Em um cenário geopolítico cada vez mais instável, a Europa está redefinindo sua estratégia de segurança e defesa nuclear. A guerra na Ucrânia e a possibilidade de Donald Trump retornar à presidência dos Estados Unidos estão forçando os países europeus a reconsiderarem sua dependência histórica do guarda-chuva nuclear americano e a buscarem alternativas para garantir sua própria segurança, conforme reportado pelo Portal Tela .
França se posiciona como potência nuclear europeia
O presidente francês Emmanuel Macron deu um passo ousado ao propor formalmente estender a proteção do arsenal nuclear francês a outros países europeus. “Precisamos abrir o debate estratégico sobre a proteção da Europa pelas armas nucleares francesas”, declarou Macron no início de março , em uma iniciativa que ganhou atenção imediata de potências regionais como Alemanha, Polônia, Dinamarca e Lituânia.
A proposta francesa não é inédita. Segundo o jornal O Globo , desde Charles de Gaulle, que iniciou o programa nuclear francês após a crise de Suez em 1956, vários presidentes franceses tentaram, sem sucesso, avançar a ideia de um “guarda-chuva nuclear europeu” liderado pela França. François Mitterrand, em 1994, falou sobre “interesses vitais comuns”; Jacques Chirac, em 2006, defendeu uma “dissuasão concertada”; Nicolas Sarkozy, em 2008, propôs “um diálogo aberto sobre o papel da dissuasão”; e François Hollande, em 2015, citou o poderio nuclear ao falar dos riscos de uma agressão à Europa.
O que mudou agora é o contexto geopolítico e o interesse real de outros países europeus. “Macron já havia feito uma oferta semelhante em fevereiro de 2020. O que mudou agora é o interesse de Alemanha, Polônia e outros países, e se eles ainda acreditam que a oferta francesa aumenta sua segurança nacional após discussões com Macron”, afirmou ao jornal O Globo Xiaodon Liang, analista de políticas de armas nucleares e desarmamento na Associação para o Controle de Armas.
Arsenal francês: capacidades e limitações
A França possui atualmente 290 ogivas nucleares, das quais a maioria — 240 — está a bordo de submarinos, e as demais são destinadas para uso em aviões de combate, de acordo com dados publicados pelo O Globo . Este arsenal, embora significativo, representa apenas uma fração do poderio russo, estimado em 5.580 ogivas, sendo 1.549 prontas para uso imediato.
Um hipotético guarda-chuva nuclear europeu poderia receber o apoio do Reino Unido, que possui 225 ogivas operacionais baseadas em quatro submarinos. Porém, mesmo que britânicos e franceses unissem seus arsenais, o número total de ogivas não chegaria a 10% do arsenal russo.
Além disso, há limitações práticas significativas. As armas nucleares francesas só podem ser lançadas de aeronaves ou submarinos franceses, e a decisão final sobre um ataque, como tem reiterado Macron, jamais deixaria de ser de Paris. O Portal Tela reporta que o presidente da Comissão de Assuntos Estrangeiros e
Defesa do Senado francês, Cédric Perrin, sugeriu que os aliados interessados em expandir a dissuasão nuclear francesa contribuíssem para os custos de manutenção do arsenal, que ultrapassaram €5,8 bilhões em 2024.
Reações internacionais à proposta francesa
A reação do Kremlin foi rápida e carregada de simbolismo histórico. Segundo o O Globo , o presidente russo Vladimir Putin afirmou que “ainda há pessoas que querem voltar aos tempos de Napoleão, esquecendo como tudo terminou”, referindo-se ao imperador francês que sofreu uma dura derrota durante a
Campanha da Rússia. Em resposta, Putin foi chamado de “imperialista” por Macron.
A Polônia, um dos países mais vulneráveis devido à sua posição geográfica, disse estar disposta a conversar sobre o “guarda-chuva nuclear” francês, mas sem abrir mão da proteção dos EUA. O Portal Tela informa que o presidente polonês, Donald Tusk, declarou que a Polônia estaria mais segura com seu próprio arsenal nuclear, embora reconheça a complexidade e a necessidade de consenso para tal empreitada.
Os Estados Unidos, por sua vez, não deram qualquer sinal de que pretendam remover suas armas nucleares da Europa. O O Globo reporta que, no mês passado, a Federação de Cientistas Americanos publicou um relatório apontando que Washington pode posicionar armas nucleares no Reino Unido após quase duas décadas, um movimento iniciado ainda no governo de Joe Biden e ligado à guerra na Ucrânia.
Abandono do Tratado de Ottawa: nova estratégia defensiva
Paralelamente à discussão nuclear, todos os países da União Europeia que fazem fronteira com a Rússia estão acelerando seus planos de retirada do Tratado de Ottawa, que proíbe o uso de minas antipessoal. De acordo com o Portal Tela , Polônia, Lituânia, Letônia, Estônia e Finlândia anunciaram sua retirada do tratado neste ano.
A decisão está diretamente ligada ao projeto polonês “Tarcza Wschód” (Escudo do Leste), conforme reportado pela CNN Portugal , uma vasta rede de barreiras defensivas que está sendo construída ao longo de 800 quilômetros pela Polônia na fronteira com a Bielorrússia e com o território do exclave russo de Kaliningrado. O Secretário de Estado da Defesa polaco, Pawel Bejda, revelou um plano para impulsionar a produção de minas no país, sublinhando que o exército polaco precisa de “várias centenas de milhares, talvez até um milhão” de unidades.
“É uma decisão justificável do ponto de vista militar. Estas armas são extremamente eficazes para travar colunas de inimigos que avançam no território. A decisão polaca serve para transmitir uma mensagem a Moscovo, sublinhando que, em caso de guerra, estas minas vão mesmo ser utilizadas contra o exército russo”, afirmou à CNN Portugal o tenente-general Marco Serronha.
As minas antipessoal modernas são tecnologicamente muito diferentes das utilizadas no passado, segundo a CNN Portugal . Ao contrário das minas anticarro, que têm grandes dimensões, as minas antipessoal são bastante pequenas e são feitas de plástico ou de materiais compostos leves, o que dificulta a sua deteção por detetores de metal. As minas modernas podem ser equipadas com sensores avançados que permitem a detonação ao detetar vibração, proximidade ou som, e muitas possuem mecanismos de autodestruição após um período definido.
Tensões nucleares em alta
Mais de três anos de invasão russa na Ucrânia elevaram as tensões nucleares na Europa a níveis não vistos desde a Guerra Fria. O Portal Tela reporta que a Rússia reformulou recentemente sua doutrina nuclear para permitir respostas nucleares a ataques convencionais, transferiu parte de seu arsenal para Belarus e ameaçou usar armas nucleares táticas na Ucrânia.
De acordo com o Observador , a nova doutrina nuclear russa possibilita resposta nuclear a ataques massivos da Ucrânia com ajuda dos aliados, uma clara mensagem para os países da OTAN que fornecem armamentos a Kiev. O O Globo informa que, embora a Rússia tenha afirmado que não retomará os testes nucleares explosivos desde que Washington também não o faça, a revisão de sua doutrina nuclear é vista como um sinal preocupante.
Preparação civil para emergências
Em resposta ao aumento das tensões, vários países europeus estão intensificando suas medidas de preparação civil. A Comissão Europeia orientou todos os cidadãos a estocar alimentos suficientes e outros suprimentos essenciais para sustentá-los por pelo menos 72 horas em caso de crise. Em orientação divulgada em março, a comissão enfatizou a necessidade de a Europa fomentar uma cultura de “preparação” e “resiliência.”
Segundo o Observador , a França anunciou planos para distribuir um manual sobre “como sobreviver em tempos de crise” à sua população. A Suécia já emitiu um guia de sobrevivência intitulado “Se Vier Crise ou Guerra”, distribuído a milhões de residências em novembro, após ser atualizado pela primeira vez em seis anos devido ao aumento dos níveis de ameaça militar.
A revista Veja reporta que as recomendações incluem estocar água e alimentos enlatados para se manter durante 72 horas, além de rádio de pilha e fita adesiva para selar portas contra radiação. O folheto sueco instrui os cidadãos sobre como os avisos seriam emitidos em caso de guerra e onde procurar abrigo durante um ataque aéreo, incluindo porões, garagens e estações de metrô subterrâneas.
Alternativas à dependência dos EUA
A aproximação recente com os EUA, a redução do apoio militar à Ucrânia e o tratamento dispensado pela administração Trump aos aliados da OTAN levaram algumas capitais europeias a considerar alternativas à dependência do poder americano para a defesa, conforme reportado pelo Portal Tela.
“Embora os EUA continuem a reafirmar seu compromisso com a dissuasão nuclear estendida em declarações públicas, a falta de clareza quanto à sua determinação política deixou os membros da OTAN, especialmente os da Europa, questionando a futura credibilidade política da dissuasão”, disse ao Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais Doreen Horschig, pesquisadora do projeto sobre questões nucleares da instituição.
O Globo reporta que os comentários de Trump durante a campanha presidencial, quando disse que poderia encorajar Putin “a fazer o que diabo ele quisesse” com os membros europeus da OTAN caso eles não pagassem um valor “adequado”, e sua exigência de que os países da organização gastem 5% de seus PIBs com Defesa, bem acima do patamar médio atual de 2%, aumentaram a desconfiança europeia.
Custos e obstáculos de uma defesa nuclear europeia
Substituir o escudo nuclear americano por um francês – ou franco-britânico – seria um processo complexo e custoso. De acordo com o O Globo , ao contrário dos franceses, os britânicos reconhecem que seu poderio nuclear depende dos EUA. Os mísseis Trident são fabricados nos Estados Unidos, a manutenção é feita em conjunto pelos dois países, e a maior parte dos testes nucleares realizados pelo Reino Unido ocorreu no deserto americano de Nevada.
O ex-embaixador britânico em Washington, David Manning, declarou ao O Globo no começo do mês: “Parece que temos um presidente que está disposto a intimidar e persuadir as forças ucranianas a fazerem coisas que não consideram do seu interesse. Isso não é um contratempo no relacionamento, algo fundamental está acontecendo, e precisamos olhar muito de perto o que fazemos agora sobre a Europa”. Manning não descartou o encerramento do acordo de cooperação nuclear entre EUA e Reino Unido, por ordem de Trump.
O futuro da segurança europeia
A Europa encontra-se em um momento decisivo para sua segurança. A guerra na Ucrânia demonstrou que conflitos convencionais de larga escala ainda são possíveis no continente, e a incerteza sobre o compromisso americano com a defesa europeia está forçando uma reavaliação profunda das políticas de segurança.
A proposta francesa de estender seu guarda-chuva nuclear, o abandono do Tratado de Ottawa por países fronteiriços com a Rússia e as medidas de preparação civil são sinais claros de que a Europa está buscando maior autonomia estratégica. No entanto, os desafios são enormes, desde as limitações técnicas e financeiras até as complexas questões políticas envolvidas na criação de uma defesa nuclear verdadeiramente europeia.
Como observou o analista Xiaodon Liang ao O Globo : “A Europa nunca estará verdadeiramente segura vivendo sob a constante ameaça de armas nucleares”. Mas, diante das crescentes tensões com a Rússia e das incertezas sobre o compromisso americano, os líderes europeus parecem determinados a encontrar novas formas de garantir sua segurança, mesmo que isso signifique romper com décadas de políticas estabelecidas.
Referências
- Portal Tela. “Europa reavalia sua segurança nuclear em meio a tensões com a Rússia e incertezas dos EUA”. 17 de abril de 2025.
- O Globo. “Defendida por Macron, ideia de ‘guarda-chuva nuclear’ europeu esbarra em dependência dos EUA”. 24 de março de 2025.
- CNN Portugal. “Como o que ‘existe entre as duas Coreias’. Países da NATO querem criar uma barreira com uma nova arma nas fronteiras com a Rússia”. 21 de março de 2025.
- Observador. “Ministro da Economia francês anuncia 1,7 mil milhões de euros para defesa”. 20 de março de 2025.
- Observador. “Armamento Nuclear”. 4 de abril de 2025.
- O Globo. “Agência da ONU alerta contra retomada de testes nucleares”. 13 de abril de 2025.
- Veja. “Você saberia sobreviver a emergência catastrófica”. 27 de março de 2025.
- Observador. “França vai distribuir manual sobre ‘como sobreviver em tempos de crise'”. 19 de março de 2025.