Uma matéria publicada pela Revista Sociedade Militar descortinou um universo pouco conhecido do público geral e bastante sensível. O texto se referia aos casos estarrecedores envolvendo condutas sexuais inapropriadas no ambiente militar. Tratava-se do Banco de Sentenças do STM, cujos relatos são chocantes e – apesar de obscenos – abertos ao público.
No início deste ano, um militar foi acusado do crime de desacato a superior, previsto no artigo 298 do Código Penal Militar (CPM). Os fatos ocorreram em março e junho de 2024, quando o cabo, escalado como motorista em atividades de saúde promovidas pela Base Aérea de Campo Grande (BACG), teria feito insinuações e comentários de natureza pessoal e sexual a uma tenente da Força Aérea brasileira. Mesmo após reiterados pedidos de sua superior para que cessasse o comportamento, o militar não se conteve.
Além de incorrer na legislação penal militar – o cabo da Aeronáutica foi denunciado pelo Ministério Público Militar (MPM) – por ter dirigido comentários de cunho sexual e inapropriado a uma oficial durante o exercício das funções militares, o militar em questão propiciou que o CNJ pudesse pôr em prática uma inovação.
Aplicação inédita do Protocolo de Gênero na Justiça Militar
A primeira instância da Justiça Militar da União (JMU), em Campo Grande (MS), sede da 9ª Auditoria Militar, proferiu a decisão, aplicando, de forma expressa, o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A decisão judicial destacou a gravidade da conduta por envolver questões de hierarquia, disciplina e dignidade no ambiente castrense.
Decisão histórica da 9ª Auditoria Militar
Em razão disso, o juiz federal da Justiça Militar determinou, ainda durante a fase de instrução, a adoção do protocolo do CNJ, que orienta os magistrados a considerarem desigualdades estruturais e práticas discriminatórias nos julgamentos que envolvam violência ou discriminação contra mulheres.
Durante a audiência de instrução e julgamento, o Conselho Permanente de Justiça — formado por quatro oficiais da Aeronáutica e presidido por um juiz federal da Justiça Militar — ouviu as partes, testemunhas e a vítima, que relatou constrangimento reiterado nas ocasiões em que esteve a serviço com o acusado.
Valorização da palavra da vítima em contexto de vulnerabilidade institucional
A aplicação do protocolo de gênero teve papel central na análise das provas e na valorização da palavra da vítima, especialmente diante do contexto institucional de vulnerabilidade enfrentado por mulheres.
A sentença destacou que a narrativa da tenente permaneceu coesa e foi corroborada por provas indiretas, evidenciando um ambiente de constrangimento, violação de autoridade e ofensa à dignidade funcional.
Segundo o Ministério Público Militar, “a conduta do réu ultrapassou os limites da convivência profissional e respeitosa, ferindo não apenas a dignidade da superior hierárquica, mas também os preceitos de hierarquia e disciplina que regem a vida militar”.
Defesa alega ‘elogios sem maldade’ e ausência de dolo no caso
A defesa, por sua vez, alegou ausência de dolo, sustentando que os comentários teriam sido mal interpretados e seriam apenas “elogios sem maldade”. Pleiteou a absolvição ou subsidiariamente a desclassificação do crime para desrespeito a superior, com aplicação de pena alternativa.
Contudo, o Conselho Permanente de Justiça entendeu que a conduta do acusado representou afronta à autoridade da oficial e à dignidade pessoal da militar, reconhecendo a configuração do crime de desacato a superior.
Coragem da vítima frente a tentativas de desqualificação dos fatos
Segundo informe publicado pelo STM, a sentença enfatizou que, no Direito Penal Militar, a palavra da vítima adquire especial relevância, sobretudo em casos ocorridos em ambientes hierarquizados, muitas vezes sem testemunhas diretas.
“Neste caso, a vítima demonstrou coragem ao denunciar e manter sua versão, mesmo diante de tentativas de desqualificação e minimização dos fatos”, destacou o juiz.
Comprometimento da dignidade e do ambiente institucional das Forças Armadas
A decisão também ressaltou que a conduta do réu comprometeu não apenas a dignidade da tenente, mas o ambiente institucional e simbólico das Forças Armadas. “É imprescindível reafirmar que o respeito à hierarquia e à dignidade de todos os militares — independentemente de gênero, patente ou função — constitui pilar inegociável da estrutura castrense.
O comportamento do réu revela não só desvio ético-funcional, mas um grave comprometimento do pacto de convivência institucional.”
O cabo foi condenado a um ano de detenção, pena que foi substituída por restrições diversas, mediante a suspensão condicional da execução da pena pelo prazo de três anos, entre elas a proibição de contato, presencial ou virtual, com a vítima; a manutenção de distância mínima de 300 metros da oficial; a proibição de ser escalado para serviço junto à vítima; e o comparecimento trimestral à Justiça Militar.
A defesa recorreu da sentença, e o caso será analisado pelo Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília.
Detalhes do assédio: abordagens verbais e convites inapropriados
Disponível publicamente no Banco de Sentenças do Superior Tribunal Militar, a Ação Penal Militar – Procedimento Ordinário Nº 7000105-46.2024.7.09.0009/MS narra como os detalhes das abordagens verbais dirigidas pelo cabo à tenente deixaram-na “estarrecida”.
Num dos episódios de assédio, pois segundo o documento foram várias, o militar mencionou que estava com dificuldades no casamento, e convidou a tenente para “ir embora com ele”. De imediato a oficial teria rechaçado o “convite” de forma ríspida e direta dizendo “não! Claro que não”, afirmando que ela estava com casamento marcado e que “amava o noivo”.
Em resposta, o denunciado proferiu mais um assédio mencionando: “ah, tenente, que pena que seu coração já tem dono”.
Texto de J.B Reis