Emendas Pix viram arsenal: guardas municipais recebem armas de guerra em diversas cidades do Brasil
Transferências federais silenciosas fortaleceram o armamento de guardas municipais em cidades pequenas, com carabinas, espingardas e fuzis de uso restrito, sem controle rígido, planejamento nacional ou debate público, revelando uma transformação profunda e pouco discutida na segurança urbana brasileira.
Nos últimos anos, um fenômeno silencioso, porém expressivo, passou a modificar a paisagem da segurança pública municipal no Brasil.
Com a crescente sensação de insegurança nas cidades, prefeitos encontraram nas emendas Pix uma brecha para ampliar o poder de fogo de suas guardas municipais — incluindo a compra de armamentos pesados como fuzis, carabinas e espingardas calibre 12.
Esse avanço na militarização local ocorreu sem grandes debates públicos, impulsionado por uma modalidade orçamentária marcada justamente pela baixa burocracia e pouca transparência.
A constatação vem de um levantamento feito a partir de dados do portal Transferegov, que revelou que pelo menos oito cidades brasileiras utilizaram recursos das chamadas emendas Pix para adquirir mais de 280 armas de fogo, muitas delas de alto calibre, destinadas às suas guardas municipais.
A principal característica das emendas Pix é permitir a transferência direta de recursos federais para estados e municípios sem a necessidade de projetos detalhados ou prestação de contas prévia.
Embora hoje exista a obrigatoriedade de indicar a destinação dos valores, a falta de diretrizes claras ainda favorece decisões polêmicas — como a compra de armas de guerra com verba pública sem planejamento estratégico nacional.
Arsenal nas mãos de municípios
Segundo informações do portal ”Metrópoles”, o destaque entre os municípios armados com recursos federais vai para Hortolândia, no interior de São Paulo.
A cidade aplicou cerca de R$ 427 mil para adquirir 93 armas para a guarda municipal, sendo 90 pistolas e 3 carabinas, com verba indicada pelos então deputados Major Olímpio e Katia Sastre, ambos com histórico ligado à segurança pública.
Já em Nossa Senhora do Socorro, em Sergipe, a guarda municipal foi equipada com 15 pistolas, 4 carabinas e 5 espingardas calibre 12, totalizando 24 armas de fogo com valor de R$ 200 mil.
A verba veio de emenda indicada pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que se defendeu em nota pública:
“Utilizei o mecanismo de emendas participativas, ouvindo a população do município antes de decidir para onde os recursos iriam. O pedido partiu da própria cidade e foi validado por votação popular”, afirmou.
Falta de controle federal
Apesar do caráter ostensivo do armamento adquirido, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) afirma que não possui programa voltado à compra de armas de grosso calibre.
Segundo a pasta, os recursos para guardas municipais normalmente são sugeridos para compra de veículos, coletes balísticos e pistolas — e não fuzis ou espingardas.
Ainda de acordo com o MJSP, os planos de ação vinculados a esses recursos passaram a ser analisados apenas recentemente, uma vez que, até 2023, não havia exigência de prestação detalhada de contas ao ministério.
O órgão explicou que a análise desses casos ainda está em andamento.
Expansão armada nas cidades
A militarização das guardas municipais ocorre em um momento em que esses agentes ganham cada vez mais espaço na segurança pública brasileira.
Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023, mais de 1,3 mil cidades já possuíam guardas municipais estruturadas, com um efetivo total superior a 101 mil agentes.
Desse total, cerca de 30% das guardas já utilizam armas de fogo, segundo a mesma pesquisa.
Com o avanço da criminalidade e o crescimento da insegurança urbana, muitas prefeituras passaram a ver na guarda armada uma forma de dar respostas rápidas à população — mesmo sem diretrizes claras de integração com as polícias estaduais.
Debate sobre o papel das guardas
O papel institucional das guardas municipais ainda está em disputa nos três Poderes.
Hoje, tramita na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa incluir as guardas municipais no rol de órgãos de segurança pública do país.
A medida já foi aprovada no Senado e representa uma mudança significativa, pois reforça a legitimidade desses agentes para atuar armados nas ruas — uma função tradicionalmente atribuída às Polícias Militares.
Além disso, a PEC da Segurança Pública, sugerida ao Congresso pelo próprio Ministério da Justiça, também prevê a inclusão das guardas na estrutura formal de segurança nacional.
O texto avança após o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer, em decisão histórica, que as guardas municipais têm competência para atuar na segurança urbana, não sendo meramente órgãos de proteção patrimonial, como se pensava no passado.