O texto de JBReis é fiel à indignação causada pela desastrada nota publicada pela Marinha do Brasil, que tenta impedir que o nome de João Cândido seja inscrito no Livro dos Heróis da Pátria. Ao lado dos já reconhecidos almirantes, brigadeiros e generais, a presença do graduado, pobre e negro – João Cândido – membro das classes mais humildes, imposta, será sempre uma incômoda lembrança de que mesmo dentro das instituições armadas haverá sempre aqueles que estarão dispostos a travar as chamaras lutas inglórias.
Justo é questionar quem seria mais digno de ser lembrado. Generais, marechais e outros que lutaram, quase sempre encastelados, batalhas para defender visões políticas, protegidos por muralhas humanas, navios, fortalezas… Ou aqueles que arriscam a própria integridade física e a liberdade para guerrear em defesa de valores inegociáveis, como o direito à vida, à dignidade, para ser reconhecido como ser humano?
Um Mar de orgulho – Apontamentos sobre uma nota revoltada
“Enquanto os prejudicados não reagirem, a sua paciência funcionará como fábrica de vítimas”
Em recente Nota institucional, a Força naval expõe os motivos pelos quais não aprova a inserção do nome de João Cândido Felisberto no livro dos heróis e heroínas da Pátria, “criado para homenagear os heróis nacionais, ou seja, aqueles brasileiros que possuíram ideais de liberdade e democracia”, conforme explicado no site do governo federal. João Cândido foi o marinheiro que liderou a chamada Revolta da Chibata, em 1910, quando os amotinados se apossaram de quatro embarcações e fizeram a capital federal, então o RJ, refém de armas poderosas e destrutivas. A obra de Edmar Morel, a “Revolta da chibata”, é a mais abalizada sobre o assunto, e recomendamos fortemente sua leitura. Mas o que nos interessa aqui é o pensamento da Força Naval exposto na Nota mencionada. Pinçamos algumas partes mais relevantes e tecemos alguns comentários despretensiosos.
A MB deplora a ruptura da chave de braço que se convencionou chamar de disciplina, que mantém as tropas alinhadas com a vontade superior. Houve ruptura, sim, mas na estrutura que se alicerçava na chibata, pois não se pode negar que a disciplina se manteve, já que mesmo sem os oficiais brancos, as manobras efetuadas pelos amotinados foram louvadas por observadores contemporâneos como de extrema perícia, o que certamente só poderia acontecer sob forte disciplina – no caso, sem chibata. Deplora também a Marinha que a revolta foi “um triste episódio na História do País” e que seria “difícil” avaliar suas origens. Uma pergunta para os que engolem fácil essa pílula branca: o que é mais difícil? Chicotear ou ser chicoteado 250 vezes?
Não se faz aqui apologia a qualquer tipo de violência, venha ela de oprimidos ou de opressores, seja do indivíduo ou do governo. Tanto as guerras – paroxismos de violência estatal que, quando tocadas pela mágica do patriotismo, tornam-se fábrica de heróis – quanto as revoluções – normalmente estopins de regimes sanguinários – são estúpidas e condenáveis sob qualquer ótica. O que se procura evidenciar aqui é a relativização dos fatos e a inversão de valores que a Nota defende. É fora de questão que os princípios de disciplina e hierarquia militar são basilares e devem ser preservados ao máximo. Mas serão eles absolutos!? Mesmo em detrimento da dignidade da pessoa humana? Quando princípios convencionados pela sociedade, por melhores que sejam, são postos acima da dignidade de um só homem, que seja preto, que seja pobre, que seja praça num navio, a sociedade fracassa. Mas a MB insiste em defender princípios que, neste caso particular, serviram apenas de escudo para a torpeza dos comandantes daquele tempo. Não é de princípios que se trata, mas de reconhecer que a torpeza dos poderosos daquela época falou mais alto do que quaisquer princípios.
A Nota tenta tapar o sol com peneira ao citar “persuasão e convencimento”. Hoje, em plena democracia, sob uma Constituição republicana de viés socialista, em que os direitos fundamentais estão nos primeiros artigos da nossa Carta política, militares ainda relatam perseguições, assédios, abusos de poder e outros desvios de conduta, tendo muitas vezes que recorrer à justiça comum, pois o diálogo e a argumentação são – como na época da chibata – de mão única, ao estilo “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Como os marinheiros de 1910, de costas marcadas por anos de violência, não psicológica, mas corporal, perderiam tempo em tentar “persuadir e convencer”?! A única linguagem que os violentos entendem é a violência. Os canhões foram a reação, se não proporcional, se não civilizada, a única que, aos olhos dos desesperados, poderia equilibrar anos, décadas de morte à crédito.
É de se perguntar se quem redige as notas da Força Naval é um adulto plenamente capaz ou algum adolescente birrento. O uso que a Nota faz do argumento “você também” (tu quoque ou a “falácia do apelo à hipocrisia”) é vexaminoso, e demonstra que o redator está perdido numa mentalidade infantil em que apontar o erro alheio tem poder de justificar o próprio erro. Se a MB considera que os castigos não estavam corretos, deve fazer um mea culpa, mas não quer fazer, pois justificaria a rebelião dos marinheiros – e a confissão de culpa estatal implicaria que a rebeldia deve ser louvada –, mas a revolta surgiu justamente por causa dos castigos! Um raciocínio circular do qual não apresenta saída.
A Nota diz que os castigos por mau comportamento eram seculares e que as grandes Forças Navais do mundo eram amantes da chibata, algo que – isso parece estar submerso nas entrelinhas – deveria ser motivo de orgulho para os marinheiros de costados em carne viva! É bem possível que, se a Nota fosse um pouco mais longa, a MB nos levaria a concluir que os marinheiros insatisfeitos com a pouca disciplina pediram as chibatadas, para logo em seguida se revoltarem contra o Estado, pedindo o fim dos castigos.
O desfecho sobre racismo é deprimente e só ratifica a arrogância Estatal. Segundo ela, as chibatadas não se dirigiam aos negros, mas ao mau comportamento dos marinheiros, fossem negros ou não. Não seriam chibatadas personalíssimas, mas objetivas… Não temos dados exatos, mas no contexto da época, pouco mais de vinte anos após a abolição formal da escravidão, a maioria absoluta da marujada era oriunda das camadas mais miseráveis. É tão difícil entender que essa maioria era composta de negros, ex-escravos ou descendentes diretos de escravos? Dizer que a chibata se dirigia ao comportamento e não ao portador do comportamento é abusar da boa vontade e ofender a inteligência do brasileiro médio. As Forças Armadas são três. A FAB, por ser muito “jovem”, ainda é um enigma, mas tudo leva a crer que seguirá as lições do Exército Brasileiro. Deverá seguir, quer queira, quer não, pois os tempos são outros. O EB, que se destaca como exemplo de integração nacional, sempre exaltou as origens raciais diversificadas do povo brasileiro, fazendo questão de lembrar, sem nenhuma gota de reserva, que os soldados são todos brancos, índios e negros por dentro da farda, e que isso, longe de envergonhá-los, torna-os mais aptos ao combate. Mas a Marinha, Força mais antiga, eminentemente monárquica, virtualmente aristocrática, certamente sofreu, e ainda sofre de orgulho ferido. Vergastada pela chibata da República que, crime dos crimes, veio definitivamente dar voz ao povo pobre, ainda se revolta contra a marcha da História. Admite que houve culpa de todos os lados, mas que, se ela, a MB reconhecer os próprios erros estará “justificando e exaltando as ações dos revoltosos”! Qual teria sido o erro do Governo? Pela ótica da Força, certamente a anistia dada aos revoltosos. O erro de João Cândido? Não aceitar mais a chibata.
O erro da Marinha do Brasil? Ter marinheiros tão ou mais hábeis do que os seus capitães. Realmente isso ela nunca vai admitir. Talvez não seja mesmo racismo, talvez seja orgulho ferido de classe. João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, pode ser herói em qualquer parte do mundo, menos nos navios da Marinha brasileira.
JB Reis
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