O sargento Luís Marcos dos Reis, que atuava sob a supervisão de Mauro Cid no Gabinete de Segurança Institucional durante o governo de Bolsonaro, foi indiciado por falsidade ideológica e peculato digital, que é a inserção de dados falsos em sistemas de informação, em um inquérito que investiga a emissão de certificados de vacinação falsos para parte da equipe do ex-presidente. A participação do sargento, segundo o relatório da Polícia Federal, foi preponderante para a obtenção dos documentos falsos e algumas questões que se colocam são:
- Qual o limite da lealdade de militares destacados para cargos junto a políticos de grande expressão, como o presidente e o vice-presidente da república?
- Militares são obrigados cumprir todas as ordens, solicitações e pedidos de seus chefes, estes estarão isentos de responsabilidade penal caso se tratem de ordens ilegais?
Não por coincidência, recentemente, o que já foi tratado pela Revista Sociedade Militar em alguns artigos, o Exército divulgou um texto esclarecendo os limites da lealdade a um superior, seja ele militar ou político. Publicado no Eblog, o artigo, que se encaixa perfeitamente no contexto atual, ressalta que a lealdade dos militares deve ser limitada pela aderência do superior às leis e aos princípios que orientam o comportamento no próprio Exército.
É frequente que militares designados para cargos comissionados ou destacados para funções externas aos quartéis, como os que servem no GSI, ajudância de ordens e cargos em estado maior de oficiais generais, desenvolvam um forte apego a essas posições. Eles se esforçam ao máximo para não serem afastados, atraídos não só pela chance de evitar a rigorosa rotina dos quartéis, mas também pelo aumento salarial e pelas diárias para deslocamento e alimentação que acompanham essas funções, especialmente quando envolvem acompanhar o Presidente da República em suas viagens.
Tal situação, o que infelizmente é comum, pode levar alguns a se tornarem excessivamente subservientes, atuando como mensageiros ou “office boys”, executando tarefas que podem variar desde pagar uma conta pessoal para o coronel chefe do setor até ações mais complexas e questionáveis, como monitorar opositores políticos, adquirir materiais de construção para reformas em propriedades particulares ou forjar certificados de vacinação em nome de terceiros.
Joga na minha conta
No relatório da Polícia Federal que indicia Bolsonaro por conta da emissão de falsos certificados de vacina percebe-se uma transcrição de conversa entre Mauro Cid, tenente coronel do Exército e o sargento Luis Marcos Reis, lotado no GSI. Em certo momento o oficial, ao solicitar que o sargento agisse de forma ilícita, diz a frase “joga na minha conta”, que no meio militar significa que ele responderia pelas conseqüências e – mais ainda – que como ajudante de ordens do presidente da república ele tinha muita influência e poderia neutralizar qualquer consequência de ações ilícitas como aquela.
Outra questão importante surge: a data era 22 de novembro, o sargento não parou pra pensar que a influência de Mauro Cid estaria se esvaindo com a derrota de Bolsonaro nas Urnas ou, ao contrário disso, o militar tinha fé de que a viagem de Bolsonaro, para a qual o cartão de vacinação era necessário, era parte de um plano param manté-lo no poder?
O tenente coronel Mauro Cid não colocou “na sua conta”. Ao contrário, o oficial fez uma delação premiada, que pode livrá-lo de uma pena máxima e ate´da exclusão do Exército. Bolsonaro em comunicado oficial feito por seus representantes já negou que determinou a confecção de cartões de vacinação, disse que não precisava dos mesmos para ingressar nos EUA. O sargento, por sua vez, agora está diante de uma possivel condenação de até 15 anos de prisão. Ele vai responder por por falsidade ideológica (1 a 3 anos) e peculato (2 a 12 anos).
O sargento atualmente já está na reserva remunerada, recebe um salário fixo de cerca de 7 mil reais. No GSI recebia gratificação extra, a RMA 000.5, algo em torno de R$ 1.260,00 e após ser transferido pelo general Freire Gomes para o Ministério do Turismo em 28 de junho de 2022, passou a receber DAS 101.4, com remuneração em torno de 6.4 mil reais, onde assumiu a função de Coordenador-geral de Mobilidade e Conectividade Turística. Se for condenado a mais de dois anos o sargento, mesmo estando na reserva, será automaticamente excluído das Forças Armadas.
Lealdade e Disciplina
Um artigo no Eblog como título Lealdade e Disciplina, de autoria do coronel da reserva Marcelo Oliveira Lopes Serrano, enfatiza que, mesmo fundamentados em princípios de lealdade ou camaradagem, os militares não estão obrigados a seguir ordens que sejam ilegais.
Pergunta o coronel: A que então temos o dever de lealdade em todas as circunstâncias? Ele mesmo responde, dizendo que “Indubitavelmente, aos princípios basilares do Exército, aos valores que garantem a pureza de seus propósitos, que alimentam o espírito militar e asseguram que a Força permaneça sempre à altura de sua missão perante a Pátria … Essa conotação de lealdade é a mais digna, por vincular-se a princípios imutáveis e não a pessoas, passíveis que são a erros de julgamento e a flutuações de estado de espírito e opiniões…”
O militar ensina ainda que a lealdade só é realmente adequada se o chefe agir de acordo com a lei: “Afirmar que o subordinado deve ser leal a seu chefe nada acrescenta à obrigação dele de manifestar disciplina, considerando-se evidentemente que essa lealdade só seja devida na medida em que o chefe agir segundo os ditames da lei e dos valores fundamentais da Força. A ideia de lealdade orientada a pessoas é, portanto, desnecessária.” e
No meio da política partidária
Oliveira foi certeiro e bastanet didático em seu artigo, que deve ser lido por todos os militares que pretendem trabalhar como ajudantes de oedens ou assessores de autoridades. O coronel chega a mencionar que não se pode servir a dois senhores e que nos relacionamentos com autoridades políticas a coisa passa por apadrinhamento.
“A essa altura da argumentação, pode-se questionar: por que não ser leal a valores e também a pessoas? A pergunta é lícita e a resposta é fácil. Porque não se pode servir a dois senhores. Se a lealdade, como sentimento de compromisso, for dirigida a objetos diferentes, quando houver inconformidade entre estes, ter-se-á de optar fatalmente pela lealdade a um deles, resultando em deslealdade com o outro… Esses relacionamentos de apadrinhamento e lealdade, semelhantes aos que vigoram plenamente no meio da política partidária, estão praticamente superados no Exército em função de sua despolitização e dos critérios profissionais e impessoais que foram implantados…”, diz o oficial
Robson Augusto – Revista Sociedade Militar