
A recente polêmica envolvendo soldados usados como “pilastras humanas” durante saltos de equitação na Escola de Equitação do Exército trouxe à tona questionamentos sobre práticas e tradições militares. Enquanto o debate sobre segurança e hierarquia continua, poucos conhecem as fascinantes tradições e curiosidades que cercam a equitação militar brasileira, algumas delas centenárias e com profundo significado histórico.
A Polêmica que Viralizou
Imagens de uma cerimônia na Escola de Equitação do Exército geraram indignação nas redes sociais ao mostrar soldados segurando manualmente barras de salto enquanto oficiais realizavam percursos montados. A prática, considerada arriscada por especialistas, contraria normas da Confederação Brasileira de Hipismo que proíbem pessoas de segurar partes dos obstáculos.
A cena, atribuída à tradicional “Formatura das Esporas Douradas”, levantou debates sobre hierarquia, segurança e dignidade dentro das Forças Armadas. Mas o que poucos sabem é que por trás dessa polêmica existe um universo de tradições equestres militares com mais de três séculos de história no Brasil.

1. O Incrível Caso do Baio Número Seis: Uma Tradição de 134 Anos
Enquanto a polêmica dos “soldados-pilastras” choca pela exposição ao risco, outra tradição militar impressiona pela longevidade e simbolismo. Há exatos 134 anos, o Exército Brasileiro mantém “sósias” do cavalo que carregou Deodoro da Fonseca durante a Proclamação da República.
O cavalo original, conhecido como Baio número seis, foi escolhido não por sua imponência, mas por ser o mais manso do regimento – uma escolha crucial, já que Deodoro estava gravemente doente naquele 15 de novembro de 1889. Após o evento, o animal foi batizado como “Quinze de Novembro” e, desde então, o Exército seleciona meticulosamente cavalos fisicamente idênticos para ocupar o posto número seis do 1º Regimento de Cavalaria de Guardas.
O atual Baio número seis, chamado Âmbar do Rincão, tem 550 quilos, 1,65m de altura e recebe tratamento VIP, com estábulo exclusivo. Ele é montado apenas pelo comandante do regimento e participa de cerimônias especiais como o Dia do Exército, o Dia do Soldado e a Independência do Brasil.
2. O Primeiro Torneio de Hipismo do Brasil: Uma Herança Holandesa de 1641
Muito antes das polêmicas atuais, o primeiro evento esportivo equestre documentado no Brasil aconteceu em 1641, durante a ocupação holandesa em Pernambuco. Maurício de Nassau, conhecido por suas contribuições culturais e científicas, promoveu um “Torneio de Cavalaria” que é considerado o marco inicial do hipismo em terras brasileiras.
Este evento precedeu em quase três séculos a criação formal da Escola de Equitação do Exército, demonstrando como a tradição equestre no Brasil é muito mais antiga do que muitos imaginam e tem raízes que vão além da estrutura militar atual.
3. A Influência Francesa que Revolucionou a Equitação Militar Brasileira
Enquanto a polêmica atual questiona práticas da Escola de Equitação do Exército, poucos conhecem suas origens. A moderna equitação militar brasileira tem DNA francês. Em 1920, como parte da Missão Militar Francesa no Brasil (1919-1940), cavaleiros do prestigiado Cadre Noir de Saumur – uma das mais respeitadas escolas de equitação do mundo – vieram ao Brasil para modernizar o ensino equestre militar.
Os comandantes Gippon e De Paul, da Missão Francesa, foram os primeiros diretores do Centro de Formação de Oficiais Instrutores de Equitação, criado em 20 de abril de 1922, que mais tarde se tornaria a Escola de Equitação do Exército (EsEqEx).
Até hoje, a EsEqEx mantém tradições da escola francesa de Saumur em suas cerimônias e técnicas, representando um elo vivo com mais de um século de história.
4. A Verdadeira História da Cerimônia das Esporas Douradas
A “Formatura das Esporas Douradas”, mencionada na polêmica recente, é uma das tradições mais emblemáticas da Escola de Equitação do Exército. Poucos sabem que o nome faz referência às esporas douradas que simbolizam a excelência na arte equestre militar, uma tradição que remonta às ordens de cavalaria medievais.
Durante esta cerimônia, os formandos demonstram suas habilidades em saltos, adestramento e outras técnicas equestres, seguindo rituais que remontam às tradições francesas trazidas na década de 1920. As esporas douradas representam não apenas a conclusão do curso, mas o compromisso com a excelência e a preservação das tradições equestres militares.
5. Dom Pedro II: O Imperador que Revolucionou a Equitação Brasileira
Muito antes das controvérsias atuais, o segundo imperador do Brasil foi um grande entusiasta e promotor da equitação militar. Após a Guerra da Tríplice Aliança (Guerra do Paraguai), Dom Pedro II trouxe de Portugal o Capitão Luís de Jácome, especialista na doutrina francesa do célebre François Baucher, revolucionando o treinamento equestre no país.
O imperador também incentivou a importação de cavalos puro-sangue inglês para melhorar a criação nacional de equídeos, demonstrando uma visão estratégica sobre a importância da cavalaria para as forças armadas brasileiras que influencia as práticas até hoje.
6. Duque de Caxias: O Patrono do Exército e Pioneiro do Turfe Brasileiro
Enquanto debates sobre hierarquia militar dominam as manchetes, poucos conhecem que o Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, foi também o fundador e primeiro presidente do Clube das Corridas no Rio de Janeiro. Como Comandante das Armas da Corte, em 1847, ele importou garanhões puro-sangue inglês para melhorar a criação nacional de cavalos.
Esta iniciativa demonstra como a tradição equestre e militar sempre estiveram entrelaçadas na história brasileira, com os mesmos líderes atuando em ambas as frentes, muito antes das polêmicas atuais sobre práticas equestres militares.
7. Medalhas Internacionais: O Brasil como Potência da Equitação Militar
Enquanto a polêmica dos “soldados-pilastras” ganha as manchetes, o Brasil silenciosamente se destaca como potência mundial na equitação militar. A equipe brasileira conquistou medalhas de ouro por equipes nos Campeonatos Mundiais Militares de 2006 e 2011, além de pratas em 2017 e 2024.
Em maio de 2025, o Brasil participou do 25º Campeonato Mundial Militar no Egito, buscando seu terceiro título mundial. Estas conquistas demonstram a excelência técnica da equitação militar brasileira no cenário internacional, um aspecto raramente destacado nas coberturas midiáticas.
8. O Rigoroso Treinamento dos Cavalos Militares: Muito Além das Cerimônias
Por trás das polêmicas e cerimônias, existe uma rotina rigorosa e científica. Os cavalos do 1º Regimento de Cavalaria de Guardas seguem uma dieta balanceada (ração, feno, verde in natura e sais minerais), hidratação controlada e condicionamento físico três vezes por semana.
Além disso, em determinados horários, os animais são soltos em potreiros e capineiras, momento importante não apenas para o condicionamento físico, mas também para o bem-estar psicológico dos cavalos, especialmente aqueles criados originalmente em campos abertos.
9. As Três Modalidades da Equitação Militar: Uma Tradição Centenária
Enquanto a polêmica atual foca em uma prática específica, a equitação militar brasileira se divide tradicionalmente em três modalidades principais, cada uma com sua própria história e significado:
- Adestramento: Foca na precisão dos movimentos e na comunicação sutil entre cavaleiro e cavalo
- Salto: Envolve a transposição de obstáculos em sequência determinada
- Concurso Completo de Equitação (CCE): Combina adestramento, cross-country (percurso em terreno natural) e salto, sendo considerada a modalidade mais completa e desafiadora
Estas modalidades têm raízes nas necessidades práticas da cavalaria em campo de batalha, onde precisão, agilidade e resistência eram essenciais.
10. A Linguagem Secreta entre Cavaleiro e Cavalo: Uma Arte Milenar
Uma das curiosidades mais fascinantes da equitação militar é o sistema de comunicação quase invisível entre cavaleiro e cavalo. Os militares são treinados para comandar seus cavalos através de “ajudas” – sinais sutis transmitidos através da pressão das pernas, movimentos do corpo, tensão das rédeas e até mudanças na respiração.
Um cavaleiro experiente pode fazer um cavalo mudar de direção, velocidade ou executar manobras complexas com sinais tão discretos que são imperceptíveis para observadores. Esta comunicação silenciosa era crucial em operações militares históricas, onde comandos verbais poderiam alertar o inimigo.
Tradição e Modernidade: O Desafio da Equitação Militar Contemporânea
A polêmica dos “soldados-pilastras” ilustra o desafio constante de equilibrar tradições centenárias com padrões contemporâneos de segurança e dignidade. Enquanto algumas práticas são questionadas, outras tradições, como a do Baio número seis, são preservadas como patrimônio histórico e cultural.
O futuro da equitação militar brasileira dependerá de sua capacidade de honrar seu rico legado histórico enquanto se adapta às expectativas e valores da sociedade contemporânea, garantindo que práticas arriscadas sejam modernizadas sem perder a essência das tradições que fazem da equitação militar uma arte única e fascinante.