A Costa Rica, frequentemente celebrada como única na América Latina por não possuir forças armadas, construiu uma imagem de paraíso pacífico que agora enfrenta questionamentos. Por trás da narrativa de abolição militar em 1948 existe uma verdade mais complexa: a decisão foi menos sobre pacifismo e mais sobre estratégia política, enquanto o país mantém, na prática, estruturas com funções militares disfarçadas.
Uma ilha de paz com a maior expectativa de vida da região
“Esta nação se defende sem forças armadas por meio da Fuerza Pública, que é responsável pela segurança e ordem interna. Além disso, mantém uma política de neutralidade permanente, apoiada por tratados internacionais que promovem a paz”, destaca o canal26.com.
De acordo com a mesma fonte, “é um dos países com maior expectativa de vida do mundo, com média de mais de 80 anos, o que comprova que alcançou um equilíbrio perfeito entre qualidade do sistema de saúde, acesso à educação e alimentação saudável”.

Esse êxito é particularmente notável nas chamadas “zonas azuis”, áreas rurais “onde a longevidade da população é notavelmente alta, e estudos sugerem que fatores como uma vida tranquila, senso de comunidade e atividade física diária contribuem para seu bem-estar”.
A verdadeira história por trás da abolição militar
A narrativa oficial celebra o ato como um marco pacifista, mas a realidade histórica sugere outros motivos. Segundo a Americas Quarterly, “um motivo-chave não foi um princípio pacifista elevado, mas sim tirar vantagem de um exército enfraquecido para eliminá-lo como um potencial rival político.”
“O início do fim das forças armadas da Costa Rica pode ser rastreado até um golpe de estado de 1917 pelo General Brigadeiro Federico Tinoco”, continua o artigo. Após esse período, “o consenso político resultante entre a elite governante foi deixar o exército de lado e fortalecer o controle civil sobre os militares.”

Entre 1940 e 1948, “o país experimentou intensa polarização política” que culminou quando o presidente perdeu a reeleição em fevereiro de 1948, mas “fez o Congresso anular o resultado — momento em que um grupo de jovens intelectuais, apoiados por um setor da elite governante, formaram um exército rebelde”.
Os dividendos sociais e econômicos da decisão
O El País revela os impactos econômicos surpreendentes: “Os índices de bem-estar que mantêm a Costa Rica acima da média latino-americana podem ser explicados em parte pelo crescimento do investimento na educação e na saúde depois da eliminação do Exército”.
“O investimento social quintuplicou — passou de 2,6% do PIB para 13,4% — nos 25 anos posteriores à decisão implantada em 1948”, aponta o estudo da Universidade da Costa Rica citado pelo jornal.
“Nesses 25 anos posteriores à desmilitarização, a Costa Rica elevou de 15% para 35% o investimento na educação e triplicou o número de escolas (2.610 em 1974). Também aumentou para 29% do PIB os recursos destinados à saúde e triplicou a porcentagem da seguridade social da população (66% em 1974)”.
O mito desvendado: uma militarização disfarçada?
O site Adital.org questiona a narrativa oficial, afirmando que “desde a abolição do Exército, há 75 anos, o histórico militar de longa data das autoridades locais revela que a ideia de uma Costa Rica ‘desmilitarizada’ é mais um mito do que uma realidade.”
Segundo esta fonte, “uma vez abolidas as forças armadas, o órgão nacional de aplicação da lei, Fuerza Pública, assumiu o seu lugar como uma instituição híbrida que, de acordo com o mesmo relatório da CIA de 1950, desempenhava ‘funções militares e policiais’.”

“Longe de representar uma ruptura com a aclamada história de não-violência do país, estes desenvolvimentos desenrolam-se no contexto de uma longa, mas amplamente ignorada, história militarizada de governança de segurança”, afirma o Adital.
A geopolítica por trás da decisão histórica
A Americas Quarterly destaca que fatores internacionais também foram cruciais: “A dinâmica política doméstica do país a partir de 1920 foi crucial na abolição das forças armadas na Costa Rica. Mas também é importante considerar outros fatores, de natureza internacional e geopolítica.”
“As elites costarriquenhas contavam com esses mecanismos [tratados internacionais] para garantir sua segurança em relação aos seus vizinhos, em particular seu vizinho do norte, a Nicarágua”, explica o artigo.
“Em vez de um exército permanente, as autoridades civis da Costa Rica criaram três corpos: uma guarda civil, uma guarda rural e uma polícia militar de curta duração que mais tarde foi subsumida na força policial.”
Países sem forças armadas no mundo
A Wikipédia lista vários países sem exércitos formais. Aqueles sem qualquer força paramilitar incluem “Domínica, Kiribati, Liechtenstein, Ilhas Marshall, Estados Federados da Micronésia, Nauru, Palau, Samoa, Ilhas Salomão e Tuvalu”.
Já outros, como a Costa Rica, “oficialmente não possuem forças armadas, mas há a presença de forças paramilitares”, incluindo “Andorra, Granada, Islândia, Maurício, Mônaco, Panamá, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Vanuatu e Vaticano”.
O legado e as lições para a região
“Qual tem sido o legado regional da redução das forças armadas da Costa Rica? Até hoje, seis estados soberanos nas Américas escolheram seguir o exemplo da Costa Rica”, observa a Americas Quarterly.
Enquanto isso, “outras partes da região têm se movido na direção oposta. No México, por exemplo, o alcance das forças armadas se expandiu ultimamente para incluir muitas funções domésticas”.
Como conclui o artigo, “mesmo que países como México e Brasil não possam aspirar a emular a Costa Rica no curto prazo, eles podem aprender com outros aspectos da história da Costa Rica — especialmente em como ela demonstra a importância do controle civil dos militares.”