A Última minoria – … um futuro crítico para a disciplina militar brasileira e para a integridade orgânica das Forças Armadas

“Quando os historiadores se debruçarem sobre este período obscuro da história militar brasileira terão muita dificuldade em decifrar qual foi a real intenção da cúpula militar do governo Bolsonaro ao provocar tamanho retrocesso …”

A Última minoria

“Um cavaleiro sábio deveria ter o cuidado de não puxar as rédeas com muita

força para que o animal não se empine e acabe por jogá-lo no chão…”

(Edward Bulwer-Lytton, Rienzi)

Ao contrário da sociedade militar, que se destaca em qualquer época por ser de um anacronismo a toda prova, a sociedade civil não é estática e naturalmente gera demandas políticas conforme o desenvolvimento dos povos. O oceano da civilização eleva seu nível e mais e mais fortemente atira suas ondas contra a fortaleza da caserna, como se a quisesse romper com sua potência ruidosa.

As grandes minorias se impõem. Fazem-se ouvir e quebram barreiras seculares, rompendo preconceitos arraigados no ambiente militar. Assim foi com a questão racial, assim foi com as mulheres. Mas, eis que das mãos do próprio governo militar em curso, dá-se um passo para trás e no seio mesmo da tropa conjura-se uma última minoria, que promete ser mais aguerrida do que todas as outras.

Em linhas gerais, do ponto de vista da questão racial, as Forças Armadas, principalmente o EB, são exemplo entre as instituições do Estado brasileiro. Talvez por contingências incontornáveis, o afluxo de brasileiros não brancos aos quartéis sempre foi a norma, nunca a exceção. De forma embrionária no conflito de Guararapes, que culminou com a expulsão dos holandeses, e alguns séculos depois na Guerra do Paraguai, o Exército Brasileiro, reunindo no cadinho da batalha suas três matrizes étnicas, contribuiu para amalgamar a consciência grupal de um povo – coisa inédita no mundo – já de fato miscigenado.

Mesmo apegado ao conservadorismo, alguns anos antes da proclamação da República, o Alto Comando do Exército pediu à Princesa Isabel que a Força não fosse usada na captura e apresamento de escravos fugidos. A vocação do Exército sempre foi a liberdade como valor essencial. Apesar de retrocessos ocorridos em governos fascistas e ditatoriais posteriores, hoje é possível dizer que a democracia racial (isto é, o acesso livre e justo independente de racialismos) na vida militar é uma realidade inarredável. Os militares não-brancos ainda são minoria numérica, mas já não são mais uma minoria clássica, isto é, um grupo social em condição de vulnerabilidade.

A busca pela igualdade de oportunidades entre os sexos também teve nos quartéis um campo de lutas. Na década de oitenta, MB e FAB admitiram as primeiras turmas de mulheres em seus corpos de graduados (cabos e sargentos). O Exército brasileiro foi a última das forças armadas a aceitar mulheres, mas o processo de assimilação prossegue. Segundo informações do Instituto Igarapé, sendo cerca de 8% do efetivo das forças armadas brasileiras, 25 mil mulheres estão empregadas na Marinha, Exército e Aeronáutica. Assim como na questão racial, as Forças Armadas, dentro de suas peculiaridades e limitações, despontam entre as instituições nacionais como polo de inclusão da mulher no mercado de trabalho. Assim como a população negra fardada, a mulher militar também é minoria apenas numericamente.

Essas pressões que a sociedade exerce sobre a vida militar brotaram naturalmente do desenvolvimento das democracias ao longo da história. Demandas sociais não são meramente questões pessoais, mas também fruto de políticas que inevitavelmente põem à prova a vida militar. Mas, ao mesmo tempo em que a política provoca mudanças na vida militar, o oposto não deve ser verdadeiro.

O distanciamento salutar que a política impõe à classe militar tem motivação óbvia. Seus profissionais, adestrados para a guerra, são os executores do monopólio estatal da violência. Não é razoável que se misturem com política, muito menos que a façam. E como a necessidade é a antessala do atrevimento, menos razoável ainda é que precisem fazer política.

Pode-se classificar então como desastrosa e camicase a política implementada pelo governo por ocasião da reestruturação da carreira militar em 2019. A fratura causada pela desastrada reforma previdenciária entre pessoal ativo e inativo, e inclusive entre militares de mesma patente, imediatamente derivou para o ambiente da radicalização política. A polarização político-ideológica, conquanto apenas episodicamente se revele entre o pessoal da ativa, é gritante entre o pessoal da reserva.

A vida militar, que  antes de 2019 era um éden de inofensividade ideológica, um oásis em que seus “nativos” não precisavam ostentar preocupações políticas – pois, na melhor doutrina do general Góes Monteiro, “os defensores naturais das [camadas subalternas], [seriam] seus chefes]” – foi inundada de considerações partidárias, formações de diretórios políticos embrionários, lançamentos de campanhas políticas de praças em aberto repúdio à tutela dos oficiais, etc. Um cisma herético antes inimaginável, digno do caudilhismo bolivariano mais acintoso e contrário à doutrina militar mais conservadora, surgiu aos primeiros dias da gestão do governo de Jair Bolsonaro.

O governo atual, manietado por um núcleo militar de alta patente, e usando como arma a reforma da proteção social dos militares, avançando na contramão de tudo que vimos sobre minorias e suas justas demandas sociais, dentro do ambiente controlado da caserna (compreendida aqui como ativa e reserva) conseguiu conjurar uma minoria artificial, não só em sentido numérico mas também em sentido sociológico. Quando os historiadores se debruçarem sobre este período obscuro da história militar brasileira terão muita dificuldade em decifrar qual foi a real intenção da cúpula militar do governo Bolsonaro ao provocar tamanho retrocesso social – recheado com perdas de direitos, prejuízos financeiros e quebra de hierarquia – em uma parcela considerável do contingente militar já institucionalmente vulnerável.

Recentemente uma nota publicada por oficiais de elevada hierarquia deplorava os efeitos da política do governo em relação aos militares de baixa patente. Talvez não seja apenas demagogia, talvez realmente oficiais mais antigos na reserva já estejam vislumbrando um futuro crítico para a disciplina militar brasileira e para a integridade orgânica das Forças Armadas, que até o governo atual gozavam de renomado prestígio junto ao povo, que elas mesmas ajudaram a formar, mas que sob a batuta desagregadora de interesses insondáveis principia a se esfacelar perante os olhos de todos.

Atenção A Revista Sociedade Militar não necessariamente concorda com textos assinados por colaboradores, a publicação integral é parte de nossa política de discussão livre sobre assuntos relacionados às Forças Armadas, geopolítica e instituições de segurança brasileiras.

JB Reis – REVISTA SOCIEDADE MILITAR

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Sociedade Militar