Documentários devem ser vistos sempre com um olhar crítico. Não é possível fazer um documentário totalmente imparcial, já que a visão, o resultado final, contará com a intervenção do diretor e do editor. Mas alguns desses filmes sobre a realidade têm grande pertinência por mostrar algo que – em geral – a imprensa comum não consegue divulgar à altura, seja por motivos técnicos (locais com risco de morte, áreas de conflito, áreas sujeitas à contaminação biológica, entre outros) ou por motivos políticos.
O documentário 20 Dias em Mariupol é uma dessas obras que merece a atenção do público. O longa-metragem documental mostra o início da invasão russa à Ucrânia. Apesar da gigantesca cobertura e da participação das redes sociais, o fato é que um documentário dá mais validade ao que está sendo mostrado, algo que ocorre por conta do contexto de “documento válido” atribuído pelo senso comum a este tipo de produção.
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Uma localidade ucraniana chamada Mariupol é a “escolhida” para realizar a cobertura dos acontecimentos e torná-la o foco do documentário.
Mariupol é uma porta de acesso à Criméia. O local, segundo o narrador, já sofreu uma tentativa de invasão há 8 anos (o documentário se passa em 2022). Historicamente, Mariupol sofreu ataques nos anos de 2014 e 2015, este último perpetrado pelos militares da “República Popular de Donetsk”, separatistas que querem a Ucrânia sob o domínio russo.
A cidade tem como língua predominante o russo, mas sua população, antes do ataque russo em 2022, era de praticamente 48% de ucranianos e 44% de russos, além de uma ínfima população de judeus e 4% de gregos.
Após o cerco a Mariupol (documentado neste longa-metragem), a população teve seus pouco mais de 425 mil habitantes reduzidos para aproximadamente 100 mil.
O cerco.
O documentário não poupa o espectador. O medo, a raiva, a tensão nas faces… tudo está explícito e serve para mostrar o impacto que esse ataque provocou (e continua a provocar) no povo ucraniano.
Há uma cena onde Vladimir Putin, líder russo, afirma que tudo se trata apenas de uma manobra militar voltada a evitar uma ação inimiga. Não há citação ao real inimigo, mas há a promessa de não atacar o povo da Ucrânia, fato que é instantaneamente desmentido pelas cenas de bombardeios às áreas civis pelos comboios militares russos e sua Força Aérea.
Persistência.
O povo ucraniano é forte. Entretanto, as forças invasoras também são fortes. Não há área segura em Mariupol, o que leva a população a improvisar áreas de proteção, menos eficientes que os abrigos antiaéreos (quase inexistentes), mas capazes de dar esperança aos civis que temem por si e por suas crianças.
Apesar de um Êxodo de ¼ da população, os moradores restantes não querem abandonar suas histórias, passado e tudo que construíram para trás. Infelizmente, muitos realmente não deixaram, porém ao custo da própria vida.
Dor e raiva.
Com apenas 18 minutos de projeção, uma das cenas mais impactantes é arremessada na minha face. Uma ambulância chega ao hospital com uma criança vitimada por um ataque russo. Tudo que está ao alcance da equipe médica é usado, porém a violência do ataque a matou. Médicos e enfermeiros choram e vociferam palavras de ódio contra Putin, o real mandante daquele assassinato.
Acreditem: nada prepara um indivíduo para ver tanta dor e ódio acumulados. O médico, em uma atitude de compaixão, cerra os olhos da menina morta, Evangelina.
Outras mídias.
Há cenas obtidas através de outras mídias. CBS, DW News e The Associated Press são algumas delas. Essas cenas mostram bombardeios em tempo real, áreas civis destruídas até as estruturas, além do pânico generalizado nos cidadãos.
Contudo é preciso destacar que as constantes coberturas tiveram sua frequência reduzida ao longo dos meses. Hoje, infelizmente, parece que boa parte da população esqueceu que a guerra não acabou. O conflito, antes interessante e lucrativo à imprensa, pode ter perdido o apelo jornalístico, porém é inegável que mortes – de ucranianos e russos – ainda ocorrem.
Logística.
Assistir 20 Dias em Mauripol é um lembrete e um alerta. Um lembrete sobre o nível de covardia que liderança mundiais podem praticar sob a justificativa de defesa territorial, estratégia geopolítica, ação em prol da preservação de um povo, etc. Também é um alerta sobre a rápida destruição de toda uma logística dentro de uma cidade alvejada por ataques militares intermináveis.
Mauripol era uma cidade próspera, bem estruturada e com uma população contente com seu modo de vida. Isso, entretanto, mudou drasticamente quando os russos invadiram o território. Nada mais funcionou como antes, pois os intensos bombardeios destruíram redes elétricas, derrubaram a internet, cessaram comunicações e minaram os estoques de alimentos, remédios e outros itens indispensáveis.
Para que você tenha uma breve ideia do que descrevi e do que o documentário mostra, imagine viver em prédios em ruínas, sem água, luz, esgoto, internet e com toda a rede de suporte do Estado (hospitais, comunicação, fornecimento de alimentos, etc) destruída ou reduzida ao mínimo essencial. Um cenário como esse, sejamos sinceros, é o mais desanimador e triste possível.
Perdas e danos.
Cheguei ao primeiro terço do documentário. Minha mente está envolta pelos mais tristes pensamentos, algo proporcionado pela crueza das cenas de guerra. Ao contrário da visão distante e vaga da maioria dos jornais do mundo, as cenas e diálogos apresentados em “20 Dias” é uma dose brutal de realismo.
Sentimos as perdas e a dor por cada um que morre diante das câmeras, sentimos o sofrimento dos parentes que observam, incapazes de fazer algo, a jornada desesperada dos médicos para tentar salvar a vida das pessoas vitimadas pelos ataques rápidos e inclementes.
Pouca comida, remédios escassos, prédios em chamas, necrotérios lotados e, sobretudo, dor. É palpável a dor das pessoas em Mauripol. Podemos, como meros espectadores, sentir o quão quebradas estão essas pessoas. Uma quebra moral, física e espiritual. Todavia, unidos pela vontade de impedir um massacre maior, esses homens e mulheres persistem, mesmo contra todas as expectativas.
Trilha sonora.
Claro que esta é uma produção com técnicas cinematográficas e, por tal, tem elementos que servem para ampliar ou destacar sensações presentes na obra. A trilha sonora é uma das ferramentas de que o documentário se vale, seja para destacar os piores momentos vividos pelas pessoas que sofreram com a invasão ou para alertar o espectador sobre o drama da cena em si. Obviamente que essa trilha sonora poderia ser descartada ou minimizada, mas é por meio dela que a mente do espectador volta aos fatos, principalmente se levarmos em consideração que há passagens onde – por autopreservação – nossa mente parece se desligar dos acontecimentos. É muita dor para processar em tão pouco tempo.
Sem esperança.
Ainda próximo da metade do documentário, o que é mostrado ao espectador resume-se a um cenário de desolação, mortes, ataques incessantes e a absoluta ausência de esperança.
Homens, mulheres, velhos e crianças estão sitiados em sua própria cidade. Não há água, luz, televisão, alimentos e, claro, segurança. Todos aguardam a chegada da morte que poderá vir por ataques de tanques, bombardeios e mísseis. Tudo que foi construído ao longa de gerações está destruído, porém isso ainda ficará pior.
20 Dias.
O cerco se mostrou um metódico e sádico processo de eliminação de qualquer resistência possível. Os russos – que inicialmente afirmaram não ter motivos para atacar – agora fazem ataques constantes. Prédios residenciais são transformados em escombros. Ninguém é poupado.
Os citados “20 dias” do título do documentário aludem ao acompanhamento por parte dos repórteres dos ataques durante esse período. Cada novo dia traz, inevitavelmente, mais e mais perdas de vidas, da história de um povo e, claro, a perda da esperança.
Instaura-se a “terra de ninguém”.
Um dos pontos que esse documentário comprova é a total balbúrdia que assola um local em guerra. Pessoas comuns se tornam saqueadoras. Em função da destruição, fios elétricos, tubulações de gás e até mesmo o esgoto ficam expostos, o que gera perigo em vários âmbitos.
Os saques são fruto da perda da capacidade de comprar o que é essencial. Em uma guerra como a abordada nesse documentário, o dinheiro ainda tem poder, porém é menos eficiente por causa da destruição de praticamente tudo que poderia ser adquirido. Diante dessa situação, pessoas mal intencionadas e até mesmo pessoas de bem optam por tomar o que querem e precisam.
Nessa onda de destruição e apropriação indébita, nem mesmo os vizinhos são confiáveis. Motivados pelas perdas, impulsionados pelo medo e ódio, o que vemos durante um conflito bélico é a pior face do ser humano. Infelizmente, isso também ocorreu com a sofrida população de Mariupol.
“A guerra é como um raio-x. Todas as entranhas humanas se tornam visíveis.”
O mínimo necessário.
O ataque sistemático a Mariupol transformou uma população relativamente próspera em um povo à beira da barbárie.
A falta de comida, água potável, aquecimento, luz, comunicação e tudo mais que configura uma sociedade equilibrada torna-se motivo mais do que suficiente para trazer à tona o que há de melhor e pior na índole humana.
Enquanto homens e mulheres ofertam suporte e caridade com seus pares, outros se valem do anonimato e do caos para obter bens, atacar, estuprar e impor suas próprias “leis”. Tudo fruto da rápida destruição da rotina e do equilíbrio que só a paz pode proporcionar.
Quando o mínimo necessário falta, deparamo-nos com o máximo em crueldade e egoísmo que só os humanos podem expor.
Guerra a distância.
Muitos “especialistas” afirmam que há precisão nos ataques de ambos os lados. Russos e ucranianos têm armamentos capazes de atacar com precisão milimétrica. Mas, infelizmente, até mesmo o mais moderno bombardeiro ou míssil depende da indicação, por mãos humanas, da localidade onde atingirá.
Uma das cenas que jamais esquecerei é o transporte de uma grávida com parte de seu ventre exposto. As faces dos homens que a transportam dão uma nítida noção do quão desesperadora é sua situação.
Então, se as armas são tão precisas, o que leva alguém a determinar o ataque com mísseis a um hospital-maternidade?
Guerra de narrativas.
Mesmo com as cenas dos corpos sepultados em valas comuns, mesmo frente às cenas das mulheres grávidas feridas, a Rússia assumiu um posicionamento que afirmou se tratar de imagens “fabricadas”, encenações que contaram com atores para criar uma narrativa voltada a atribuir aos ataques russos o caráter de genocídio, de massacre.
Infelizmente, mesmo diante do óbvio, parte do mundo aceitou a narrativa russa e atribuiu aos ucranianos e seus relatos e filmagens de guerra o teor de “fake news”.
Com a ajuda da imprensa e de manobras políticas, a Rússia atacou mais uma vez o povo ucraniano, desta vez em sua moral, quando pôs parte da opinião pública contra a Ucrânia.
Política e poder.
Cada novo segundo do documentário reforça a cruel realidade dos ucranianos: eles estão sendo atacados por um povo “irmão”. Lembram-se de que eu citei que mais de 40% do povo de Mariupol é russo? A Ucrânia já foi território da URSS e os povos dos dois países mantêm relações e possuem, ainda, grau de parentesco.
Entretanto, desconsiderando a história, os parentescos e a realidade de relativa paz que havia na Ucrânia, Vladimir Putin optou por atacar sem declarar guerra. Com tropas maiores e melhores aparelhadas, os russos tinham a certeza de que tomariam o país, porém – passados dois anos – os avanços foram bem menores do que o planejado. Além disso, apesar do discurso prometendo não atacar os ucranianos, Putin recentemente publicou um decreto onde transformou as áreas ucranianas invadidas em território russo.
Quando a vontade de um político prevalece sobre um povo, infelizmente os resultados são desastrosos. Mesmo diante de inúmeras justificativas e narrativas, essa guerra trouxe perdas inestimáveis para os ucranianos e russos. Seres humanos foram – indubitavelmente – sacrificados em prol de estratégias e fome de poder.
Sem filtros.
Diante desse absurdo e terrível cenário mostrado – sem filtros – pelo diretor do documentário, Mstyslav Chernov*, o mundo perceberá que é vital esgotar todos os recursos diplomáticos, estratégicos e de inteligência para, caso seja impossível evitar, dar início a um conflito.
20 Dias em Mariupol será a mais tensa, impactante e triste visão de uma guerra para os espectadores (não há interpretações, apenas a realidade desnuda e cruel diante do público), porém é importantíssimo que ele seja assistido. Afinal, aparentemente o mundo nada aprendeu após os milhões de mortos durante a Segunda Guerra Mundial e os conflitos que se seguiram.
* O jornalista Mstyslav Andriyovych Chernov cobriu os principais conflitos recentes na Ucrânia, incluindo a guerra em Donbass, a Revolução da Dignidade e, claro, o cerco a Mariupol. Seu trabalho em Mariupol foi reconhecido com o Prêmio Pulitzer de Serviço Público, mas ele também recebeu diversos outros prêmios por suas coberturas jornalísticas. O documentário foi filmado durante três semanas, período em que Mstyslav e sua equipe se expuseram aos ataques, ao desconforto e à possibilidade de serem abatidos pelas tropas russas, mas é indubitável que a pior parte foi estar impassível e incapacitado de evitar uma situação tão triste e dolorosa quanto uma invasão ao seu país.
Nota: o documentário foi vencedor do BAFTA como melhor documentário (2024). Mstyslav Chernov ganhou o prêmio de melhor diretor pelo Director Guild of America. Diante dessa jornada de sucessos e reconhecimento, 20 Dias em Mariupol é apontado como o mais provável vencedor do Oscar de melhor documentário este ano.