Apesar de a questão estar por ser decidida no Supremo Tribunal Federal, a Força Aérea Brasileira (FAB) manteve em seu edital mais recente a exigência de que candidatos aos cursos de formação para a carreira militar não podem ser casados, viver em união estável nem mesmo ter filhos ou dependentes. A regra foi publicada nesta terça-feira, 27 de maio de 2025, no Diário Oficial da União (Edição nº 98, Seção 1, Página 100), e integra as instruções específicas para o Exame de Admissão aos Cursos de Formação de Oficiais Aviadores, Intendentes e de Infantaria do próximo ano.
Mesmo diante de críticas jurídicas e sociais crescentes, a Força Aérea, comandada atualmente pelo Brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno, sustenta que tais condições são “essenciais” por conta do regime de internato, dedicação exclusiva e disponibilidade permanente exigido para a formação dos oficiais.
A base legal invocada para justificar a exigência é o artigo 144-A da Lei nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares), alterado pela Lei nº 13.954/2019.

Entretanto, a Procuradoria-Geral da República (PGR) contestou com firmeza a validade constitucional dessa exigência em um parecer apresentado no Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito do Recurso Extraordinário nº 1.530.083/RN. O órgão classificou a norma como arcaica, discriminatória e violadora de direitos fundamentais. No documento apresentado ao Supremo Tribunal Federal, a PGR mencionou que as instituições militares não podem ser colocadas em patamar superior à laços afetivos e responsabilidades familiares.
“Ao criar um ambiente que penaliza a escolha de constituir uma família, essa norma não apenas desvaloriza as relações familiares, mas também pode gerar um impacto negativo na estrutura social, promovendo a ideia de que a dedicação à carreira militar deve prevalecer sobre os laços afetivos e responsabilidades familiares”.
PGR aponta violação à dignidade e à igualdade nas regras para ingresso na Carreira Militar
A manifestação da PGR, assinada pelo Subprocurador – Geral da República Luiz Augusto Santos Lima, sustenta que a norma desrespeita princípios centrais da Constituição Federal de 1988, como o direito à igualdade, à vida familiar, à liberdade individual e à dignidade da pessoa humana. A procuradoria contesta a legalidade do Artigo 144.a do Estatuto dos Militares, que diz: “Art. 144-A. Não ter filhos ou dependentes e não ser casado ou haver constituído união estável, por incompatibilidade com o regime exigido para formação ou graduação, constituem condições essenciais para ingresso e permanência nos órgãos de formação ou graduação de oficiais e de praças que os mantenham em regime de internato.”
A Procuradoria afirma:
“… Ora, a priorização das peculiaridades inerentes à carreira militar em detrimento do direito fundamental de ter filhos e de se casar representa uma afronta aos princípios constitucionais que garantem a dignidade da pessoa humana e a igualdade de direitos. A Constituição Federal do Brasil assegura, em seu artigo 226, a proteção à família, reconhecendo a união estável como uma entidade familiar e, portanto, conferindo a todos os indivíduos o direito de constituir uma família, independentemente de sua profissão. A imposição de restrições que excluem candidatos com responsabilidades familiares não apenas desconsidera a importância das relações familiares, mas também ignora a realidade social…”
Dedicação à carreira militar não justifica restrição de direitos
A PGR também rebate a justificativa de que a carreira militar exige dedicação e disponibilidade integral, o que supostamente tornaria incompatível a presença de vínculos familiares. O parecer sustenta que esse argumento não se sustenta diante da Constituição e da realidade de outros países:
“Além disso, a natureza da carreira militar, que exige dedicação e disponibilidade, não pode ser utilizada como justificativa para limitar direitos fundamentais. A vida em sociedade deve ser pautada pelo respeito às escolhas individuais e à diversidade das experiências humanas. A possibilidade de conciliar a vida profissional com a vida familiar é um aspecto essencial da dignidade humana e deve ser garantida a todos, incluindo aqueles que optam por seguir a carreira militar. Portanto, a proteção dos direitos familiares não deve ser sacrificada em nome de uma suposta incompatibilidade com as exigências da carreira, pois isso fere os princípios constitucionais que sustentam a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos.”
Princípio da igualdade e direito à família
A manifestação conclui que a exigência deve ser declarada inconstitucional por pelo menos três razões principais:
“A uma porque a exigência de que o candidato não tenha filhos, dependentes, ou que não seja casado ou em união estável configura uma discriminação direta baseada na condição familiar do indivíduo. O artigo 5º, caput, da Constituição Federal assegura que ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza’. Essa imposição não pode criar um tratamento desigual entre candidatos, excluindo aqueles que possuem responsabilidades familiares, o que fere o princípio da igualdade e da não discriminação.”
“A duas porque a Constituição protege o direito à vida familiar e à convivência familiar, conforme o artigo 226, que reconhece a união estável como entidade familiar. A imposição de condições que excluem candidatos casados ou com filhos viola esse direito fundamental, uma vez que desconsidera a importância das relações familiares e a dignidade que delas decorre.”
“A três porque a imposição de condições que limitam a liberdade de escolha do candidato em relação à sua vida pessoal e familiar viola a autonomia individual. Assim, condicionar a participação em um concurso à ausência de filhos ou de um estado civil é incompatível com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, fundamento da República Federativa do Brasil, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.”
Decisão final está nas mãos do STF
Apesar da ação no Supremo Tribunal Federal e do posicionamento firme do Ministério Público Federal, a regra permanece em vigor até que a corte delibere definitivamente sobre a matéria. Caso o STF acate o parecer da PGR e declare o artigo 144-A do Estatuto dos Militares inconstitucional, editais como o publicado nesta semana pela FAB deverão ser revistos, possibilitando o ingresso de candidatos com filhos, cônjuges ou em união estável nas escolas militares brasileiras.