A política de pouca transparência das Forças Armadas torna penoso que se possa pintar um quadro fiel do que realmente se passa intramuros – principalmente do tema que vamos abordar aqui. Algo que deveria ser objeto de preocupação, tanto da sociedade civil quanto das autoridades constituídas, é uma palavra que pode ser considerada um tabu na administração militar. Trata-se da evasão. Um dos sinônimos dessa palavra é “desistência”. Evadir-se é mais do que simplesmente sair, é também desistir, abandonar. Aquele que desiste, foi também aquele que persistiu, que tentou, às vezes a muito custo – mas, enfim, foi vencido e desistiu.
Como dito anteriormente, não é missão simples obter dados públicos sobre evasão militar. O que se sabe, por meio de pesquisas em documentação esparsa, como publicações no DOU e experiências narradas de memória por fontes informais, é que ela, a evasão, existe e é crescente nos quarteis. Além disso, o fenômeno (que não é novo) tem ganhado destaque nos últimos anos. Não imediatamente, mas a médio e longo prazo, esse estado de coisas aponta um futuro sombrio para as Forças Armadas.
As perdas de longa data, a desvalorização da carreira e o fim de benefícios
A evasão passa forçosamente pelas perdas de benefícios e desvalorização da carreira. A perda de benefícios é algo bastante objetivo e de ordem prática. Se a carreira não tem atrativos ou esses atrativos estão invariavelmente periclitando, a tendência é que o trabalhador pule do trem – ainda que em movimento.
Um exemplo de perda de benefícios da qual os militares ainda não se recuperaram foi a Medida Provisória (MP) n° 2.215/2001, uma entre tantas MPs ainda em vigência, mesmo decorridos mais de vinte anos.
Essa MP é um marco na história das Forças Armadas brasileiras e suas consequências reverberam até os dias de hoje, sendo um ponto central de debates sobre a valorização da carreira militar e como uma das causas de evasão de pessoal.
Embora tenha sido apresentada como uma medida de reestruturação da remuneração e benefícios dos militares, a MP 2215/2001 impôs uma série de prejuízos que impactaram diretamente a qualidade de vida e a motivação dos profissionais das armas.
Alguns dos prejuízos impostos pela MP 2215/2001
Congelamento do Adicional de Tempo de Serviço: um dos golpes mais sentidos pelos militares foi o congelamento do adicional de tempo de serviço, conhecido como “anuênio”. Antes da MP, os militares recebiam um percentual crescente sobre seu salário a cada ano de serviço. A MP congelou esse percentual, impedindo que muitos profissionais tivessem um aumento salarial significativo ao final de suas carreiras. Isso impactou principalmente os praças – suboficiais e sargentos – que dependiam desse adicional para ter suas remunerações atualizadas, quando da passagem para a reserva.
Extinção de gratificações: gratificações como o auxílio-moradia e outras vantagens financeiras foram extintas ou tiveram seus valores reduzidos. A perda do auxílio-moradia, por exemplo, foi um golpe duro para muitos militares que precisam se mudar constantemente devido às suas funções. Apenas uma minoria tem acesso aos imóveis funcionais, chamados de PNR (Próprio Nacional Residencial), e mesmo assim, na maioria das Organizações Militares, a “fila de espera” é grande.
Aumento da alíquota da Contribuição Previdenciária: a MP também aumentou a alíquota da contribuição previdenciária dos militares, sem que houvesse uma contrapartida significativa em termos de benefícios previdenciários. Isso gerou um descontentamento generalizado, pois os militares passaram a contribuir mais para a previdência, sem que na prática houvesse uma contrapartida equivalente.
Evasão natural: os melhores vão embora
Apesar de não ser mensurável, um dos principais motores da evasão militar é a crescente sensação de desvalorização da carreira. Salários considerados baixos em comparação com outras profissões de nível superior, a falta de perspectivas de ascensão e o excesso de rigidez das Forças Armadas – proibições de sindicalização, por exemplo – são fatores que desmotivam muitos militares.
Como exemplo, listamos 22 áreas de atuação na Força Aérea Brasileira e estabelecemos o salário de segundo-tenente como ponto de referência, para com isso evidenciar quais profissionais provavelmente são mais atraídos para a carreira militar, quais pensam duas vezes antes de o fazer e finalmente quais têm mais tendência a “saltar da aeronave” em busca de melhores oportunidades.
Para essa relação tomamos como amostra o processo de seleção para a realização do Estágio de Adaptação Técnico (EAT) e do Estágio de Instrução Técnico (EIT), no ano de 2019, para oficial temporário da FAB. São profissionais de nível superior, com habilitação para o desempenho da profissão nas especialidades de interesse do Comando da Aeronáutica.

Os dados que usamos acima, foram retirados do Guia de Ocupações do Ministério do Trabalho, que é uma iniciativa da Organização Internacional do Trabalho, cujo objetivo é facilitar o acesso do público às informações sobre as ocupações existentes no mercado de trabalho brasileiro, seus componentes e principais indicadores.
Por eles pode-se deduzir que as profissões que mais compensam o custo/benefício de se sujeitar a atividades consideradas de natureza militar (que nem sempre são exatamente prazerosas) dispõem-se num crescendo da parte inferior da tabela (piloto) para a parte superior (fisioterapia).
Com regularidade inquietante a Revista Sociedade Militar publica artigos sobre evasão de militares das Forças Armadas. Uma matéria mostrou os números da evasão na Força Aérea Brasileira, revelando que, num período de cinco anos, mais de 15% dos que pediram demissão eram pilotos, e que, entre os aviadores, 40% das baixas eram de oficiais superiores. A formação praticamente incessante de um piloto militar é das mais custosas aos cofres públicos, e mesmo assim (ou talvez exatamente pela experiência e os conhecimentos adquiridos) a evasão desses profissionais é das maiores.
Evasão a longo prazo. Um inevitável e sombrio futuro
A evasão militar não é meramente um problema de gestão de recursos humanos. Não há um banco de empregos exclusivo onde se contratam militares capacitados. Soldados são forjados. A evasão impacta diretamente na segurança nacional e na capacidade do país de se defender contra ameaças externas e até mesmo internas.
Um contingente militar reduzido – já vivemos isso atualmente – e desmotivado, além de pouco comprometido profissionalmente pode afetar a prontidão das Forças Armadas, tornando o país mais vulnerável a ataques e conflitos.
A falta de pessoal qualificado também dificulta a realização de operações de manutenção da ordem, defesa civil e auxílio em desastres naturais. A evasão de técnicos e especialistas em áreas estratégicas como tecnologia, comunicação e inteligência pode criar lacunas perigosas na estrutura de defesa do país, tornando as Forças Armadas obsoletas, ineficientes e pouco confiáveis.
O cenário atual, marcado pela evasão crescente e pela desvalorização da carreira militar, aponta para um futuro sombrio para as Forças Armadas. Se as tendências atuais se mantiverem, é possível que, em poucas décadas, os quartéis se tornem cronicamente carentes de militares capazes e as instituições militares sejam reduzidas a sombras do que já foram um dia.