administração, disciplinando e uniformizando de que forma devem ser tratados os transgêneros que detêm vínculo jurídico com o ente federativo, dando cumprimento direto aos postulados da dignidade da pessoa humana e isonomia, previstos tanto na Constituição como na CADH, em conformidade com decisão vinculante do STF e precedente da Corte I.D.H, não implicando violação ao art. 142, parágrafo 3º, X, da Constituição.

8. Desde a promulgação da Lei nº 13.541/2017, que alterou a Lei nº 9.519/97, é permitido o ingresso de mulheres no Corpo de Praças da Armada, devendo a matéria ser disciplinada por regulamentos do Comando da Marinha, não havendo violação aos princípios da legalidade estrita e da separação dos poderes, decisão judicial que proíbe a reforma compulsória de militar transgênero exclusivamente em razão desta condição.

9. A ação civil pública é mecanismo idôneo para impor ao Poder Público obrigação de fazer consistente na promoção da dignidade da pessoa humana, conforme precedente do Supremo Tribunal Federal que, ao julgar recurso especial com repercussão geral reconhecida, assentou que tal postulado legitima a intervenção judicial para impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente em condutas que visam preservar o valor fundamental da pessoa humana, em razão do postulado da inafastabilidade da prestação jurisdicional.

10. A retificação do gênero do militar transgênero não viola a isonomia nos concursos públicos e nem se traduz em privilégio ou bônus, se tratando de ato de exercício da cidadania e afirmação dos direitos humanos de grupo minoritário e estigmatizado por séculos em nossa sociedade, não se legitimando restrições à afirmação da identidade de gênero, sob pena de perpetuação do cenário discriminatório.

11. Reforma parcial da sentença para condenar a União, em todos os seus órgãos das Forças Armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica, a reconhecer o nome social dos seus militares transgêneros, assim como se abster de reformá-los mediante a alegação da doença ‘transexualismo’, sem qualquer ressalva, bem como para, com relação aos servidores civis, julgar improcedente o pedido por insuficiência de provas.

12.  Nos termos do art. 18 da Lei nº 7.347/58, não há condenação em honorários advocatícios em ação civil pública, salvo em caso de comprovada má-fé.

13. Remessa necessária e apelação em relação à União Federal não providas. Remessa necessária e apelação em relação à Defensoria Pública da União parcialmente providas.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 5a. Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região decidiu, por unanimidade, NEGAR PROVIMENTO à remessa necessária e à apelação em relação à União Federal, e DAR PARCIAL PROVIMENTO à remessa necessária e à apelação em relação à Defensoria Pública da União, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2021.

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Sociedade Militar