Em um país onde a memória dos heróis populares é, muitas vezes, negligenciada, o nome do marinheiro João Cândido Felisberto ressurgiu de forma surpreendente, cravado no casco de aço de um dos maiores navios já construídos no Brasil. O petroleiro João Cândido, pertencente à frota da Transpetro, não é apenas um colosso de engenharia naval, ele acabou se tornando um monumento flutuante à resistência, à dignidade e à luta por direitos humanos dos membros das Forças Armadas brasileiras.
Um colosso dos mares brasileiros
O João Cândido é um navio do tipo Suezmax, que foi projetado para transportar até 157.700 toneladas de porte bruto, o que equivale a aproximadamente 1 milhão de barris de petróleo. Com 274 metros de comprimento e 48 metros de boca, a embarcação supera em dimensões até mesmo o maior navio de guerra atualmente em operação na Marinha do Brasil, o porta-helicópteros multipropósito Atlântico, que possui 203 metros de comprimento e desloca cerca de 21 mil toneladas.
Em termos de deslocamento carregado, o João Cândido pode ultrapassar 200 mil toneladas, tornando-se, portanto, mais de nove vezes mais pesado que o Atlântico. Essa comparação não apenas ressalta o gigantismo do petroleiro, mas também evidencia como a engenharia naval civil brasileira alcançou patamares de destaque internacional.
Potência e autonomia do petroleiro João Cândido
Equipado com um motor MAN B&W de 25.370 HP, o navio atinge velocidade de cruzeiro em torno de 13,5 nós. A bordo, o sistema de geração elétrica garante autonomia total para operações de longa distância, abastecendo os equipamentos de navegação, bombas, habitabilidade e sistemas de segurança. Conta ainda com sistemas de dessalinização de água, caldeiras auxiliares e tanques de duplo casco, em conformidade com as normas da IMO (International Maritime Organization).
Com tripulação estimada de 26 pessoas, o navio dispõe de sistemas automatizados que permitem alta eficiência com reduzido efetivo humano. As operações de carga e descarga, além da navegação, são monitoradas por sensores e painéis integrados, simbolizando o avanço tecnológico da construção naval brasileira.
Gigantismo e simbolismo
Construído no Estaleiro Atlântico Sul, em Pernambuco, o petroleiro João Cândido foi lançado ao mar em 2010, ainda durante o Programa de Modernização e Expansão da Frota (PROMEF), idealizado para impulsionar a indústria naval nacional. Seu batismo, além da ousadia de usar como nome um ícone justamente da revolta até hoje rechaçada pela Marinha do Brasil, teve um gesto simbólico inédito: quem quebrou a garrafa de champagne no casco foi uma soldadora do estaleiro, representando os trabalhadores que ergueram a embarcação.
De fato, o nome gravado em sua proa provoca reações. João Cândido Felisberto liderou, em 1910, a Revolta da Chibata, um dos mais emblemáticos episódios de insubordinação militar da história do Brasil. O movimento denunciava os castigos físicos sofridos por marinheiros, em especial os negros, dentro da Marinha de Guerra. Apesar de vitorioso em suas demandas, o marinheiro foi expulso da instituição e viveu marginalizado até o fim da vida.
Hoje, o nome de João Cândido está inscrito em um dos maiores navios já construídos no Brasil, maior até que o principal navio de guerra da Marinha, em um gesto que não passa despercebido por setores conservadores das Forças Armadas. Para muitos, é uma forma de reparo histórico e uma afirmação da diversidade e da memória nacional. Ainda assim, o nome João Cândido continua sendo motivo de desconforto em setores navais mais conservadores e que discordam da interpretação de que a Revolta da Chibata tenha sido um movimento justo, inclusive com manifestações contrárias dentro da própria Marinha.
Atualmente, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que propõe a inclusão do nome de João Cândido no Livro dos Heróis da Pátria — proposta que – apesar de já ter sido aprovada no Senado, enfrenta forte resistência na Câmara dos deputados.
Tecnologia nacional e projeção internacional
O João Cândido integra uma série de navios Suezmax fabricados com alta taxa de nacionalização, utilizando mais de 21 mil toneladas de aço, mais de 100 quilômetros de cabos elétricos, centenas de quilômetros de tubulações e milhares de componentes de indústrias nacionais. O navio é compatível com os principais terminais de exportação do Atlântico Sul e foi projetado para suportar condições severas de navegação.
Durante sua primeira missão internacional, transportou 1 milhão de barris de petróleo do pré-sal até o Chile, cruzando o Estreito de Magalhães em uma viagem de mais de 13 mil km. Foi uma prova de fogo, quando o navio enfrentou ondas de 15 metros de altura, e que consolidou seu prestígio como navio mercante de alta performance.
“… Na passagem pela costa argentina no caminho de ida, o suezmax encarou a fúria do mar pela primeira vez, com ondas de até 8 metros, acompanhadas de rajadas de vento de quase 70 km/h. Já em águas chilenas, após cruzar com tranquilidade o Estreito de Magalhães, passagem natural entre os oceanos Atlântico e Pacífico, teve pela frente novos desafios como tempestade de neve e temperaturas negativas. Momentos em que a alta tecnologia da embarcação e seu sistema de calefação garantiram o conforto e segurança da tripulação. Já no retorno ao Brasil, ainda em águas chilenas, ondas de 15 metros foram enfrentadas pelo navio, que rumou para os canais patagônicos, desviando de novas tempestades e possibilitando uma navegação mais veloz. De volta aos mares brasileiros, o gigante de 274 metros foi recebido sem contratempos, completando sua viagem de 7.078 milhas náuticas, equivalente a mais de 13 mil quilômetros…”, diz o artigo no site da Transpetro.