A absolvição dos 8 militares que mataram o músico Evaldo Rosa dos Santos e o catador Luciano Macedo na Zona Oeste do Rio em 7 abril de 2019 pelo STM (Superior Tribunal Militar) no último dia 18 de dezembro voltou a colocar as Forças Armadas nos holofotes da mídia de forma negativa.
Na época do crime, os agentes confundiram o carro utilizado por Evaldo com um veículo que teria sido usado em um roubo na Região Militar, no Rio. O catador Luciano Macedo tentou ajudar a vítima e também foi assassinado.
Com a decisão, o 2º Tenente Ítalo da Silva Nunes foi condenado a 3 anos e 7 meses de reclusão e os outros 7 acusados a 3 anos de prisão, pelos crimes de homicídio e tentativa de homicídio culposo (ou seja, quando não há intenção de matar). O regime das penas será aberto. Dessa forma, nenhum deles será preso.
Em editorial (texto opinativo sobre posicionamento do veículo) divulgado nesta sexta-feira, 20 de dezembro, a Folha de São Paulo declarou que as absolvições no caso Evaldo põem o corporativismo acima da lei e que a Justiça castrense não deveria julgar crimes contra civis. Ainda declarou que “à diferença do que diz o ditado, a Justiça pode tardar e, mesmo assim, falhar”.
“O julgamento do caso por corte castrense é, mais uma vez, descabido. A Justiça Militar deveria ficar restrita a apreciar questões específicas das Forças Armadas, e não abarcar crimes contra civis. Na Argentina, por exemplo, ela foi abolida em 2009.
O STM, em particular, nem sequer exige que os seus julgadores tenham a devida formação jurídica —10 dos 15 ministros são militares. Desnecessário dizer que tal composição predispõe a corte a erros técnicos, principalmente quando se trata de crimes contra civis, dado o corporativismo e a imbricação com a rígida hierarquia da caserna.
Algumas das expressões usadas no STM para descrever ou justificar o evento —como “grande confusão” ou tentativa de “conter ação criminosa, ainda que imaginária”— denotam a fundamentação precária que contribuiu para a impunidade vexatória.
Se a Justiça Militar não leva a sério o trabalho de responsabilizar seus agentes por violações à lei, é legítimo que seu alcance seja reavaliado por STF e Congresso”.
Ministério dos Direitos Humanos diz ter recebido decisão do STM com preocupação
Também na sexta-feira, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania divulgou uma nota em que disse ter recebido com preocupação a decisão do STM de reduzir a pena dos envolvidos nos assassinatos.
“Em uma ação marcada por excessos, foram disparados 257 tiros em direção ao veículo em que estava Evaldo Santos, sendo que 62 projéteis atingiram o automóvel e, nove deles, o músico. Luciano Macedo, baleado ao tentar prestar socorro, também perdeu a vida em consequência da ação. O caso representa uma grave violação dos direitos humanos e reforça a necessidade de um debate amplo sobre o uso da força letal por agentes de segurança”.
O Ministério afirmou que a AGU (Advocacia-Geral da União) garantiu a reparação financeira às famílias, por meio de acordos de indenização, mas elencou que a ação é insuficiente. “A responsabilização criminal é um elemento fundamental para assegurar a efetividade da justiça, a fim de violências como essas não se repitam”.
The Intercept alega que militares agem com impunidade
Em artigo publicado neste sábado, 21 de dezembro, a agência de notícias The Intercept afirmou que o STM teve o “descaramento de absolver os 8 militares que assassinaram à luz do dia 2 cidadãos brasileiros” e que “o corporativismo militar sempre se sobrepôs aos compromisso das Forças Armadas com a democracia”.
Segundo o articulista João Filho, “não há registro na história do STM de condenação de integrantes das Forças Armadas por crimes praticados contra civis”.
Única mulher no STM, presidente da Corte foi derrotada
Quando foram condenados pela 1ª Instância da Justiça Militar, em 2021, os agentes receberam penas que variavam de 28 a 31 anos e 6 meses de prisão pelos crimes de homicídio qualificado.
Mas o voto vencedor no novo julgamento foi o do ministro Carlos Augusto Amaral, relator do caso. Ele decidiu absolver os militares pela morte de Evaldo, alegando legítima defesa, e condenar os militares em penas mais baixas pela morte de Luciano.
A nova presidente do STM (Superior Tribunal Militar), Maria Elizabeth Rocha, discordou do relator. Ela votou pela manutenção integral da condenação dos 2 militares de patentes mais altas envolvidos na operação e sugeriu que os demais 6 acusados deveriam ter as penas menores por não serem os comandantes da ação.
A ministra defendeu que o Tribunal Militar não podia acolher a tese de legítima defesa, pois o músico não apresentava risco algum aos militares e não estava armado. Elizabeth foi ignorada.
Viúva desesperançada
Em entrevista à Folha, Luciana Nogueira, viúva de Evaldo, classificou a decisão do STM como lamentável e disse se sentir injustiçada por um tribunal composto majoritariamente por militares julgar oficiais e praças que mataram seu marido.
Ela disse ainda que não pretende recorrer da decisão, pois tentar protelar alongaria seu sofrimento e significaria manter viva uma esperança de algo que não vai acontecer.
“Eu vou conversar com meus advogados, mas eu prefiro encerrar aqui mesmo. Nós sabemos que no Brasil que nós vivemos não existe justiça para pobre e para preto”.
Falta de confiança nas Forças
O histórico dos últimos meses apontam descrença da sociedade em relação às Forças Armadas.
O índice de desconfiança da população em relação a Exército, Marinha e Aeronáutica está em tendência de alta desde 2017 segundo o Datafolha. A última pesquisa, divulgada pelo instituto em 18 de dezembro, mostra que 24% dos entrevistados disseram não confiar nas Forças Armadas. Esse percentual era de apenas 15% há 5 anos atrás.
No lado positivo da balança, a plena confiança nas Forças Armadas está em 34%. É o melhor índice entre as instituições, considerando imprensa, STF (Supremo Tribunal Federal), grandes empresas, Ministério Público e Congresso. Mas esse número já foi de 45% em 2018.
O possível envolvimento de militares de alta patente na suposta tentativa de golpe de Estado que está sendo investigada pela Polícia Federal, o vídeo da Marinha, as fraudes no sistema de pensão e a conduta de agentes em redes sociais são outros fatores que podem estar deixando a relação nociva, segundo especialistas ouvidos pelo jornal O Globo.
Para João Roberto Martins Filho, professor da UFSCar e um dos maiores especialistas do país no pensamento político da caserna, a dubiedade causada pelo possível envolvimento dos militares em tentativa de golpe e, ao mesmo tempo, a falta de apoio a ele por parte dos Comandantes do Exército e da Aeronáutica, contribui para atrair a rejeição dos 2 lados do jogo político.
“Hoje vemos democratas perdendo a confiança nas Forças por causa dessas notícias todas, e ao mesmo tempo bolsonaristas insatisfeitos com elas por não terem interferido”.
Martins Filho aponta ainda o envolvimento dos militares na política como outro grande motivador dessa crise de confiança por parte da sociedade.
“Na medida em que os militares decidem entrar na política, entram numa área de risco, porque a política é um ambiente de conflito. No governo Bolsonaro, a imagem foi sendo desgastada por vários episódios, porque eles assumiram um protagonismo em várias posições”.
Múcio coloca comunicação institucional como estratégia
Apontado como hábil político, gestor e conciliador, o ministro da Defesa José Múcio Monteiro, que pode estar prestes a deixar o governo, parece saber o quanto é necessário o fortalecimento e laços de confiança e de respeito mútuos entre civis e militares e também o quanto seria essencial o apoio público para blindar os militares em discussões como a inclusão nos cortes de gastos públicos e tesouradas na Defesa e apoiá-los em lutas como mais investimentos em setores estratégicos e melhoria da atratividade da carreira militar, já muito combalida.
No Planejamento Estratégico Setorial de Defesa 2024-2035, dedicou inteiramente um capítulo a fortalecer a imagem institucional das Forças Armadas.
Segundo o material, na próxima década a Defesa vai ampliar a interação com a Administração Pública e os formadores de opinião (como jornalistas e influenciadores), de maneira a disseminar melhor as atividades realizadas e maior compreensão dos temas da defesa nacional, ampliar a interação com a sociedade, aperfeiçoar a comunicação estratégica institucional e a qualidade de informação a ser prestada à sociedade, divulgar a cultura e os valores institucionais das Forças Armadas, entre várias outras iniciativas.