O Ministério Público Federal (MPF) enviou nesta semana parecer ao Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), defendendo que a União faça reparações e compensações à família de João Cândido Felisberto.
Conhecido como “almirante negro”, o militar foi líder da Revolta da Chibata, que, em novembro de 1910, no Rio de Janeiro, tentou acabar com as práticas violentas da Marinha contra os marinheiros (em sua maioria) negros.
O documento também foi encaminhado à Câmara dos Deputados, onde tramita projeto para incluir o nome de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.
O parecer foi produzido no âmbito de inquérito civil público instaurado pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) do MPF no Rio de Janeiro, com o objetivo de acompanhar as medidas de valorização da memória e do legado do almirante negro, além de buscar reparação e o debate sobre o enfrentamento ao racismo estrutural no país.
GANHOU, E AGORA VAI LEVAR
No documento, o procurador da República Julio José Araujo Junior destaca o caráter incompleto da anistia concedida pela Lei nº 11.756, de 23 de julho de 2008, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, apesar de importante reconhecimento histórico, veio desacompanhada de compensações à família de João Cândido.
“Por suposta falta de previsão de ‘aspectos técnicos’, o trecho que previa reparação em relação a promoções e benefícios de pensão por morte foram vetados”, argumentou.
De acordo com o procurador, é necessário que a União faça a devida reparação aos familiares do “almirante”, tendo em vista que a anistia pecou em não produzir outros efeitos, como promoções a que teria direito se tivesse permanecido em serviço ativo e benefício de pensão por morte aos sucessores.
“Na prática, a justiça foi feita, porém de forma parcial. Em bom português, João Cândido ganhou, mas não levou”, destacou.
LIVRO DE HERÓIS E HEROÍNAS DA PÁTRIA
No parecer, o MPF destaca também, como medida de reparação, o atendimento ao pedido de movimentos negros pela inscrição do almirante João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
O Livro de Aço, como também é conhecido, foi criado em 1992 e fica abrigado no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, com o objetivo de conferir justo título a pessoas que tiveram uma trajetória importante na formação de nossa história.
O pedido de inscrição já tramita na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados pelo PL 4046/2021 (originalmente PLS 340/2018), e já foi aprovado no Senado.
A ELITE DE CARTAS MARCADAS
O Brasil é um curioso ajuntamento de pessoas que, quando não estão dando voltas no mesmo lugar, estão dando largos passos atrás. Ano após ano, são sempre os mesmos enredos com melodias similares, mas diferentes executores.
Abaixo um excerto do livro “João Cândido“, de Fernando Granato, pela Selo Negro, 2010, Coleção Retratos do Brasil Negro, p. 123:
“No início dos anos 1970, os músicos Aldir Blanc e João Bosco compuseram a canção O Mestre Sala dos Mares em homenagem a esse herói popular. No entanto, por estar em plena vigência de uma ditadura militar, a composição sofreu censura dos órgãos repressores do governo e eles foram obrigados a mudar algumas partes dela: a expressão “Almirante Negro” foi substituída por “Navegante Negro” e surgiram novas palavras que nada tinham a ver com o tema retratado como ‘polacas, mulatas e baleias‘.
“O compositor Aldir Blanc, já falecido, dissera em uma entrevista como a censura atuou na música:
‘O cara chegou com a letra na mão e me disse: o que tá pegando mais não é o lado político, e sim a questão da exaltação da raça, porque essa música faz uma tremenda apologia ao negro‘“.
No primeiro ano do governo mais militarizado da história, tramitava o PLS 340/2018, cujo objetivo era inscrever o nome de João Cândido Felisberto no “Livro de Aço“. Em abril daquele ano, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL), presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional assinou o REQ-1291-2019, que solicitava inclusão da CREDN na apreciação do PLS 340/2018.
A deputada Benedita da Silva (PT) relatora do Projeto de Lei nº 4.046, de 2021 – que , segundo ela, era “praticamente idêntico ao PL 1.744″ optou por aprovar o primeiro – que se encontrava para apreciação na Câmara como casa revisora e, portanto, em estágio mais avançado de tramitação – e rejeitou o segundo.
Neste ano de 2023, foi redigido novo REQ n.1175/2023, que requeria a mesmíssima coisa que Eduardo Bolsonaro almejava em 2019, isto é, a inclusão da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional no despacho inicial aposto ao Projeto de Lei nº 4046, de 2021.
Quem foi o relator? Vinicius Rapozo de Carvalho, deputado federal (Podemos). Ele foi matéria na Revista Sociedade Militar em 2019, por ter admitido em público que fora escolhido diretamente pelos comandantes das Forças Armadas para ser o Relator do PL 1.645/2019. Esse PL se tornou a Lei 13.954/2019, apontada como tendo beneficiado a cúpula armada.