Uma Relação personalíssima! 17 mil punições em suboficiais, sargentos, cabos, marinheiros e soldados…

“E o pior de tudo é que… esboça-se no fundo desse quadro escuro o espectro sinistro do militarismo, cuja espada de Dâmocles, sustida por tênues fios, impende ameaçadoramente sobre as nossas cabeças.”

(Borges de Medeiros)

A simbiose entre Bolsonaro e o Alto Comando das Forças Armadas naturalmente tende a atrair os olhares públicos para as problemáticas inerentes à vida militar. A imprensa, em grande parte instigada pela beligerância do Presidente, principia a dissecar o soldado e suas agruras, prestando por tabela um importante serviço à democracia brasileira, ao jogar luzes no relacionamento medieval que ainda existe entre os generais e a tropa. Confrontada pela muralha muda do ethos militar, pesquisa feita por importante jornal revela que a profissão das armas não é a apregoada ilha das oportunidades meritocráticas, mas apenas uma replicação da sociedade brasileira em sua face mais injusta.

E como injustiça boa é injustiça para todos, procurando ampliar o fosso existente entre a base e o topo da hierarquia militar, num movimento ousado de mesclar totalitarismo e “justiça”, os ministros do Superior Tribunal Militar tramam uma forma de manter a tropa no seu devido lugar, mesmo fora dos quartéis.

Consequência direta do comando inconsequente do atual Comandante Supremo, a Folha de São Paulo promoveu uma lavagem de roupa suja camuflada nessa semana que passou. Algo que para a maior parte dos leitores talvez fosse objeto de mera suposição, isto é, que as leis na caserna só serviriam para punir os militares mais desfavorecidos, confirmou-se com números fornecidos pela Marinha do Brasil. Verdade marcada na pele de todos os que habitam os porões dos navios, rebocam aeronaves ou pintam calçadas nos quartéis, a torpeza legalizada da administração castrense mostrou-se em toda a sua desfaçatez.

Os dados fornecidos pela MB, excluídos FAB e EB, que não deram informações, revelam que o meio militar, longe de representar um oásis de igualitarismo democrático – em que todos seriam “iguais perante a lei”, numa nação em que sentenças judiciais são compradas – é nada mais do que um tentáculo pegajoso da tradicional e personalíssima relação entre a elite brasileira e os “seus” pobres. A devassa da imprensa na administração militar obviamente se deve ao caso do general da ativa que participou de um comício pré-eleitoral e que, por ser o queridinho do Presidente, foi privilegiado com um tratamento que normalmente não seria deferido a um sargento que, por exemplo, subisse a um palanque com o Ciro Gomes ou o Lula.

De acordo com a reportagem¹, o sistema punitivo da Marinha funciona a todo vapor. “Entre 2017 e o começo de 2021, pouco mais de quatro anos, foram aplicadas 17 mil punições por transgressões de suboficiais, sargentos, cabos, marinheiros e soldados. Isto significa mais de dez punições por dia, em média.” Uma verdadeira linha de montagem disciplinar! Por outro lado, os oficiais do topo da hierarquia, principalmente o generalato, raramente ou nunca foram punidos no mesmo período. Questionada sobre por que isso acontece dessa maneira, a MB preferiu silenciar.

Mas esse mutismo é mais eloquente do que parece à primeira vista. O silêncio administrativo nesse caso particular não significa, como pode parecer, uma escusa vergonhosa ou mesmo alguma confissão de culpa, mas sim o contrário. O que a alta administração militar grita nesse silêncio é o endosso, a chancela mesma da visão de mundo elitista que permeia a caserna. O fato de a lei militar funcionar seletivamente, privilegiando a elite e oprimindo o restante, pode ser um escândalo para a sociedade civil, mas definitivamente não é para a sociedade militar. Por que a maioria esmagadora das punições é de praças? O silêncio militar diz naturalmente: “porque são praças”. Por que os generais não são punidos da mesma forma? O silêncio militar responde, entre assombrado e surpreso: “porque são generais!”. O que os números revelam transcende a mera estatística. O que vem à luz do escrutínio público é a face mais grotesca de um regime semifeudal em que o preconceito e a segregação é normalizado, é a regra, jamais a exceção.

Mas como todo bolo pede uma cereja, e é preciso que as exceções sejam normalizadas, os ministros do STM, chateados porque muitos militares litigantes buscam a justiça federal, procurando a isenção e a imparcialidade quase inexistentes na enviesada jurisdição castrense, querem “ampliar a competência”² da justiça militar, isto é, querem fazer no poder judiciário um puxadinho do paternalismo paranoico que vigora nos quartéis. Essa manobra, longe, mas muito longe de representar um avanço democrático, significaria transformar a “Pátria numa grande caserna” em que os militares, principalmente os de baixa hierarquia, seriam finalmente, de fato e de direito, subcidadãos de um estado kafkiano inapelável e monocrático.

JB Reis

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¹https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/marinha-aplicou-17-mil-punicoes-em-pracas-e-subalternos-mas-blindou-superiores-nos-ultimos-4-anos.shtml

²https://www.sociedademilitar.com.br/2021/10/ministros-generais-do-stm-flertam-com-senadores-eles-querem-uma-cadeira-na-corte-do-conselho-nacional-de-justica.html

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