Republicado a pedido: Forças Armadas e a “caça às bruxas!” – “prova obtida nas redes sociais … sem que haja autorização judicial para monitoramento das redes sociais do cidadão, constitui prova ILEGAL.”
Primeiro artigo da série que tratará das sindicâncias, inquirições e punições contra militares que fizeram comentários nas redes sociais, em sites e até em audiências públicas promovidas pelo parlamento.
Na mesma semana em que o PL1645/2019 foi aprovado no SENADO começaram a chegar denúncias de que as forças armadas estariam fazendo uma minuciosa devassa nas redes sociais e campos de comentários de sites que tratam de assuntos militares, principalmente na Revista Sociedade Militar, onde foram publicados vários artigos sobre a reestruturação.
A disputa na câmara foi intensa e atípica. Graduados insatisfeitos alegam que a luta foi desigual na medida em que a defesa teria usado de toda sua estrutura para aprovar a proposta. A atuação de militares da ativa no processo político por ordem do próprio ministério da defesa – por exemplo – foi vista com espanto por militares da reserva e membros da imprensa. A assessoria militar do Exército no Congresso Nacional atuou intensamente tentando convencer parlamentares a votar com o governo e o Ministério da Defesa chegou a gravar vídeos com oficiais e praças da ativa que falavam bem do projeto em tramitação.
Outro ponto extremamente polêmico foi a confissão por parte do relator, deputado Vinícius Carvalho, de que teria sido escolhido pelos próprios comandantes. Alguns dias após a denúncia feita pela Revista Sociedade Militar o deputado desmentiu a própria fala. Comentários destemperados feitos por generais-deputados também acirraram os ânimos nos corredores do congresso e nas próprias redes sociais.
Buscando informações mais detalhadas sobre a legalidade de se inquirir cidadãos que usaram de seu direito de discordar de um projeto de lei, entramos em contato com Adão farias, advogado e militar da reserva, um dos principais protagonistas do embate entre graduados e comandos das forças armadas na disputa ocorrida no congresso nacional por modificações no PL1645. O mesmo aceitou responder telefone e por escrito a algumas perguntas sobre essa verdadeira caça às bruxas que estaria ocorrendo contra os militares que durante o processo político teriam feito comentários/postagens recebidas com desagrado pela cúpula das Forças Armadas.
Entrevista com o Dr. Adão Farias, advogado e militar na reserva
Doutor Adão, antes da primeira pergunta colocamos o seguinte: Pelo que sabemos, a lei assegura direitos aos militares da reserva de opinarem sobre qualquer assunto, independente de restrições existentes em regulamentos disciplinares, excluindo-se aí, é claro, assuntos restritos das Forças Armadas. Lembramos, ainda, que um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional – obviamente – não é assunto restrito.
Revista Sociedade Militar – O senhor, que discursou em várias audiências públicas, foi intimado para depor em algum quartel ou conhece pessoas que estão nessa situação?
Adão Farias – Eu não, mas conheço vários militares da reserva que foram intimados. Primeiramente quero dizer que tenho recebido muitas indagações sobre a legalidade de militares inativos estarem sendo chamados nos quartéis para responderem Inquérito Policial Militar (IPM) porque se manifestaram nas redes sociais sobre o PL 1645/2019, o qual tratava da reforma da previdência e da reestruturação da carreira dos militares. O PL tramitava no Congresso Nacional e já se transformou em Lei, a Lei Federal nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019.
Gostaria de esclarecer que os militares inativos são separados em dois grupos, sendo os da reserva e os reformados.
Revista Sociedade Militar – As Forças Armadas estariam agindo de maneira arbitraria ao intimar para depor um militar inativo e até em querer enquadrar disciplinarmente militares que opinaram sobre um projeto de lei ou fizeram comentários em notícias que versavam sobre um processo político – obviamente assunto público – em andamento?
Adão Farias – No que tange aos militares da reserva é preciso esclarecer que a Súmula 55, do STF, diz que essa categoria está sujeita à pena disciplinar. No entanto, a Lei Federal nº 7.524, de 17 de julho de 1986, assegura no seu art. 1º que é facultado ao militar inativo, independentemente das disposições constantes dos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas, opinar livremente sobre assunto político, e externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo à matéria pertinente ao interesse público. E mais, no parágrafo único, do art. 1º, da lei em comento, reza que essa lei não se aplica aos assuntos de natureza militar de caráter sigiloso.
Portanto, o militar na reserva tem o direito de se manifestar e opinar livremente sobre qualquer assunto de seu interesse, desde que não se manifeste sobre assuntos de natureza militar sigilosa, ou seja, assuntos que envolvam segredo de Estado ou que coloque a Segurança Nacional em risco.
Revista Sociedade Militar – Uma lei aprovada em 2019 diz que instaurar procedimento investigatório administrativo em desfavor de alguém sem qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa é abuso. Esse tipo de procedimento, somado a lei que garante liberdade de opinião dos militares na reserva, poderia ser enquadrado como abuso de autoridade?
Adão Farias – Tratando especificamente sobre o fato de que alguns militares inativos (reserva/reformados) foram intimados à comparecerem aos quartéis para responderem IPM, por se manifestarem nas redes sociais sobre a reforma de previdência dos militares e reestruturação da carreira, assunto esse que estava sendo debatido dentro do Congresso Nacional, quero dizer o seguinte:
1 – Entendo, com a devida vênia, que se o motivo para a abertura de IPM tem como fundamentação as manifestações do militar nas redes sociais, sobre um projeto de lei que tramitava no Congresso, desde que esse militar não tenha cometido outro crime, tipificado em lei, a abertura de inquérito constitui ato arbitrário e ilegal, por parte daquele que determinou a abertura do IPM, e isso precisa ser coibido pelo Poder Judiciário.
2 – Ademais, qualquer prova obtida nas redes sociais, sem que haja autorização judicial, para o monitoramento das redes sociais do cidadão, constitui prova ILEGAL, porque fere a Lei Federal nº 12.965, de 23 de abril de 2014, o chamado Marco Civil da Internet, o qual prevê a inviolabilidade e o sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei. Assim sendo, qualquer prova obtida de forma ilícita torna o processo (IPM) nulo.
3 – Assim sendo, o militar inativo que for chamado a uma organização militar para responder IPM, com base em suas manifestações nas redes sociais, sobre o PL 1645/2019 deve requerer, por escrito, cópia da portaria que determinou a abertura do IPM e cópia de todos os documentos que compõem o IPM. O militar deve comparecer acompanhado de um advogado e ser instruído de que ele tem o direito constitucional de permanecer calado e dizer que só vai se manifestar em juízo.
O militar inativo que estiver respondendo IPM, no qual estão lhe imputando algum crime, com base em suas manifestações sobre um projeto de lei que tramitava no Congresso Nacional, pode representar contra a autoridade inquiridora. A representação pode ser feita por meio de uma queixa crime, no Ministério Público Militar, contra o signatário da portaria que determinou a abertura do IPM. O Código Penal Militar, no seu artigo 343, trata do crime de denunciação caluniosa, que reza o seguinte:
Art. 343. Dar causa à instauração de inquérito policial ou processo judicial militar contra alguém, imputando-lhe crime sujeito à jurisdição militar, de que o sabe inocente:
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
No mesmo diapasão, o militar inativo que for prejudicado,se sentir ofendido, intimidado ou constrangido, com a abertura do IPM,também poderá ofertar uma queixa crime, ao Ministério Público Militar, com base na lei de abuso de autoridade, a Lei Federal nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, que dita o seguinte:
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
- 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
- 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.
…………………..
Art. 2º É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: I – servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;
Revista Sociedade Militar – Lembrando colocação de Raquel Dodge: “A menor restrição ao exercício da liberdade de expressão e de manifestação do pensamento aos militares inativos reforça a possibilidade de redução desses direitos para os militares ativos. É que o militar inativo está afastado do convívio castrense diário e não mais possui ascendência funcional capaz de oferecer risco à disciplina e a hierarquia, com consequente caracterização de insubordinação. Além disso, a divulgação de opinião do militar da reserva ou reformado não tem a mesma aptidão que a de um militar da ativa para trazer descrédito à instituição militar”
Dito isso, também indagamos: O Código Penal Militar está em processo de atualização e o relator na câmara dos deputados é um general. Não seria a oportunidade para que a norma fosse modernizada, isentando os militares da reserva, que não tem qualquer precedência funcional, salvo quando convocados, de estarem legalmente sujeitos sanções disciplinares pelos comandos das forças armadas, principalmente no que diz respeito aos chamados “delitos” de opinião?
Adão Farias – Quero dizer que estamos criando aqui em Brasília uma comissão de juristas para, no próximo ano, acompanharmos a tramitação do projeto de lei que visa modificar o Código Penal Militar. A comissão tem por escopo analisar eventuais discrepâncias na futura legislação e, assim, evitar uma legislação arbitraria que tente intimidar os militares ao exercício pleno da cidadania. A Constituição da República não permite mais eventuais leis arcaicas ou retrogradas que venham afrontar os Direitos e Garantias Fundamentais do cidadão.
Adão Farias é Advogado – OAB/DF 20.126, especializado em legislação militar