Pouco se fala sobre o impacto do confinamento em alto-mar na vida dos militares da Marinha do Brasil. Um estudo, com o nome Confinamento em alto mar de militares da Marinha do Brasil e repercussões na qualidade de vida publicado na obra Estudos de Saúde, Ambiente e Trabalho (EDUFBA), lança luz sobre esse tema sensível e pouco explorado, revelando como a rotina embarcada afeta profundamente a saúde, as relações sociais e a identidade dos marinheiros — durante a carreira e, especialmente, após a transferência para a reserva remunerada.
Confinamento invisível para a sociedade: longe da costa, longe do mundo
Ao contrário do que muitos imaginam, o confinamento do militar embarcado não se resume ao espaço físico do navio. Trata-se de uma experiência organizacional total, em que todos os aspectos da vida cotidiana — trabalho, descanso, alimentação e convívio social — ocorrem sob a supervisão rígida da estrutura militar. Há horários para acordar, dormir, se alimentar, sem contar os chamados exercícios inopinados, quando os alarmes soam no meio da madrugada com a simulação de um ataque por aeronave ou submarino inimigo.
Essa rotina, administrada por regras, racionalização de água, falta de conforto, toques de apito e ausência de comunicação com o mundo externo, cria uma bolha onde o tempo passa de forma distinta. Militares relatam passar dias sem ver a luz do sol e se sentem constantemente afastados dos momentos importantes da vida familiar, como aniversários e nascimentos de filhos.
“Fiz 1178 dias navegados, mais de 17 anos embarcado em ‘apenas’ 3 navios diferentes! De valia, apenas ter conhecido lugares diferentes. No mais, não serviu pra nada! Desgaste físico e mental absurdos, distância da família e entes queridos, mas, graças a Deus e por muitas das vezes não ter me deixado levar pelo ‘sistema’, gerando-me alguns prejuízos, punições e sofrimento de algumas injustiças, consegui ir pra reserva sem trauma e sem sequelas. …“, conta um suboficial já na reserva remunerada em depoimento à Revista Sociedade Militar
“Cada dia parece uma semana… A questão da ausência da família é ruim”, afirma um dos entrevistados. “Eu estou há 23 anos confinado praticamente… Eu já acostumei… É uma vida…É muito difícil, penso que perdi muito tempo…”, diz outro.
Vida social restrita e vínculos fragilizados com a sociedade civil
O estudo qualitativo, assinado por Ana Carolina Nascimento de Albuquerque Ramos e Paulo Gilvane Lopes Pena ouviu diversos militares embarcados em diferentes navios da Marinha do Brasil, abrangendo oficiais, sargentos e cabos.
Um dado que chama atenção é que, entre os mais experientes, poucos mantêm vínculos de amizade fora do universo militar. A rotina confessional, as vilas navais e o convívio constante entre colegas transformam a instituição em um universo à parte, onde o marinheiro cria laços, referenciais e identidade social próprios.
“Hoje a minha vida social é restrita à família e aos colegas de farda”, relata um militar com mais de 20 anos de serviço.
Reserva: quando a farda pesa mesmo depois de retirada
O estudo dialoga com o conceito de “instituição total”, do sociólogo Erving Goffman. Diferente de presídios ou manicômios, o confinamento militar é aceito e valorizado pelos próprios integrantes como parte da missão de defesa da pátria. Ainda assim, seus efeitos sobre a saúde mental e emocional não devem ser negligenciados.
A pesquisa recomenda que a Marinha fortaleça os projetos de preparação para a reserva e ofereça exames periódicos e suporte psicossocial aos aposentados. A construção de um “rito de passagem” saudável entre a vida militar e civil é essencial para prevenir crises, isolamento e perda de sentido.
Se a vida embarcada é marcada por regras, sacrifícios e ausência da família, a aposentadoria chega como um segundo desafio. Longe dos navios e da estrutura militar, muitos militares sentem-se deslocados, como se tivessem perdido parte de si. O que para a sociedade civil representa descanso, para o marinheiro pode simbolizar a perda de identidade e dificuldade de adaptação a um ambiente estranho.
“Você terá dificuldades com certeza na reserva, pois precisa adquirir hábitos sociais diferentes com pessoas que jamais vão entender o confinamento dentro de um quarto 3×3”, afirma um sargento entrevistado.
A ausência de preparação adequada para essa transição agrava o problema. Apesar da existência de projetos da Marinha voltados aos militares da reserva remunerada, o estudo aponta que ainda é necessário ampliar e qualificar essas ações, com apoio psicológico e construção de novos vínculos sociais.
Militares graduados com frequência passam anos embarcados, sem conseguir servir em uma organização de terra. As únicas recompensas vez por outras são medalhas com âncoras, que simbolizam os dias passados no mar. Há reclamações em torno de falta de organização da força, que estipula um tempo mínimo de embarque para os militares, mas permite que alguns passem praticamente a vida toda em navios.
“não gosto de conviver com oficiais, eles sempre nos exploraram e consideram uma espécie de escravo, passei mais tempo do que devia embarcado mesmo tendo solicitado desembarque diversas vezes, enquanto alguns da minha profissão passaram toda a carreira no espigão (prédio administrativo da Marinha). 1000 dias de mar são 1000 dias trabalhando 24 horas, respirando óleo, dormindo pouco e comendo mal . Tinha centenas de sargentos na minha profissão, será que não dava pra revezar?” (Militar/relato na Revista Sociedade Militar).
“Eu estou há 23 anos confinado praticamente… Eu já acostumei… É uma vida…É muito difícil, penso que perdi muito tempo…”, diz um militar ouvido pelos pesquisadores
A missão foi cumprida, mas a que custo?
Ao longo da carreira, o militar embarcado serve com dedicação, disciplina e coragem. No entanto, as marcas do confinamento — invisíveis aos olhos de quem está em terra — continuam a pesar após o retorno à vida civil. A Marinha do Brasil, enquanto instituição, precisa reconhecer essa realidade e assumir o compromisso de cuidar dos seus homens e mulheres também fora do convés.
A discussão sobre saúde e qualidade de vida dos militares embarcados não é apenas técnica, mas profundamente humana. E, ao revelar as histórias por trás da farda, este estudo cumpre um papel essencial: dar voz àqueles que, mesmo em silêncio, continuam a servir.
O estudo é concluído com menções a uma espécie de prisão que recai sobre o militar que passa muito tempo nos navios: ” dotado de sua história de vida e de sua subjetividade muitas vezes encontra-se prisioneiro de um regime de efeito totalizante, sem mesmo notar. Longe da terra, da família, sua rede social mais ampla, não somente trabalha na Marinha do Brasil, porém a sua identidade se confunde com a da própria instituição”
Pra terminar, os autores mencionam a necessidade de se resguardar a saúde mental desses trabalhadores do mar e criar regras humanizadoras para atenuar o impacto sobre suas vidas: “Assim como existem normas regulamentadoras para o trabalho confinado para os empregados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
esse estudo sustenta a importância de propostas que especifiquem e legitimem a manutenção/promoção da saúde do militar embarcado nas atividades de confinamento da marinha, considerando as peculiaridades da vida
e trabalho dos “homens do mar”.
RAMOS, A.C.N.A., and PENA, P.G.L. Confinamento em alto mar de militares da Marinha do Brasil
e repercussões na qualidade de vida. In: LIMA, M.A.G., FREITAS, M.C.S., PENA, P.G.L., and
TRAD, S., orgs. Estudos de saúde, ambiente e trabalho: aspectos socioculturais [online]. Salvador:
EDUFBA, 2017, pp. 33-52. ISBN: 978-85-232-1864-5. http://doi.org/10.7476/9788523218645.0003