“Se há algum “ismo” grassando em suas fileiras, ele brotou e escorreu das mentes de generais, almirantes e brigadeiros pela escadinha da hierarquia até chegar ao soldado da esquina…”
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Artigo de Opinião – Comentários sobre a ilusória veia democrática da cúpula armada
Em artigo publicado pelo Estadão, intitulado “O respeito dos militares pela democracia”, um dos jornais de maior prestígio do Brasil prestou-se a fazer apologia dos poderosos da caserna, tentando dourar uma pílula amarga que a sociedade brasileira está tendo que engolir novamente. Depois dos vinte anos de ditadura, que passaram em brancas nuvens; depois da Comissão da Verdade, que resultou em palanque para fã de torturador; agora é a vez de assistirmos à construção e legitimação dessa aberração que muitos chamam de “partido militar”.
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Clique aqui para entrarDe cara, uma distinção duvidosa. O artigo pretende descolar “bolsonarismo” de “militares”. Esta é a primeira ponta solta. Não sabemos se existe mesmo esse “bolsonarismo”, exceto como apêndice caricato de uma subcultura militarizada. Não houve aproximação entre um e outro, houve uma projeção dessa subcultura no plano sociopolítico, o que resultou nesse “bolsonarismo”. Nunca é demais lembrar que Bolsonaro não foi militar, ele é militar, e essa é uma condição que não se apaga com o tempo.
Os supostos “danos causados” por Jair Bolsonaro às Forças Armadas são retórica vitimista. Para a maioria dos militares ele não causou nenhum prejuízo às suas instituições. As opiniões dele são compartilhadas por quase todos os militares, de cima a baixo. Salvo raríssimas exceções – que previsivelmente são perseguidas ou preteridas na vida militar, dentro e fora da farda – o que ele defendeu durante toda a vida e durante seu governo constitui o senso comum generalizado da caserna. Chute? Não. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgou resultado parcial de uma pesquisa em que foi registrado que 40% dos agentes de segurança pública concordam totalmente “que as pautas dos invasores [das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro] era legítima”.
O artigo do Estadão se apoia na velha máxima “não jogue fora o bebê com a água” para isentar os militares. Sim, é verdade. É injusto julgar o barril todo por algumas maçãs podres. Pero… há uma particularidade na vida militar que não se leva em conta nessa apologia em forma de artigo: a hierarquia. Militares, é certo, são centenas de milhares, na ativa e na reserva, mas só há uma fração desse corpo à qual se pode apor o adjetivo “poucos” sem medo de cometer injustiça: generais, almirantes e brigadeiros. Justamente a fração que, por estar no topo da pirâmide hierárquica, enfeixa nas mãos, não só a capacidade de exercer liderança salutar – o que seria inaudito! – como infelizmente também o poder de corromper pelo mau exemplo.
Em 2014, o general Villas Bôas começou a cruzar legalmente o limite entre o quartel e a política. Trata-se da famosa postagem no Twitter do então comandante do Exército antes do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo o militar, o tuíte teria sido “um alerta”. A partir dali, as desventuras envolvendo quase que exclusivamente as altas patentes se sucederam em série. Naquele mesmo ano, Jair Bolsonaro fez um ensaio de campanha na AMAN (cujo comandante na época era o atual comandante do Exército, general Tomás Miné). O resto foi história. Na hierarquia militar os atos superiores descem em efeito cascata. O exemplo, tanto o bom, quanto o mau, é seguido à risca. São poucas maçãs, é certo, mas todas têm nome e CPF.
Quanto à pretensa vocação democrática dos militares, é didático pôr em perspectiva o exemplo da reforma previdenciária. Foi a única das reformas prometidas pelo governo passado que saiu do papel. Articulada com o Congresso pelo general/ministro Fernando Azevedo, a reestruturação da carreira militar foi uma amostra do pouco apreço dos generais pela democracia e seus ritos. Um exemplo desse apreço, que poucos conhecem, foi o deputado Vinícius de Carvalho admitir em sessão pública ter sido “escolhido pelo alto comando das Forças Armadas” para ser o relator da reforma.
Dizem que o projeto de lei para a reforma previdenciária militar nasceu na caserna, saiu das mãos dos generais. Também reza a lenda que desde 2016 ele ficou engavetado, esperando pela oportunidade ideal para ser trazido ao sol. A chegada de Bolsonaro ao poder, um político alinhado com o ideário autoritário e elitista dos generais, foi a chance de emplacar uma lei igualmente elitista e contra o espírito da Constituição de 1988, que possivelmente não passaria nos governos anteriores. Tanto assim que a reforma só virou lei mediante promessa de Bolsonaro ao Senado de que as “falhas” seriam corrigidas em 2020. Ele, claro, não cumpriu a palavra.
Quais foram as “falhas” da reforma? A reestruturação da carreira privilegiou as elites das Forças, e de quebra acachapou os salários dos militares mais pobres, sem falar que acertou em cheio o grande fetiche de qualquer economista: as pensionistas. A reforma conseguiu algo quase tão eficiente quanto erradicar as pensões (pagas voluntariamente pelo instituidor durante toda sua vida, ao contrário do que muitos dizem, não é um privilégio!), conseguiu que o congresso aprovasse a bitributação das pensionistas mais pobres, enquanto as mais ricas tiveram compensações em cima das gratificações exclusivas dadas aos oficiais.
É verdade que não se deve julgar o todo pela parte. É verdade que as Forças Armadas têm suas maçãs podres. Mas, é falacioso no mais alto grau acusar a instituição militar de antidemocrática, de autoritária ou de qualquer outra coisa, assim como é ridículo tecer panegíricos à classe armada como se esta fosse o suprassumo do republicanismo sem olhar mais de perto suas entranhas.
As Forças Armadas não falam, não podem se defender, não podem se manifestar, exceto pelos seus oficiais generais. As Forças (sua história, suas glórias e mazelas, e os indivíduos que as compõem) não são espelho fiel dos oficiais generais. Mas, os generais, almirantes e brigadeiros, por suas falas, seus atos e suas omissões indiscutivelmente condicionam o pensamento diretor delas e de seus homens e mulheres. Se elas são democráticas ou não é porque seus generais o são ou não. Se há algum “ismo” grassando em suas fileiras, ele brotou e escorreu das mentes de generais, almirantes e brigadeiros pela escadinha da hierarquia até chegar ao soldado da esquina.
JB Reis (militar R1) – Revista Sociedade Militar
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