A reestruturação da carreira feita em 2019 não afetou somente a vida financeira de milhares de militares na ativa ou na reserva. O novo diploma legal, em vigor desde 2020, causou impactos inclusive na vida particular dos cidadãos e cidadãs que venham em algum momento a ingressar na carreira militar.
Eis o que foi incluído no Estatuto dos Militares pela Lei nº 13.954, de 2019:
“Art. 144-A. Não ter filhos ou dependentes e não ser casado ou haver constituído união estável, por incompatibilidade com o regime exigido para formação ou graduação, constituem condições essenciais para ingresso e permanência nos órgãos de formação ou graduação de oficiais e de praças que os mantenham em regime de internato, de dedicação exclusiva e de disponibilidade permanente peculiar à carreira militar.”
O Ministério Público Federal (MPF) emitiu parecer em que aponta inconstitucionalidade do art. 144-A do Estatuto dos Militares (Lei 6.880/1980), que proíbe a participação de pessoas casadas, em união estável ou com filhos em cursos de formação nas Forças Armadas.
O parecer, subscrito pelo procurador regional da República Wellington Cabral Saraiva, integra a arguição de inconstitucionalidade cível a ser julgada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) na apelação cível 0802375-47.2021.4.05.8400/RN.
De acordo com o Procurador, “não há evidência concreta, mas apenas alegações desprovidas de base factual, de que a inexistência de filhos e de casamento ou união estável seja imprescindível para a carreira militar, mesmo em seu estágio inicial de formação”.
Ele reforça o seu argumento ao apontar que “diversas outras profissões não militares impõem afastamentos longos da família, e as forças armadas de países muito mais poderosos militarmente do que o Brasil, como os EUA e a França, não impõem a restrição da lei brasileira, o que mostra a falta de razoabilidade e de proporcionalidade da medida”.
A previsão é de que o Pleno do TRF5 julgue a constitucionalidade da norma em cerca de duas semanas. Depois disso, o processo voltará para a 3ª Turma julgar o mérito da apelação, conforme o procedimento previsto no Código de Processo Civil.
RETROCESSO SECULAR
No parecer, o entendimento do Ministério Público Federal é de que não cabe ao Poder Legislativo decidir como as pessoas devem organizar e planejar sua vida.
“O tratamento desigualador previsto no art. 144-A do Estatuto dos Militares é desproporcional e irrazoável”, argumenta o procurador regional da República, pois cria restrições à autonomia da vontade e ao direito de acesso a cargos públicos, além de violar os princípios da proporcionalidade, da dignidade humana, da isonomia e da razoabilidade, previstos na Constituição da República, sem haver necessidade para a limitação que a lei criou.
A nova lei militar é mais um dos anacronismos promulgados pelos nossos legisladores desatentos. Indo na contramão da ordem constitucional escrita em 1988, o art. 144-A do Estatuto dos Militares, ao ignorar o espírito do tempo, parece querer quebrar a hierarquia básica entre as leis, pois o que faz na vida prática dos que lhe serão submissos é retroceder seus direitos e sua dignidade humana mais de 80 anos no tempo.
Isso é provado pelo DECRETO-LEI Nº 3.084, DE 1º DE MARÇO DE 1941, o Estatuto dos Militares de então. Eis como os generais (um almirante e um general são coautores do estatuto) “legislavam” sobre a vida particular dos militares:
Art. 110. O militar, da ativa ou da reserva convocado, só pode contrair casamento mediante licença da autoridade superior.
Parágrafo único. São autoridades competentes para a concessão da licença:
a) Aos Oficiais do Exército, o Comandante da Região ou autoridade equivalente, sob cuja jurisdição servem; da Marinha, quando no Rio de Janeiro, o Diretor do Pessoal, e, quando fora do Rio do Janeiro, o Chefe da Força Naval sob cujas ordens servem ou, na faita deste, o Diretor do Pessoal;
b) Aos sub-tenentes, sub-oficiais e sargentos e aos cabos da Armada: o Comandante da unidade ou chefe de repartição ou estabelecimento, sob cujas ordens servem ou a que são subordinados.