Um extenso inquérito acessado com exclusividade pela Revista Sociedade Militar, conduzido pelo Ministério Público Militar (MPM), confirmou a existência de uma reserva informal de recursos financeiros, comumente chamada de “caixa 2”, no âmbito do 1º Regimento de Carros de Combate (1º RCC), em Santa Maria (RS).
A apuração, que transcorreu de outubro de 2022 até fevereiro de 2025, revelou que a Organização Militar cobrava ingressos para eventos e pedia doação a empresas privadas como McDonald s, bancos, hotel e até empresas de produtos de defesa, além de incorrer em outras irregularidades. Militares de alta patente ouvidos admitiram que havia valores depositados em um cofre dentro do quartel. Apesar disso, os envolvidos não foram responsabilizados criminalmente pelo Ministério Público.
Arrecadação informal e uso de recursos do caixa 2
Segundo os documentos do Procedimento Investigatório Criminal nº 133.2022.000023, os valores que abasteciam o “caixa 2”, que era mantido em um cofre no setor de informações do 2º Regimento de Carros de Combate, tinham origem na venda de ingressos para festividades, na comercialização de abrigos recebidos como cortesia, e em patrocínios solicitados para empresas privadas. Tais recursos, de acordo com o Ministério Público Militar, não eram provenientes do erário público.
As festividades incluíam a aquisição de bebidas alcoólicas, aluguel de brinquedos e ornamentações, despesas que, segundo os envolvidos, não poderiam ser realizadas pelos meios convencionais da Administração Militar.
Solicitações de patrocínio a empresas privadas que têm ligações com o Exército Brasileiro
Diversas empresas foram procuradas pelo comando do 1º RCC como potenciais doadores para os eventos da unidade. A operadora de financiamentos do Banco Alfa confirmou, em depoimento, ter repassado valores em espécie para o evento “Vanguardeiro Kids”. Já a empresa KMW do Brasil declarou que custeou uma placa de aço inox para o Dia da Cavalaria, no valor de R$ 1.100.
O banco Alfa oferece empréstimos consignados para militares e a empresa KWM do Brasil opera com a fabricação de sistemas de defesa, tendo o Exército Brasileiro como um de seus principais clientes.
O inquérito menciona ainda que outras empresas, como o McDonald’s e o Banco Santander, teriam recusado os pedidos. O documento ressalta que não foram encontrados elementos que apontassem para a exigência de contrapartidas por parte do Exército, mas os documentos levantam questionamentos sobre a natureza dessas solicitações, especialmente pelo potencial de empresas se sentirem compelidas a doar em razão de futuros contratos ou interesses junto à Força.
O comandante do quartel à época, de 2018 a 2021, ouvido pelo Ministério Público Militar, admitiu a existência de valores não contabilizados e guardados no “cofre da 2ª seção” e disse ainda que os pedidos de doações para empresas eram de conhecimento do escalão superior.
““(…) Confirmo ter solicitado patrocínio/apoio institucional para algumas atividades de natureza estritamente institucional, previstas no Calendário de Instrução e Cerimonial Militar da Unidade. (…) Os pedidos de patrocínio/apoio institucional eram obtidos mediante pedido formal em nome e para o 1º RCC, via Ofício, sem nenhuma contrapartida ou troca de vantagens para a empresa apoiadora… Por razões de segurança, os valores eram armazenados no cofre da 2ª Seção da OM. Os pedidos de patrocínio eram de conhecimento e autorizados pelo Escalão Superior”.
Utilização de militares como garçons e uso da alimentação da tropa em festas particulares e cobrança de ingressos
As apurações revelaram que militares da ativa foram empregados como garçons, cozinheiros e até encarregados de buscar bebidas em vinícolas locais para as confraternizações. Um militar, em depoimento, confirmou ter sido escalado para transportar vinhos e espumantes, deixando a nota fiscal com o fiscal administrativo da unidade.
Sobre isso o MP declarou que: “utilização de militares – agentes públicos – para o cumprimento de diversos serviços em prol dos “confrades de cavalaria” e de seus convidados, como é o caso de garçons, cozinheiros e até mesmo de militares que cumpriram a “missão” de buscar vinhos”.
Gêneros alimentícios de uso do exército foram para as festas
Além disso, o cardápio dos jantares sociais incluía gêneros alimentícios originalmente destinados à tropa, os quais, segundo o Ministério Público, eram “diluídos” nos registros do arranchamento para mascarar o uso indevido.
A prática contraria normas internas do Exército que proíbem o uso de suprimentos militares para civis ou militares de outras Forças, fora das regras de controle orçamentário.
Compra de vestuário para uso particular de militares
Outro ponto abordado na sindicância diz respeito à intermediação da compra de vestuário esportivo para os militares do 1º RCC. As peças, como abrigos, camisas polo e camisetas, foram adquiridas com recursos provenientes das contribuições voluntárias e foram emitidas em nota fiscal em nome da própria unidade. O coronel então comandante alegou que se tratava de uma compra conjunta para baratear custos, e que a escolha do fornecedor considerou a boa qualidade do produto e o fato de o responsável ser um militar veterano.
Apesar disso, o Ministério Público questionou a legalidade da intermediação da OM nesse processo, destacando que tal prática não condiz com as finalidades institucionais das Forças Armadas e carece de amparo legal.
O arquivamento do caso e envio ao MPF (civil)
Ao final da investigação, tanto o Ministério Público Militar, apesar de destacar as irregularidades com veemência, que “vilipendia os princípios da Administração Pública, especialmente os da legalidade, da transparência e da moralidade”, considerou que não havia elementos suficientes para caracterizar crime penal militar, citando a dificuldade de comprovação do dolo e a informalidade das operações como fatores impeditivos para o oferecimento de denúncia.

O caso foi remetido ao Ministério Público Federal (civil), que apesar de admitir que foram condutas tecnicamente irregulares e do MPM ter vaticinado que a Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal nº 8.429/92) dispõe que constitui ato de improbidade administrativa, que causa prejuízo ao erário, a celebração de parcerias da administração pública com entidades privadas sem a observância das formalidades legais, também optou pelo arquivamento. O órgão interpretou a realização de festas e eventos como necessárias demandas da unidade militar e as irregularidades como fruto de um contexto de limitações e desafios enfrentados na gestão da unidade militar.

“… apesar de tecnicamente irregular, não configurou ato de improbidade administrativa… A decisão de dispensar certas formalidades foi motivada pela necessidade de atender às demandas da unidade militar, dentro das limitações e desafios enfrentados na gestão da unidade militar. Portanto, não se evidencia má-fé ou dolo … decisão deve ser interpretada no contexto das dificuldades enfrentadas na gestão, não configurando conduta ímproba.”
Em seu relatório final, o MPF reconheceu que a gestão estava fora dos padrões legais. Ainda assim, a conclusão foi de que o episódio evidencia uma prática estrutural das Forças Armadas que merece atenção por parte das instâncias responsáveis, sobretudo quanto ao uso de recursos públicos, materiais e humanos em atividades que não integram a missão constitucional das Forças Armadas.