Oficial que pediu pra sair do Exército revela verdadeiros motivos e sua visão sobre a suposta “debandada de oficiais” das Forças Armadas

Em uma carta contundente, um ex-oficial confirma informações anteriormente divulgadas por outros militares, expondo problemas significativos no tratamento dos membros das Forças Armadas, considerados o principal patrimônio da instituição.
O ex-tenente aponta, entre outras questões, a garantia de que os oficiais formados nas academias militares alcancem o posto de coronel. Essa lacuna, na sua visão, permite que indivíduos “inaptos para assumir cargos de liderança” sejam responsáveis por comandar unidades militares com centenas ou milhares de subordinados, podendo gerar uma série de consequências negativas.
Além disso, o ex-militar aborda a discrepância na avaliação física entre homens e mulheres nos centros de formação. Ele afirma que “quase 100% das mulheres alcançavam a nota máxima na avaliação física militar, enquanto apenas 5% a 10% dos homens o faziam”. Esse desequilíbrio para ele impacta a classificação nos centros de formação e, posteriormente, na carreira militar.
O ex-tenente também menciona a suposta discriminação e desigualdade no tratamento dos oficiais que não se formaram na AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras). Ele relata que os alunos do IME (Instituto Militar de Engenharia) já perceberam como o Exército Brasileiro privilegia os cadetes da AMAN, relegando os demais a um nível inferior.
Outra questão preocupante abordada pelo ex-oficial diz respeito aos médicos militares, que, segundo ele, enfrentam interferências dos comandantes (combatentes) e não têm total liberdade para exercer sua profissão. A carta revela que médicos são pressionados em suas decisões técnicas e tratados como militares de segunda categoria.
Transcrição completa
Meu nome é Caio J.S.(*) Ingressei e conclui a graduação do IME no curso de CFG (Curso de Formação e Graduação) – o CFG forma os oficiais do QEM de carreira – entre os anos de 2010 e 2014 onde me formei engenheiro de comunicações e 1º Ten do QEM. Pedi demissão do serviço ativo logo após a minha graduação e formação para poder tentar seguir uma carreira que me interessasse mais.
Vi as duas reportagens relacionadas à evasão de militares, a primeira (Dezenas de oficiais se recusam a permanecer no Exército e Aeronáutica depois de constatarem falta de perspectiva – Revista Sociedade Militar) e a segunda (Número alto de oficiais do Exército e Aeronáutica solicitando demissão impressiona e internet reage – Revista Sociedade Militar).
Gostaria de adicionar alguns pontos, que são a minha visão e de alguns colegas com quem tive a honra e o prazer de servir. Geramos laços de amizade e companheirismo, mas também de desânimo com o exército.
Gostaria de separar a carta que escrevo agora em 2 tópicos
Avaliação matemática dos militares demissionários
Percepção pessoal, e de alguns colegas, quanto aos motivos da demissão
Avaliação matemática
Sempre acreditei que avaliações matemáticas mais rigorosas pudessem ajudar a compreender os principais motivos e o comportamento real das pessoas ao invés da própria fala.
Para a primeira parte, segue uma recomendação que poderíamos fazer para validar se o ano de 2023 é um ano com demissões atípicas ou se está dentro do comportamento padrão de todos os anos.
Creio que, para início de análise, seria interessante contabilizarmos todos os militares que pediram demissão entre os anos de 2000 e 2023, considerando as três forças armadas. Com esta primeira análise poderíamos ver quais são os anos com maiores demissões e menores demissões. Acho que este seria um bom ponto inicial para podermos ver a quantidade de militares que saíram de cada uma das forças.
Como segunda análise, eu faria uma avaliação de entrada, volume atual e demissões (como se fosse uma caixa d’água) entre os anos de 2000 e 2023, considerando as forças (EB, MB e FAB), os postos (OF e Praças) e quadros (Combatentes, Engenheiros, Médicos, entre outros). Esta segunda análise é muito interessante pois apontará os principais locais onde há demissão e também conseguirá detalhar mais como cada um dos grupos (Força-Posto-Quadro) é afetado pela demissão de 1 ou mais indivíduos. Por exemplo, na minha época o grupo que mais saia era o de Sargentos e o segundo que mais saia era dos engenheiros do QEM, porém a % de demissão dos sargentos era muito menor que a % de demissão do QEM (a minha turma de 2014 teve uma taxa de saída de 25% em menos de 12 meses após a graduação).
A terceira análise interessante a ser feita seria pegar turmas específicas– podendo ser 1 ou todas – e verificar a curva de evasão entre a formação e a aposentadoria. Lembro que durante o meu tempo de escola a maior parte da evasão era logo após a graduação, com o tempo a curva tendia a diminuir consideravelmente.
Creio que, com estas três análises, seria possível ver onde as forças mais perdem seus militares e como poderiam atuar para resolver os problemas destas demissões em massa.

Percepção pessoal
Vou começar esta sessão com uma afirmação: os militares brasileiros não ganham mal, sejam oficiais ou praças (com exceção de recrutas, soldados e cabos).
A afirmação acima é importante porque eu, como egresso do EB, sai em fevereiro de 2015 para ganhar menos – muito menos entre 2015 e 2016 – e só fui igualar o salário do EB em 2019. Vários colegas meu passaram por situações semelhantes, ou que o ganho salarial era pouco acima do que o exército oferecia.
Segundo ponto, muitos militares que saem têm muitos motivos que não desejam detalhar no momento da saída porque causa mais dor de cabeça do que vantagem em falar. Ficando sempre no clássico: carreira, salário e perspectivas.
Vou trazer alguns relatos temporais da minha vida na caserna para mostrar como não foi o dinheiro que me fez sair e sim coisas intangíveis.
Durante meu primeiro ano de graduação estourou uma notícia de corrupção envolvendo militares de alta patente do IME/EB e o DNIT. Aqui já se cortou o primeiro mito de que as FAs possuem pessoas honestas acima da média em suas fileiras, coisa que eu corroborei no meio privado após sair do EB, pois no meio privado o controle de corrupção é muito maior do que no meio público.
Durante os 3 primeiros anos de graduação eu percebi que o sistema de regras rígidas de um exército misturado com o jeitinho brasileiro só serve para aumentar injustiças. Exemplo: notas são tudo para a classificação do militar e, portanto, é esperado um sistema super justo para com todos os alunos de formação. Porém, o que ocorria era que quem “chorava” notas ou ficava ponderando com professores ou instrutores poderia ganhar alguns pontos a mais, gerando um incentivo perverso de ficar ponderando pontos em todas as provas. Tal fato favorecia pouco, mas o suficiente para subir algumas classificações
Discrepância de avaliação entre homens e mulheres. Do ponto de vista acadêmico, tal diferença era muito pequena – apesar de existir -, mas do ponto de vista de avaliação física era muito grande. Quase 100% das mulheres atingiam o 100% da nota física militar enquanto apenas 5% a 10% dos homens o fazia, afetando toda a estrutura de notas e classificação da escola. Isso gerava mais descontentamento com o exército entre os discentes
Carreira com garantia de chegar até Coronel, mesmo que não virasse general. O EB está cheio de pessoas incompetentes para assumirem funções de chefia e muito menos com características de liderança. A quantidade de pessoas burras ou incompetentes no EB era gigante, desde a escola de formação até as experiências nos quartéis, o que mais se via era um superior “burro” ou incompetente para o cargo. Exemplo: ao me formar fui enviado para o CITEx em Brasília e o comandante era um Cel COM da AMAN e não um Cel QEM, isso fazia com que o foco técnico ficasse abaixo do esperado para um quartel 100% técnico e não combatente.
Falta de prestígio para as carreiras de oficiais que não fossem da AMAN. Os alunos do IME, ao visitarem a AMAN, perceberam como o EB privilegia o cadete e deixa o aluno em um patamar abaixo, a AMAN tem instalações muito superiores às do IME. A carreira do aluno do IME termina em Gen 3 estrelas e a da AMAN, em sua maioria, termina em 4 estralas. O aluno do IME é cabo com precedência e o cadete é subtenente com precedência. Prêmios para oficiais de combate do EB que se destacam são melhores que os prêmios dos oficiais de engenharia. Isso que eu nem estou entrando no mérito de médicos que sofrem ingerências dos combatentes nas decisões técnicas ou do QCO que é tratando como militar de segundo escalão.
Terra de fingimento – como o militar escreveu neste artigo (Exército Brasileiro é uma “terra do fingimento”, diz oficial da ativa em relato chocante – Revista Sociedade Militar) a maior parte dos militares está apenas interessado em ganhar seu salário e se aposentar com soldo integral em 35 anos. Poucos estão efetivamente preocupados em cumprir e fazer cumprir a função social das FAs com a otimização dos recursos disponíveis
Após fazer estes esclarecimentos acima – mais longos do que eu gostaria e não exaustivos o suficiente – eu vou comentar sobre os principais motivos de evasão de amigos e colegas de farda.
QEM: problemas com a carreira do QEM, falta de prestígio na carreira e na escola, melhores oportunidades no meio privado (fora da engenharia apenas), problemas de comando fraco e falta de flexibilidade para movimentar a carreira caso deseje (eu mesmo não queria mais ser engenheiro e hoje trabalho com gestão pura).
Sargento: baixo prestígio, carreira super engessada, salários baixos (detalharei este ponto logo após) e falta de incentivo ao desenvolvimento (coisa que os oficiais têm muito mais)
Médico: ingerência de combatentes nas decisões médicas (vi alguns casos interessantes e ridículos durante minha vida, inclusive comigo), tempo perdido de estudo, salário fora é muito maior
AMAN: galgar concursos que ganham mais para trabalhar igual ou menos
Após o meu relato pessoal com exemplos em diversos tópicos e também de uma breve listagem de motivos de demissão dentro de diferentes quadros e postos, venho entrar no detalhe do ponto que é sempre o mais comentado e nem sempre o mais verdadeiro: o salário. Militares não ganham mal, eles ganham bem acima da média do brasileiro nas empresas privadas e, muitas vezes, trabalhando bem menos do que uma pessoa em empresas privadas. Deixei em negrito porque esta é mais pura verdade, ainda mais se considerarmos que os militares são pagos 100% através de impostos e que as pessoas deveriam ter mais consciência que imposto não vem do céu, eles vêm da vida do trabalhador brasileiro que paga caro para ter serviços (vale para todos os serviços públicos do Brasil, inclusas as FAs)
Dentro do executivo os militares estão entre os melhores salários, se for comparar com MP, TCU, Legislativo e Judiciário é que a curva fica diferente. Porém, o problema não é o executivo e sim os salários distorcidos dos outros órgãos (lembrando que vem tudo de imposto)
Militares ganham muito bem, mas como todos os seres humanos eles desejam sempre mais, porém como a carreira é engessada o que eles fazem é procurar oportunidade em outros lugares (nada de errado no princípio). O ruim é quando a pessoa sai de um serviço público para outro serviço público e faz este tipo de comentário. Gerando o viés de que o problema é salário.
Militares da AMAN não tem espaço no mercado de trabalho privado e, portanto, sempre procuram outros concursos. Em geral estudam para outros concursos, onde procuram ganhar mais, trabalhar menos e ter menos dor de cabeça
Sargentos também evadem por salário, aqui o argumento faz um pouco mais de sentido, mas o principal ponto é que a carreira do EB não permite que sargentos virem oficiais. Deixando sempre o salário dos praças muito abaixo ao dos oficiais, o que gera um movimento natural de busca por algo melhor
Encerramento
Sei que não foi a carta mais estruturada e organizada do mundo, mas eu queria muito trazer esta visão a mais para vocês. Visão que é mais profunda do que apenas um comentário na plataforma
Robson Augusto – Revista Sociedade Militar
A fonte, que foi devidamente verificada, pediu para ter a identidade preservada, o que é um direito e perfeitamente compreensível em se tratando de militares e ex-militares. A grande mídia com muita frequência preserva a identidade de fontes por vários motivos, é um direito e quem avalia isso é o veículo de imprensa. O ex-militar agora trabalha em uma multinacional e tem motivos particulares para não se expor.